Roberto Acioli de Oliveira *
“Pode parecer uma coisa descuidada para dizer, mas escrever sobre Johan e Marianne foi muito agradável (…)”
(DUNCAN, P.; WANSELIUS, B.: 414)
Ingmar Bergman
Antecedentes Existenciais
Em 1973, o cineasta sueco Ingmar Bergman já não era mais casado com a atriz Liv Ullmann – eles tiveram uma filha num casamento que durou de 1966 a 1971. Mas ela ainda protagonizaria cinco filmes do ex-marido, e, naquele ano, foi a vez de Cenas de Um Casamento (Scener Ur Ett Äktenskap, 1973). Sven Nykvist, diretor de fotografia que trabalhou muito com Bergman, contou que certa vez estava com ela e o ator Erland Josephson durante um intervalo das filmagens, quando a atriz exclamou: “Lá se vão minhas botas!”. Era Ingrid, a nova esposa de Bergman, que por engano colocou as botas de Liv. “Subitamente”, comentou Nykvist, “Liv foi dominada pelo ciúme, disparado por causa de um detalhe bobo, como acontece tanto”.
A atriz correu e se escondeu numa velha caixa de madeira no estúdio e se recusou a sair. De acordo com Nykvist, Bergman “foi suficientemente sábio para não se irritar”, mas levou algum tempo até que as filmagens pudessem continuar (Idem: 416). Esta situação, que ocorreu fora das telas, poderia perfeitamente se encaixar na série, caso o marido da personagem de Liv Ullmann fosse um cineasta – e havia sido, mas na realidade, não na ficção!
Antes de realizar Persona (1966), Bergman havia vivido com a atriz Bibi Andersson, e, pouco depois, passou a viver com Liv Ullmann. Questionado sobre como as duas mulheres conseguiram contracenar neste filme, o cineasta foi evasivo – note-se que, nesta obra, as duas atrizes têm seus rostos misturados num dos mais famosos close-ups do cinema mundial. Após uma longa divagação, confessou que em seus cinco casamentos a duração média era de cinco anos e que teve nove filhos – em relação aos quais admitiu ter sido relapso. O casamento com Ingrid, no entanto, duraria vinte e quatro anos. Num de seus sonhos afirmou tê-la visto a esperá-lo, o que o levou a concluir que estivesse morto – Bergman acreditava que a encontraria na outra vida, um dado biográfico que seria reproduzido no sonho de um personagem em Saraband (2003) **.
Os Episódios de Nossas Vidas
Dentre os vários trabalhos que o cineasta realizou para televisão, a série em seis episódios Cenas de Um Casamento foi o mais famoso. Sucesso de público internacional, metade da população sueca ficaria colada na telinha acompanhando as hesitações e os êxitos do casal Johan e Marianne– encurtada para três horas de duração, a versão para cinema desagradou Bergman (neste artigo, apenas a série é discutida). Muitos artigos discutindo o casamento surgiram na imprensa sueca da época, sendo a primeira página do jornal Expressen, de 27 de maio de 1973: Johan e Marianne salvam centenas de casamentos. Por todo aquele país escandinavo, as pessoas correram para os centros de aconselhamento. Antes de a série ir para o ar, a média de espera para o atendimento era de três semanas para quem morasse na capital Estocolmo, e, depois dos primeiros capítulos, a espera pulou para três meses (Ibidem: 416-7).
De forma muito sumária, pode-se resumir a história chamando atenção para o contraponto entre as primeiras cenas (que mostram Johan e Marianne sendo entrevistados para uma revista como o casal sueco ideal) e o restante da série (uma coleção de equívocos da relação aflorando em meio ao estrondo de frases arrasadoras). Ele é um cientista pesquisador e ela, uma advogada especialista em divórcio. Tudo muda, quando Johan arruma outra mulher e resolve sair de casa. Ocasionalmente eles voltam a se juntar e a se separar novamente. No final, divorciados eles parecem estar mais ligados do que no primeiro capítulo, quando posavam como o casal perfeito.
