Memória e narrador – lembranças na narrativa de “A Era do Rádio”

“A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que possa ser a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor”

(BOSI, E. 1995: p.55)

A memória é o fio condutor da narrativa de “A Era do Rádio”. É a partir dela que o narrador Joe – utilizando da voz do diretor Woody Allen – conta-nos suas reminiscências e reconstrói o período áureo do rádio na sociedade norte-americana dos anos 30 e 40.

Pôster do filme

Narrando sua infância em primeira pessoa, a personagem Joe, revisita Rockaway Beach (NY) e seu ambiente familiar a partir de suas lembranças da época em que o Rádio – estopim da narrativa – estava demasiadamente enraizado na sociedade norte-americana.  É reconstruída a Nova York do final dos anos 30 e início dos anos 40 e o imaginário que o Rádio construía para os americanos através de, entre outros fatores, seus programas e suas músicas.

A personagem, portanto, mostra para o espectador aquilo que visualiza através de sua memória e, assim, transmite seu passado aos que o ouvem.  O narrador expõem suas experiências e/ou as experiências dos outros e, a partir delas, a narrativa do filme é traçada. Trata-se, pois, de um discurso baseado na memória e sua (re)composição, como se pode observar. Carregado de nostalgia (re)cria-se toda uma época que só poderia de fato ser atingida pela memória. Citando o narrador em uma de suas últimas falas pode-se perceber o papel que esta desenvolve no filme através do próprio:

“[…] and I’ve never forgotten any of those people… or any of those voices we used to hear on the radio.” (Transcrição do Roteiro Original de ‘A Era do Rádio’)

O narrador aqui é quem fornece o texto narrativo que chega ao espectador. A narração atinge o espectador/ouvinte e assim inclui este último no universo da obra fílmica. Joe (re)constrói situações de sua infância em Rockaway Beach e nos permite – no campo da imaginação – entrar em contato com aquela época.

A memória, que há muito é objeto de estudos, torna-se aqui, a partir do discurso do narrador, a forma de que o espectador se vale para reconstruir aquilo que lhe é contado. Walter Benjamin, dentre suas publicações propõe uma discussão sobre o papel do narrador: esclarece que esse, em geral, tende a iniciar suas histórias com a apresentação das circunstâncias, as quais tomaram conhecimento e que estão prestes a narrar – o que nos é evidente em “A Era do Rádio”. Além disso, vale indicar que Joe, logo que se põe a contar as lembranças de sua infância, alerta e se desculpa ao ouvinte pelo romantismo que pode imprimir nos relatos:

“The scene is Rockaway. The time is my childhood. It´s my neighborhood, and forgive me if I tend to romanticize the past. I mean, it wasn’t always as stormy and rain-swept as this … but I remembered it that way because that was it at its most beautiful.” (Transcrição do Roteiro Original de “A Era do Rádio”)

Ainda sobre o narrador, e não especificamente Joe apenas, Ecléa Bosi em seu livro “Memórias e Sociedade” afirma:

“A arte da narração não está confinado nos livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o escutam.” (BOSI, E. p. 85)

São as experiências de Joe que, através de sua fala baseada na lembrança, transporta o espectador para a era de ouro do rádio. As situações contadas são tiradas do imaginário da personagem e através de sua fala atinge o espectador, assim como sua reconstrução.

