Um olhar sobre a direção de atores de Guel Arraes

“Criar não é deformar ou inventar pessoas ou coisas. É estabelecer entre pessoas e coisas que existem e tais como elas existem, novas relações.”

(Robert Bresson em Notas sobre o cinematógrafo)

Sabendo que cada diretor pode criar um método diferente para dirigir seus atores, ou apropriar-se de outro que já exista, mas que seja eficiente para seu propósito, mostraremos aqui o método criado pelo diretor Guel Arraes, que acreditamos ser eficiente a partir do resultado visto no filme em que tomamos como base, Romance (2008).

Começaremos falando sobre a vida e as influências de Guel Arraes e o que o conduziram ao meio cinematográfico, para então partirmos para seu trabalho de direção, mais especificamente, a direção de atores. Para melhor visualizarmos o método utilizado por esse diretor, mostraremos como o roteiro é tratado, de que maneira é o trabalho com o ator e o resultado final dessa preparação (através de um vídeo).

Espera-se, através deste, mostrar que o cinema, tal como outras manifestações artísticas, está em constante movimento e reinventa-se de acordo com as necessidades presentes aprimorando cada vez mais a linguagem cinematográfica.

Miguel Arraes de Alencar Filho , o Guel Arraes, nasceu no Recife, em 12 de dezembro de 1953, e morou muito tempo fora do Brasil, pois foi para o exílio junto com seu pai (que foi governador de Pernambuco) e morou em países como a Argélia e a França. Teve sua formação universitária na área de antropologia, na França, e foi durante tal curso que se deu seu primeiro contato com a área cinematográfica.

Dos 18 aos 25 anos, tornou-se autodidata na área: assistia às sessões da Cinemateca Francesa e admirava os cineastas russos, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo. Sofreu, também, grande influência de Jean Rouch, um dos cineastas intensamente atuante no movimento nomeado “cinema verdade”

Na virada dos anos 80, ele retorna ao Brasil, e vai estagiar na Rede Globo de televisão, aonde após diversos trabalhos assume o comando da série “Armação Limitada“, que obteve grande sucesso. Algum tempo depois vai assumir o comando do núcleo que leva seu nome, onde vem trabalhado, desde então, como diretor, roteirista e produtor artístico.

O diretor dedica-se, além da televisão, ao cinema, e é responsável por alguns filmes de grande sucesso na bilheteria nacional como: O auto da compadecida (2000) e Lisbela e o prisioneiro (2003). Recentemente, em 2008, filmou “Romance“, e mostrou que, além da direção geral, preocupa-se também com a preparação de atores. E, assim, criou um método para dirigi-los, que será a prioridade de análise nesse ensaio.

Guel Arraes tem forte influência televisiva, a qual observamos através do seu trabalho com um ritmo veloz de produção, e, para mostrar como ele utiliza essa característica em favor da direção de atores, colocaremos abaixo uma entrevista do diretor para o site Cinemascopio:

” Cinemascopio- Como você explica a sua linguagem “ultra veloz”, que salta aos olhos e ouvidos?

Guel Arraes – Sempre me criticaram no início. ‘É bom, mas é rápido demais!!”, mas, aí, eu respondia, “Se é bom, é porque é rápido!”, a rapidez faz parte do “ser bom”. Primeiro, acho que adéqua-se ao estilo de trabalho que eu faço, comédias, farsas que exigem velocidade. Segundo, comecei profissionalmente na TV fazendo novela, que era de uma lentidão enlouquecedora. Em terceiro lugar, havia uma ansiedade de mostrar serviço do ponto de vista psicológico. Através dessa marca da velocidade, há um controle de praticamente todos os elementos inerentes ao processo de trabalho. É quase um truque para controlar o ator, até o ponto em que um diretor deve controlar. Como diretor, mostra que você domina a sua partitura, que você está atento. O ator que não se preparou para fazer um trabalho sério, sobra. Regina Casé, por exemplo, funciona muito bem solta, mas a gente precisa sempre chegar a um acordo para que ela não fique solta demais. Já um ator como Marcos Nanini, de muita precisão, aí eu exagero. Gosto de direção que mostra serviço. Essa coisa de que a direção de um filme tem que ser discreta e tal, não é comigo. Adoro ver o espetáculo e a mão do diretor, adoro o estilo Fellini.

Cinemascopio – Sabe-se que você chegou a rodar 70 planos por dia em O Auto, ritmo alucinante para uma produção em cinema.