“Cenas de Um Casamento é sobre a agressividade e como lidar com ela. Johan e Marianne ficam surpresos quando sentimentos reais começam a transbordar. Mas assim que se permitem ter raiva e reagir, aprendem algo sobre si mesmos e sobre o outro. Na época, a série levantou fortes discussões sobre o casamento. A audiência do programa aumentava à medida que a agressividade dos personagens aumentava. Ver o casal na televisão despertou algo em vários espectadores que os afetou por muito tempo, para o melhor e para o pior” ***
No primeiro capítulo, depois de serem apresentados como um casal feliz e perfeito, Johan e Marianne presenciam uma briga entre Peter e Katarina, o que dispara o gatilho e leva os dois a começarem (especialmente Marianne) a explicitar suas questões em relação ao casamento. Na segunda parte, depois de assistirem a Casa de Bonecas (Ibsen) no teatro (Bergman não dá esse esclarecimento no episódio, mas no roteiro, declarando ainda: “O que é que eles poderiam ter visto de diferente!”), o casal começa uma conversa e acabam se desentendendo. Na prática, explicou o cineasta, não conseguem resolver o assunto e varrem tudo para debaixo do tapete (título do segundo episódio: A Arte de Varrer Para Debaixo do Tapete) (BERGMAN, I. 2008: p. 11). A discussão começa com uma crítica ao feminismo, fala do confortável papel de vítima que as mulheres teriam assumido e termina tocando na perda recíproca do interesse sexual.
Na terceira parte, Johan avisa que vai sair do casamento. Esta foi a primeira seqüência que Bergman escreveu e tem um fundo autobiográfico. O cineasta estava casado e tinha quatro filhos, quando se apaixonou por outra mulher; estava em Estocolmo e viajou até Göteborg, sendo que sua esposa ficou feliz em vê-lo antes do esperado (como no capítulo). Mas Bergman só foi até lá para contar sobre sua nova paixão e dizer que ia para Paris com ela, porque a moça tinha algo a fazer por lá (como no capítulo). Na série, Johan pelo menos dorme com Marianne, antes de partir no dia seguinte, já Bergman nem tirou o sobretudo. Admitiu ter sido muito cruel, e que, pelo menos até 2006, este momento continuava dentro dele – embora já sem sentimento de culpa. O cineasta confessou que esta seqüência saiu de dentro dele como se estivesse expulsando algo, toda a série Cenas de Um Casamento se irradia a partir dela **.
No quarto episódio, o casal se reencontra seis meses depois da separação e Johan tenta fazer as pazes, mas ela já está noutro relacionamento – além de ter começado a se questionar sobre si mesma. Na quinta parte, depois de uma violenta discussão (homem sueco também bate em mulher, ou pelo menos batia), Johan assina os papéis do divórcio trazidos por Marianne. Na parte final, eles se reencontram no 20º aniversário de seu próprio casamento. Agora como amantes traindo outras pessoas, passam a noite juntos e, “vacinados” pela distância que os aproxima, parecem chegar a uma espécie de reconciliação.
“Liv Ullmannn (Marianne) e Erland Josephson (Johan) encarnam um casal casado há dez anos, exibindo com certa ostentação um bom humor ‘moderno’ (distanciamento, tolerância, fluência verbal…), do qual, contudo, o filme começa a mostrar nada menos do que a minuciosa e inexorável crônica da decomposição. Variação sobre A Dança da Morte, de Strindberg, e ao mesmo tempo desnudar de um tema central de inspiração de Bergman (o casal) (…)” (MANDELBAUM, J.: 65)
Bergman por Bergman
Embora Jacques Mandelbaum tenha citado a peça de Strindberg, Bergman diria, em 1972, que a série nasceu a partir da terceira parte. Pretendia construir um drama para a televisão sobre um homem que volta para casa e avisa a sua esposa que vai abandonar o casamento para viver com outra mulher, então imaginou como seria esse casamento e especulou como estariam no futuro. Para sua surpresa, Johan e Marianne tinham muito a dizer, mas ele nem sempre concordava – Bergman admitiu que as contribuições de Erland e Liv foram cruciais para o resultado final. Liv Ullmann, por exemplo, não gostava do 6º episódio, acreditava que Marianne não era tão livre e madura quanto Bergman achava que ela era. Por esta razão, esclarece o cineasta, Liv interpreta com profunda ansiedade e insegurança. O cineasta permitiu que o casal se expressasse, contando que na parte final pudesse dizer coisas que considerasse relevantes (DUNCAN, P.; WANSELIUS, B.: 73, 414, 416, 417, 587n46).
