Natália Vestri *
Kusturica por Maradona
O que podemos chamar de objeto óbvio do documentário em questão seria, em qualquer lugar do mundo, polêmico e provocativo. No Brasil, então, o grau de provocação é elevado à quinta potência, afinal, não há como negar: Maradona foi, é e será um eterno causador de discórdias, que divide torcedores entre a adoração e a execração. Contribuindo com essa visão, o diretor iugoslavo Emir Kusturica trata o tema de forma parcial, ovacionando seu ídolo de forma cega, quase ingênua, como se os defeitos do jogador fossem também suas qualidades, elementos de um conjunto de pré-requisitos que fazem de Maradona o melhor jogador do mundo.
Se algum brasileiro concorda com essa visão, tenho confiança de que jamais assumiria isso, talvez nem mesmo para si, mas aquiescer com esse ponto de vista não é importante para apreciar esse filme. Ele cativa, pouco a pouco, fazendo com que o espectador abandone gradualmente o sentimento de indignação para simpatizar-se com o diretor, com a narrativa e com o próprio jogador.
Kusturica utiliza animações, registros quase encenados para a câmera sem a presença do diretor, imagens de arquivos e, principalmente, entrevistas e registros intermediados por Emir Kusturica, costurando uma trajetória de vida conturbada. Ao buscar seu tema, o diretor parece uma criança, nervosa e ansiosa pelo encontro com seu ídolo, enquanto o jogador, embora fale de forma aberta sobre assuntos como o gol de La Mano de Dios, parece contar uma história batida e quase encenada, sem muita espontaneidade ou simpatia.
Kusturica constrói Maradona como um revolucionário que escolheu o esporte como forma de expressão, “o Sex Pistols do futebol”, que experimentou todo o tipo de diversão e autodestruição, renascendo das cinzas, com uma abordagem ingênua e incômoda, como a demonstração de um fanatismo infantil que se constrói através de uma parcialidade óbvia. Um dos encantos do filme, no entanto, está no avançar da relação de Kusturica e Maradona, quando ela se estreita e o jogador parece deixar de encenar enquanto expõe idéias e facetas que ganham a simpatia do espectador. Ao mesmo tempo, o diretor abandona a visão de adoração de um ídolo e passa a admirar o homem que está diante dele, tanto pela trajetória profissional quanto, principalmente, pela trajetória de vida. E dessa forma, engraçado, sincero, provocador e ágil, Maradona revela ser mais um showman do que um jogador de futebol, um revolucionário, ou um Deus.
No entanto, por mais óbvio que pareça ser o objeto do filme, percebemos ao longo dele que o jogador argentino é um pretexto para que Emir Kusturica trabalhe seu real tema: ele mesmo. Intitulado, nos primeiros segundos do filme, como “o Diego Armando Maradona do mundo do cinema”, ele compara a vida profissional e pessoal do jogador com seus filmes e personagens, mostrando equivalências e cogitando a possibilidade de Maradona ter interpretado não um, mas todos eles. Exibindo trechos de filmes como Underground (1995) e Gato Preto, Gato Branco (1998), Kusturica revisa a sua obra, transformando o documentário sobre o jogador em um manual de sua filmografia. Ele usa Maradona para tratar de seus sentimentos, de suas angústias e de seus posicionamentos a respeito de seus filmes, reafirmando a idéia de Samuel Butler de que toda a obra de um homem é sempre o seu auto-retrato.
*Natália Vestri é graduada em Audiovisual no Centro Universitário Senac.