Guel Arraes – É verdade. Quando começamos a juntar a equipe que fazia cinema na Globo, eu dizia “vocês têm que me ajudar”, porque, no set de filmagem, eu viro uma espécie de Silvio Santos, um crooner. É por isso que eu ensaio tudo com tanta antecedência e, na hora, mal vejo se o ator está bem. É uma maratona de planos. Antes de trabalhar com Felix Monti (diretor de fotografia), disse para ele “sou mais amigo do montador do que do fotógrafo!”, mandei fitas de trabalhos meus para ele ver a quantidade de planos feitos em 12 dias e fiquei preocupado com o ritmo do serviço. Por outro lado, me diziam, “isso é porque você está fazendo TV, no cinema será bem diferente, você vai ficar sentado na cadeira vendo tudo acontecer”. Cinco minutos depois, vi que era tudo igual.

Guel cobra de seus atores um ‘trabalho sério’ e lhes dá subsídios para que este seja atingido. Antes das filmagens há exaustivos ensaios, pois ele acredita que dessa forma também o ator se sentirá melhor preparado para a cena, e essa segurança lhe permitirá, juntamente com o trabalho do diretor, condições para o bom improviso.

O método de direção criado por Guel Arraes lança mão de uma pré marcação determinada no roteiro, a qual vai descrevendo em rubrica todas as ações. É como se o diretor criasse outro roteiro, apenas para a sua orientação e dos atores.

Ao lado de cada fala é colocada a descrição da ação que deve acompanhá-la e geralmente essa, sugere um plano diferente. Junto com as falas, há rubricas em negrito, que indicam o que o personagem deverá fazer quando está dizendo aquela fala.

Abaixo veremos um exemplo de um trecho do roteiro original do filme Romance, e depois, com as anotações de Guel.

Roteiro Original

CENA 20 – TEATRO – BASTIDORES

Na saída de cena os atores confraternizam.

ANA (para Afonso, declamando)

E a paixão há de ser como a noite (pausa)… eterna.

AFONSO

A pausa não precisava ser tão longa.

ANA

Foi perfeita.  Foi no tamanho… pausa… perfeito.

AFONSO

Tem razão.

ANA

Foi lindo.

AFONSO

Foi.

ANA

É só isso que você tem para me dizer? “Foi”. Três letras, uma para cada mês de ensaio.

AFONSO (Recitando)

“Que importa o som da minha voz? É o som do meu coração que devíeis ouvir”.

FERNANDA (Entrando)

O Danilo Brezzi está lá fora esperando pra falar.

ANA

É?!

FERNANDA (Pra Afonso)

Vai produzir a próxima novela das sete, capaz de lhe convidar pra dirigir.

AFONSO

Parei com televisão. Não tenho mais nem aparelho.

ANA

Tem sim.

AFONSO

Mas não vejo.

ANA

Vê sim, mais que eu.

Roteiro com marcações de Guel Arraes

CENA 20 – TEATRO – CAMARIM

Na saída de cena os atores confraternizam.

/…luzes do espelho do camarim em primeiro plano , ” adivinhamos” Ana e Afonso em segundo plano no reflexo do espelho, beijando-se; som dos aplausos sumindo em fade out/

ANA (para Afonso, declamando)

/saindo do beijo/ E a paixão há de ser como a noite… (pausa)/beija novamente. Sai do beijo e diz o final da fala ainda abraçada, tombando a cabeça pra trás como se desmaiasse de êxtase/… eterna.

AFONSO

A pausa não precisava ser tão longa.

ANA

/” acorda” , fala pertinho dele/ /Foi perfeita. /se afasta numa pirueta, dançando de brincadeira /Foi no tamanho…/congela dando um breque/ pausa… /larga-se numa cadeira, de costas pra ele/ perfeito.

AFONSO

Tem razão.

ANA

/encostada no espaldar da cadeira, jogando a cabeça pra trás, olhando pra ele, estendendo os braços pra chama-lo/Foi lindo.

AFONSO

/se aproxima por trás, curva-se beijando-a /Foi.

ANA

/os dois ficam com os rostos bem juntinhos, invertidos/

É só isso que você tem para me dizer? “Foi”. /senta, vira/Três letras, uma para cada mês de ensaio.