Cenas de Um Casamento, explicou Bergman, em 1974, acompanha duas pessoas que estão se desligando de uma série de convenções e demandas, especialmente a mulher, que, de alguém que aceitava todas as regras, passa a oferecer alguma resistência e a criar suas próprias regras. Bergman ficou surpreso com a reação das feministas, que em sua opinião atacaram a série por tudo que ela não é: não se trata de uma série sobre uma esposa suburbana que tem dois empregos e filhas na creche e também não é sobre a função das crianças no divórcio. Ao invés de vociferar sobre essas coisas, as feministas deveriam, insistiu o cineasta, focar e discutir o tema real da obra: “a auto-sabotagem das próprias mulheres, agradando aos outros ao manter suas bocas fechadas, a agressão secreta, que se expressa numa falta de entusiasmo pelo sexo, sua ambição de viver de acordo com um papel que foi criado para ela por suas mães… Todos esses são aspectos importantes” (Idem: 417).
Bergman afirmou que sua fascinação por Strindberg (1849-1912) não quer dizer que assuma o comportamento ambíguo do dramaturgo em relação às mulheres – adora-as, mas também as persegue, e faz isso ao mesmo tempo; para Bergman, a psique de Strindberg era 50% mulher, 50% homem, o cineasta cita como exemplo a peça A Menina Julia (também conhecida como A Senhorita Julia, Fröken Julie, 1888), na qual o homem e a mulher não param de trocar máscaras. O cineasta desmente a abordagem de Marianne Höök e afirma que não existe nada de metódico de sua parte em relação às mulheres. Em seu livro lançado em 1963, Höök sugere um modelo para os papéis femininos em Bergman: “a Vênus triunfante” (Eva Dahlbeck), enquanto Diana é representada pela atriz Anita Björk e já Hebe seria o modelo para a atriz Ingrid Thulin. O sueco desdenha essa hipótese, dizendo que as pessoas que escrevem livros estão sempre preocupadas em se agarrar a um ponto de vista e julgar tudo em função dessa sua posição. Em seguida, admite que possa haver algo nas afirmações de Höök, ele apenas acha que é tudo muito desinteressante.
Numa entrevista com Bergman, Jonas Simas disse que o diretor quase sempre parece descrever as mulheres como criaturas sexuais com uma capacidade de sobrevivência muito forte, mas então representa a mulher intelectual, moderna e emancipada como uma pessoa frígida e neurótica. Simas dá como exemplos Cecília de No Limiar da Vida (Nära Livet, 1958) e Ester de O Silêncio (Tystnaden, 1963) – a atriz Ingrid Thulin atuou nos dois papéis. Bergman se eximiu de culpa em relação à Cecília (que seria criação de uma roteirista que trabalhou com ele, Ulla Issakson), assumindo a responsabilidade em relação à Ester. Quanto a esta segunda, Bergman esclareceu que esse papel originalmente seria de um homem, então, concluiu que não existe nada nela que remeta a uma neurótica frígida. Bergman insistiu em dizer que não tinha nada contra a mulher moderna e autoconsciente, mas admite que, em seus primeiros filmes, existem papéis femininos muito marcados pela sexualidade, como as personagens Nelly, de Rumo à Alegria (Till glädje, 1950) e Anna, de O Silêncio. Então outro entrevistador perguntou se também seria desinteressante perguntar sobre a posição de Liv Ullmann no modelo de Höök, Bergman insistiu que sim (Ibidem: 344).