Mas, ainda pode-se questionar o quanto da memória de Joe, personagem-narrador, é permeada pela memória do realizador. Há, pois, a questão da autobiografia, que embora esse texto não tenha a intenção de se aprofundar, merece ser citado, em relação ao diretor do filme. Muito já se discutiu sobre a questão do autobiográfico nas obras de Woody Allen. No filme em questão, pode-se observar, inclusive por meio de relatos do próprio diretor, que muito da infância de Allen está na narrativa do filme. Eric Lax, escritor do livro-entrevista “Conversas com Woody Allen” diz ter a impressão de “A Era do Rádio” ser o filme mais pessoal de Allen. A esta afirmação, Allen responde;

“Eu queria fazer um filme inteiro de cenas baseadas nas lembranças das músicas da minha infância. […] Era esse tipo de nostalgia; o prazer auto-indulgente que a gente tem ao recriar a atmosfera da própria infância. […] e você tem a oportunidade de recriar a sua infância, ou um fac-símile dela. Na verdade não é minha infância exata, mas tem muitos aspectos da minha infância que eu coloquei no filme por prazer, que eu me lembre.” (LAX, Eric, p. 61-62)

É interessante observar o modo como a memória afeta a narração de uma história – ou ainda melhor, as memórias: a de Allen e de Joe-personagem. Cabe ao narrador – e escritor-diretor !- selecionar o que será dito e a maneira como irá contá-la. No caso do filme em questão, o narrador utiliza-se do rádio para poder narrar as lembranças da sua família, casa, escola, amores e música. O rádio é o elemento estimulador da narrativa. Além das situações domésticas, Joe narra os acontecimentos do mundo do rádio: seus apresentadores, seus programas e principalmente a ascensão de Sally White (interpretada por Mia Farrow) dentro da indústria radiofônica de Nova York.

O filme não deve ser entendido, ou mesmo taxado como um filme de memórias, é mais do que isso. É um filme íntimo e nostálgico sobre o tempo: o tempo passado.

O universo que é (re)construído a partir memória é o grande tema do filme. A memória é exposta como uma personagem dentro da narrativa: ela permeia a narrativa, informa e emociona o espectador. Esse é transportado para uma época e para situações que habitam somente a memória do narrador (e parcialmente de Allen, pode-se inferir). Woody utiliza esses elementos – rádio, memória e narrador – notavelmente para propor ao espectador uma história nostálgica baseada nos velhos tempos. Erix Lax, sobre “A Era do Rádio”, escreve:

“‘A Era do Rádio é uma história sobre o poder da imaginação e da memória. Woody narra, mas não aparece no filme, que é uma combinação das histórias da família maluca de um menino e os desejos infantis, ligados pela música e pelas vozes do rádio do começo dos anos 40. Assim como aquilo que o menino ouve incendeia sua imaginação, as pessoas por trás das vozes do rádio têm a vida e anseios disparatados.” (LAX, E. 2008: p.63)

Bibliografia:

– BOSI, Eclea. Memórias e sociedade – lembrança de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, 484 p.

– LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. 1 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008, 483 p.

– ADORNO, Camilo Tellaroli. A ironia no romance Quase Memória, de Carlos Heitor Cony. 2006. 127 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. 2006.

– BENJAMIN, Walter. “O narrador.” In: Os pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. V. 48. p. 57-74.

– MOREIRA, Sônia Virgínia. O Rádio nos anos 30 nos EUA: o entorno de A Guerra dos Mundos. In: MEDITSCH, Eduardo (org). Rádio e pânico – a guerra dos mundos, 60 anos depois. Florianópolis: Insular, 1998. 240 p.

– Amarcord (Amarcord, 1973) – Federico Fellini

– Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988) – Giuseppe Tornatore

João Henrique Tellaroli Terezani é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Louize Nascimento

    Gosto muito da proposta deste site, mas como leitora acredito que os textos poderiam ser mais leves e explicativos. O texto sobre a “Era do Rádio” é bastante repetitivo, alguns parágrafos são redundantes e não acrescentam novas informações. Em outros textos percebo que há termos que poderiam ser melhor explicados para o grande público… Estilos de diretores de cinema ou de um filme, enfim, aproximar a linguagem cinematográfica das pessoas.

    Abraços

  2. Author Image
    Giselegracieimperial

    Amo esse filme! Mas estou procurando direto e não acho a trilha sonora, somente os nomes das músicas do filme! Alguém pode me ajudar?

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