AFONSO (Recitando)

/pega a mão dela, beijando-a e ajoelhando

ANA-se ou curvando-se, teatral/ “Que importa o som da minha voz? É o som do meu coração/põe a mão dela no coração dele/ que devíeis ouvir”./beijam-se/

FERNANDA (Entrando)

/fecha a porta, entra, tudo rápido, meio excitada/O Danilo Brezzi está lá fora/off sobre os dois, Ana saindo do beijo, atenta, Afonso se ergeu/ esperando pra falar.

ANA

/levanta pra se arrumar/É?!

FERNANDA (Pra Afonso)

Ele produz ” Pérolas e Porcos”, /Afonso está passando pro lado dela que se vira pra ele, vai saindo/ a novela das sete.

AFONSO

Não vejo televisão. Não tenho nem aparelho.

/Fernanda saiu fechando a porta/

ANA

/soltando os fechos do vestido /Tem sim.

AFONSO

Mas não vejo.

ANA

Vê sim, mais que eu.

O diretor realiza essas marcações, cena por cena, pelo menos dois meses antes da filmagem, e a apesar de cada fala ser praticamente um plano, ele não define previamente um enquadramento.

Apesar de dar condições a seus atores de improvisar, Guel Arraes não trabalha muito com o improviso, quando adiciona uma ideia ou outra, o faz de forma que não seja nada que fique marcado ou que interfira realmente na obra. O diretor acredita que, para que um improviso dessa natureza dê certo, o processo deverá ser coletivo, deverá ser desde o começo criado junto com a equipe e com o elenco, o que nem sempre é possível pelas condições de produção demandadas em um filme.

Guel atribui a não improvisação, uma característica bem pessoal, por trabalhar muito na elaboração das coisas relacionadas a seu filme e com o máximo de antecedência possível, para assim poder sempre melhorar seu trabalho, segundo suas concepções.

Depois das marcações feitas no roteiro e mostradas para os atores, Guel faz uma leitura de mesa com os mesmos, e após várias leituras para treinar entonações e pausas, o diretor e os atores levantam-se para marcar as ações físicas.

É possível encontrarmos uma parte desse ensaio (do trecho do roteiro mostrado acima), no site You Tube , o qual podemos ver abaixo:

Nesse mesmo site encontramos o resultado final do ensaio, a cena filmada, a qual também veremos abaixo:

Guel acredita que, se essas marcas feitas durante o ensaio forem orgânicas para o ator, elas o ajudarão a resolver aquela cena específica. Ele repete as marcações até acharem que estão da forma que ele imaginou para o filme.

A contribuição dos atores é algo fundamental para o diretor, ele conta muitas vezes com os comentários dos atores para melhoria das cenas e lhes dá liberdade para isso. O diretor não participa da construção dos personagens propriamente dita, deixa a cargo do ator para que o mesmo determine características íntimas do personagem de acordo com as instruções dadas no roteiro e das instruções do diretor, porém lhes dá suporte quando alguma dúvida surge.

Diretores como Guel Arraes mostram mais uma evolução da linguagem cinematográfica em constante movimento, pois ao preparar atores, o diretor consegue imprimir através destes, características narrativas que seriam imperceptíveis sem os mesmos.

Há pouco tempo a arte cinematográfica preocupa-se em preparar os atores individualmente antes das gravações (herança vinda do teatro), e atualmente há uma especialização em direção de atores, os quais se dedicam apenas a preparar bem um ator antes da filmagem, vale pensar.

É importante lembrarmos, por fim, que este foi apenas um método diante de vários existentes, e que outros ainda serão criados, reciclados, mesclados… O principal objetivo desse ensaio foi mostrar como a preparação de atores é importante e nesse caso, por um diretor em particular, e, ainda como traz benefícios à arte cinematográfica, de modo geral.

BIBLIOGRAFIA

ROCHA, Maria Eduarda da Mota. Guel Arraes e TV Globo: Tensões entre a Arte e a Indústria. Trabalho apresentado ao NP de Comunicação Audiovisual, integrante do XXXI Congresso Brasileiro de Ciênciasda Comunicação, realizado em Natal no ano de 2008.

FIGUEIROA, Alexandre e FECHINE Yvana. Guel Arraes – Um Inventor No Audiovisual Brasileiro, Recife -PB, Companhia Editora de Pernambuco, 2008.

INTERNET:

Cinemascopio, http://cf.uol.com.br/cinemascopio, Entrevista com Guel Arraes: Gosto de direção que mostra serviço. Acessado em 01/07/09 às 23h09min.

FILMOGRAFIA

Romance, Guel Arraes, 2008, 109min.

Lígia Borba é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

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    tiago lopes santos

    gênio!

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