Para Bergman, homens e mulheres têm muito receio das agressões dentro da relação, mas sugeriu que se você suaviza a raiva, logo ela será substituída por uma terrível ansiedade. Ele achava que o mesmo acontece quando alguém não reconhece sua mágoa e não dá o tempo necessário para que ela seja curada. Cada vez que você a bloqueia, diagnostica Bergman, o fluxo natural será substituído por ansiedade e vazio. Johan e Marianne eram muito tensos, e ficou pior para ela quando soube da infidelidade – embora ela confesse, no final, que também foi infiel. De qualquer forma, na opinião do cineasta, praticamente todo mundo vive sobrecarregado por demandas feitas pela sociedade e por pessoas próximas, poucos são capazes de se opôr a essa pressão. Mas o cineasta conclui com otimismo, afirmando que, quando chegou a vez de Johan e Marianne, eles se tornaram o que pretendiam ser após um longo e complicado processo. Possuíam um capital de amor e ternura independente de tudo aquilo que os permitiria se relacionarem com calma, livres de todas as demandas – ainda que isso signifique se tornarem amantes -, traírem outras pessoas e admitirem que mentir para o cônjuge é uma coisa normal.
Bergman havia feito duas tentativas de falar sobre as pessoas e seus problemas: em A Mentira (Reservatet, três episódios para a BBC na série Play for Today, direção Jan Molander, Allan Bridges e Alex Segall, 1970, 1973) e A Hora do Amor (Beröringen, 1971). Embora algumas pessoas considerassem essa abordagem muito banal, muitas outras gostaram e o estimularam. Isolado em sua casa na ilha de Fårö, no litoral sueco (segundo Bergman, um lugar ideal para fazer declarações sobre o casamento), a pilha de manuscritos crescia.
“Antes que eu pudesse perceber, havia seis diálogos individuais sobre amor, casamento e todo tipo de coisas. Para minha surpresa, essa deve ter sido a primeira vez que vejo duas pessoas se desenvolverem sem falarem com minha própria voz. Uma breve ressalva: levou dois meses e meio para escrever essas cenas; levou toda uma vida adulta para experimentá-las. Eu ainda não sinto como se tivesse relação com Johan e Marianne. Eles são inteiramente independentes de seu fabricante. Mas temos certos elementos em comum: por exemplo, uma experiência de classe média com sua influência de dois gumes em nosso desenvolvimento (isso soou bem, não?)” (Ibidem: 414)
Em 1997, Bergman estava trabalhando numas traduções e concluiu uma obra que juntaria novamente Erland Josephson e Liv Ullmann. O cineasta esclarece que, ao contrário do que muitos pensam, Saraband não é uma continuação de Cenas de Um Casamento. Acontece de ser mais um filme de Bergman repleto de referências autobiográficas e à sua obra e, evidentemente, o casal Johan e Marianne, de Cenas, é uma referência. Mas como disse Bergman, “é só que eu os conhecia muito bem, eu podia fantasiar sobre seu destino” (Ibidem: 546), assim Bergman definiu o casal de Cenas, que parece ter influenciado muitos casais escandinavos:
“(…) Tornaram-se bastante contraditórios, por vezes infantilmente angustiados, outras vezes bastante adultos. Dizem muitas coisas insignificantes, mas também algumas que são importantes. Mostram-se tensos, felizes, tolos, bons, inteligentes, bem comportados, dedicados, zangados, tolerantes, sentimentais, insuportáveis, amorosos – em resumo, seres humanos. Tudo de uma vez só” (BERGMAN, I. 2008: 13).
Os Labirintos de Marianne
No 4º episódio, O Vale de Lágrimas, Johan e Marianne se encontram seis meses depois da separação para falar do divórcio, ele pretende reconquistá-la. Ela resiste, mas no final acabam na cama. Ele não consegue dormir e vai embora, mas não sem antes receber de Marianne uma carta da atual mulher que ela recebeu. Um pouco antes, no início do encontro, Marianne diz que por sugestão de seu psiquiatra, começou a escrever os pensamentos num caderno:
“(…) Para minha surpresa, devo admitir que não sei quem sou. Não tenho a mais vaga idéia. Sempre fiz o que me mandaram. Até onde me lembro, fui obediente, correta, quase humilde. Me impus algumas vezes quando menina, mas minha mãe me puniu por falta de modos com severidade exemplar. Minha educação e a de minhas irmãs tinha o objetivo de nos tornar agradáveis (…)”
Marianne faz um exercício de reconstrução do passado que talvez possa levá-la a compreender melhor o presente. Não encontramos relatos de Johan chegando a esse nível, a não ser no 5º episódio, que o acaba levando a dar uma surra nela poucos minutos depois de o casal ter transado. Nessa briga, Bergman achou que eles foram piores do que Peter e Katarina em sua batalha verbal do 1º episódio (Idem: 12). O trecho das anotações de Marianne que fala sobre omitir suas opiniões e evitar falar sobre sexo com seus pais durante a adolescência antecipa a fala dela na seqüência final sobre o ato de mentir no casamento:
“(…) Eu percebi que, se guardasse meus pensamentos e fosse agradável e previsível seria recompensada” (…) “Ser enganosa e reservada se mostrou mais seguro (…)”
Como justificou Zelig no filme homônimo (1983) do cineasta norte-americano Woody Allen, “é mais seguro ser como todo mundo!”. Foi assim que a personagem de Liv Ullmann cresceu, como ela diz, “sempre atuando, numa tentativa desesperada de agradar”. É curioso o comentário dela de que seus pais riram, quando disse que pretendia fazer alguma coisa na área do teatro – seu pai queria que ela seguisse os passos dele, e, aparentemente, foi o que ela fez ao torna-se advogada. A maioria de nós não compreende que atuar não é uma profissão, mas um modo de vida…
“(…) As armadilhas da segurança vêm com um preço alto, a erosão constante da sua personalidade. É muito fácil, nos primórdios, impedir as tentativas de uma criança de se impor. No meu caso, foi executado com injeções de um veneno 100% eficaz. Culpa. Primeiro, era dirigida à minha mãe. Depois, aos outros. E finalmente, a Jesus e Deus (…)”
Então Marianne especula se poderia reencontrar sua alegria de viver original ou se estava tudo irremediavelmente perdido. Questiona-se, também, que tipo de casamento seria o dela com Johan, caso eles tivessem conseguido se libertar (são palavras dela) de suas famílias. Depois desse longo monólogo, Marianne fecha o livro e se vira para Johan, que dorme profundamente, ela se levanta, recolhe os pratos, eles haviam jantado, e então o telefone toca e na linha está o atual namorado dela fazendo uma cena de ciúme. Marianne desliga o telefone, senta-se ao lado de Johan no sofá e o acorda suavemente. Um tanto desconcertado (ele havia bebido e bocejado antes dela começar), ele tenta mostrar-se interessado pela leitura, mas ela sabe que quer ir para a cama com ele, eles serão interrompidos pelo ciúmes no telefone, mais uma vez, e, em seguida, Johan e Marianne vão discutir novamente. Lá pelas tantas, Johan desiste de tentar dormir com ela, e é quando Marianne lhe entrega a carta de Paula – a mulher, a moça… por quem ele trocou Marianne e de quem, agora, Johan já quer livrar-se.
Em 1977, Liv Ullmann teceu algumas considerações em relação à sua personagem. Muito impaciente com seu amor, durante a separação, Marianne abraçava o homem imaginando que isso seria suficiente para segurá-lo. Aquela mulher não aceitava em seu coração que tudo está em constante movimento (incluindo o amor), tudo, sujeito à lei da mudança. Por muitos anos, Marianne manteve sem uso uma parte de si, toda aquela educação tradicional a sufocou São exemplos as confissões de sua mãe sobre a relação com o marido e pai de Marianne, no último episódio; e, no 2º episódio, as justificativas da senhora que pretende divorciar-se. Sua visão da vida foi construída em torno de convenções e falta de fantasia, o amor, em grande medida, reduzia-se a um sentimento de dependência – por mais de uma oportunidade, personagens se ressentem de falta de amor; porém, ao mesmo tempo, não sabem defini-lo, o que significa que é uma falta que ninguém sabe como preencher.
Marianne ancorou sua vida em outro ser humano, partindo da crença otimista de que ela tinha força suficiente para os dois, e relaxou em relação ao que achava que Johan sentia por ela. Agora, ele a deixou e tudo é silêncio; furiosa e indefesa, Marianne grita sua angústia. Liv Ullmann disse que sabe muito bem o que é o som de uma porta batendo, de um carro partindo – o grito angustiado de Marianne veio pela boca de Liv! A atriz conclui dizendo que sua personagem não será mais a mesma, uma mudança ocorreu, a vida anterior acabou e uma nova está começando (DUNCAN, P.; WANSELIUS, B.: 416). Talvez seja essa surpresa de Johan na seqüência final do último capítulo, quando Marianne diz que se acostumou a mentir para o atual marido, admitindo também que havia mentido para o próprio Johan no começo do casamento deles, pois nunca contou que teve um amante (ao passo que Johan se deu ao trabalho de anunciar que largaria Marianne por outra mulher).
Johan, Marianne e Todo Mundo
Ao agrupar Cenas de Um Casamento, Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop, 1973) e Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978) naquilo que chamou de “período amargo” (quando Bergman vivia em função de ajustes de contas com mãe e esposas), Jacques Aumont dá o tom problemático dessa série feita para televisão. Embora Aumont fale em clichê feminista, admite que Bergman ponha à nu em Cenas sua visão do feminino: ela está do lado da vida e é mais forte do que o homem, que é hesitante e se atola em dúvidas e remorso. Contudo, Aumont também enxerga em Marianne uma mulher capaz de ser perversa. Bergman retrata mulheres cuja determinação, força e coragem afetiva e sexual são evidentes, mas ele também se deixa envolver pelos clichês da Europa cristã: a mulher, direcionada ao casamento, é doadora de vida, caso contrário é uma prostituta.
Como Höök, Aumont parece estar de acordo com a hipótese de que a atriz Eva Dahlbeck, que havia trabalhado com Bergman durante a década de 50, representava para o cineasta uma beleza escultural e a encarnação ficcional de sua terceira esposa. O papel de Dahlbeck em No Limiar da Vida é bastante significativo: ela é uma mãe “delirante” de primeira viagem, cuja alegria em estar prestes a dar a luz irrita suas companheiras de quarto da maternidade, cuja relação com a maternidade é mais complicada. Ironia do destino, o filho dela nasce morto. Em Cenas, Bergman foi criticado por não considerar a situação das filhas de Johan e Marianne, mas em Limiar da Vida, o cineasta articulou a questão da materinidade com a do casamento: uma das mulheres tinha um casamento ruim, o da grávida “delirante” era perfeito e havia uma mulher jovem assustada por ter engravidado do namorado, não sabendo o que fazer. Em relação a esse filme, Bergman declarou : “é claro que também foi delicioso ser capaz de matar os mitos sobre ‘o desespero e felicidade da maternidade’; todas essas mentiras sobre o aspecto físico da maternidade” (Idem: 224). Curiosamente, o cineasta admitiu que as três irmãs de Gritos e Sussurros são três rostos de sua própria mãe (AUMONT, J.: 32, 38, 43, 44, 232n12).
Ao contrário de Hollywood, que geralmente se concentra na hora da conquista quando conta a história de um casal, Bergman vai direto para a hora do rompimento. Aumont esclarece tratar-se de uma característica do cinema de arte desse período, de Michelangelo Antonioni a Jean-Luc Godard. Aumont identifica dois tipos de casais na obra de Bergman: o primeiro é o casal burguês, aquele que é contra a infidelidade do marido – em Fanny e Alexandre (Fanny och Alexander, 1982), contra o tédio – em Quando as Mulheres Esperam (Kivnnors Väntan, 1952), ou contra o desprezo – em No Limiar da Vida. O segundo tipo é aquele que encarna a paixão, carnal e afetiva, e que não pode continuar.
O casamento, muitas vezes descrito por Bergman em seu estado burguês caricatural, torna-se cada vez menos caricatura e cada vez mais um contrato entre duas pessoas maduras. Em Cenas, duas pessoas seguem a mesma direção, ainda que a caminhada se torne uma camisa de força. Johan e Marianne se apresentam inicialmente como um casal feliz; no 1º episódio essa situação vira de cabeça para baixo, por ocasião do jantar com o casal amigo Peter e Katarina – que são os duplos problemáticos de Johan e Marianne. Depois disso, eles acabam se separando. Mais vale, talvez, a amizade entre o casal, como sugeriu Saraband: “uma boa relação entre homem e mulher depende de dois fatores, uma boa camaradagem e uma sexualidade sólida” – como o interesse de Marianne pela vida sexual dos pais no último capítulo. De fato, o próprio Bergman afirmou que o casal Peter e Katarina de Da Vida das Marionetes (Ur Marionetternas Liv, título sueco, 1980) poderia ser o duplo do casal homônimo de Cenas, mas também de Johan e Marianne. São um novo e último avatar dos casais mauditos, estéreis, com câncer na alma, da trilogia realizada na ilha de Fårö (onde Bergman foi morar): A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968), Vergonha (Skammen, 1968), A Paixão de Ana (En Passion, 1969) (Idem: 42, 103). Bergman é conhecido por reapresentar nomes de personagens, como ele mesmo explica:
“Peter e Katarina aparecem pela primeira vez em Cenas de Um Casamento. Na primeira parte desse filme eles formam um contraponto em relação a Johan e Marianne. Peter e Katarina não podem nem viver um com o outro, nem um sem o outro. Cometem mutuamente sabotagens cruéis, como só eles dois, na situação em que se encontram, conseguem imaginar. A vida deles em comum é uma dança da morte sofisticada, um processo de desumanização. A discussão que têm à mesa, durante o jantar [no primeiro capítulo], é o primeiro ataque ao mundo falso do casal Johan e Marianne, mas para eles é o purgatório diário” (BERGMAN, I. 2001: 212)
Umas Série Profilática e Purgativa
Bergman declarou ter se baseado também em alguns amigos para escrever o roteiro de Cenas de Um Casamento, amigos esses que, entretanto, diziam não se reconhecer na série. Para surpresa do cineasta, todo mundo se viu na série! Ele não sabia muito bem o que dizer para justificar isso, a não ser que ali se fala de pessoas emocionalmente analfabetas, sem auto-compreensão alguma, pessoas que não sabem nada a respeito de si mesmas, comentou Bergman. Elas possuem boa formação, mas não conseguem decifrar as questões emocionais mais simples. Apesar disso, Marianne sabe intuitivamente que há algo errado, mas Johan, conclui o diretor, fecha-se e não discute a relação, acreditando que, se não falamos sobre alguma coisa, ela não existe.
Àquelas pessoas que reclamaram por não envolver as filhas do casal na trama, Bergman respondeu apenas que então seria uma história diferente. Seu objetivo era falar sobre pessoas que ignoram suas emoções e sentimentos, que são incapazes de olhar para dentro. Na Suécia, depois de Cenas de Um Casamento, as consultas de terapia familiar duplicaram. Bergman ficou muito feliz em saber que os índices de divórcio na Dinamarca aumentaram muito depois da veiculação da série. No sentido de que as pessoas se sentiram estimuladas a por um fim em situações dolorosas que poderiam se arrastar indefinidamentre ****.
* Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.
** Declarações do cineasta no documentário A Ilha de Bergman, direção Marie Nyreröd, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, 2006.
*** Locução incorporada na entrevista com Bergman nos extras do DVD de Cenas de Um Casamento, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, 2006.
**** Bergman em entrevista (não datada), nos extras do DVD de
Cenas.
Referências Bibliográficas
AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. “Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinèma, 2003.
BERGMAN, Ingmar. Imagens. Tradução Alexandre Pastor. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
————————-. Cenas de Um Casamento Sueco. Tradução Jaime Bernardes. Florianópolis: Letras Brasileiras, 27ª edição, 2008.
DUNCAN, Paul; WANSELIUS, Bengt (Eds.). The Ingmar Bergman Archives. Köln: Taschen, 2008.
MANDELBAUM, Jacques. Ingmar Bergman. Paris : Cahiers du Cinéma/Le Monde, 2007.