Dogs & Water (Anders Nilsen, 2004)

Tiago Canário*

“You know… we’re really getting anywhere. Not that I’m complaining, I’m just… you know… pointing it out as a fact” *, diz o jovem. À sua frente, um grande deserto.

Obra do norte-americano Anders Nielsen, Dogs & Waters foi lançado em 2004 e se tornou um dos principais trabalhos do artista gráfico. Marcado por um forte lirismo, por uma atmosfera oscilante entre o sonho e a realidade, o quadrinho traz a narrativa de uma confusa jornada. Em meio ao nada, um andarilho percorre uma estrada deserta com um urso de pelúcia e uma mochila nas costas. Não há passado nem perspectivas, apenas um estranho e incongruente contínuo. Quem é o personagem, o local onde suas ações se desenvolvem, para onde vai, o porquê, nada disso importa. O leitor se depara, aqui, com um vagar seco e angustiante.

Ao contrário de qualquer suposta liberdade, o personagem em questão (este ente não nomeado) vaga não pelas possibilidades que seu caminho oferece, mas por ser sua única saída – crua e sem esperanças. Cada sequência e cada passo fazem novo convite para a interpretação do leitor, que passa a tentar encontrar significados em cada evento. E, em toda a sua amplidão, impele-o a acompanhar o jovem, a compartilhar sua perda, a buscar explicações.

Sem divisórias de quadros, cores e dialogos extensos a narrativa se confunde com a jornada do personagem.

Como prólogo, ao abrir a obra – antes do início da narrativa e mesmo do aparato técnico que identifica a produção impressa – há uma imagem de página dupla. Esta, a primeira informação após o virar da capa, mostra um grande mar e o horizonte, o encontro com o céu. No canto direito, boia um remo solitário – boia inexoravelmente, sem alternativa, como o seguir do protagonista. O mar – ou water, que dá título ao romance – cria uma narrativa em paralelo, intensificando sua carga semântica.

Se o protagonista vaga por um deserto não identificado, o grande mar se mostra com a mesma (falta de) possibilidade. Com sequências mais curtas e em menor quantidade (intercaladas com as anteriores, do deserto), em traço azul, são revelados sonhos/devaneios do personagem – momentos que funcionam não como um escapismo, mas como uma tradução de sua perda e de sua solidão.

Tanto o deserto como o mar são ambientes metafóricos em "Dog's & Water"

Para a construção de sua carga emotiva, em traço leve e limpo, sem sombreamento ou exploração de cores, a obra se detém (ao contrário) no uso do branco – em parte, do próprio vazio. De certo modo, a brancura se transforma em uma neblina, em uma densa cortina que permite entrever apenas alguns poucos momentos. E não há limites: os requadros inexistem e cada ação parece se confundir com outras ao seu redor. Em alguns momentos, as sequências dividem os mesmos traços. A obra assume um grande fluxo compulsório, os momentos se sucedem e se entrecruzam, sem estabilidade, configurando-se sobre um plano movediço. O horizonte é tão estéril quanto o solo que se pisa, perdido em meio ao nada.

A construção de Nilsen, por sua vez, busca exaurir o personagem. O ponto de vista dos quadros se alterna sucessivamente, explorando diferentes ângulos de visão, como se o leitor gravitasse ao seu redor. O recurso, aliás, mais do que “dissecar” o protagonista ou mesmo reforçar a nulidade do ambiente, sugere a impressão de uma grande confusão. O personagem não sabe para onde caminha e o leitor sabe menos ainda de sua direção. Não é possível prever, sequer, se as ações se desenvolvem em um percurso retilíneo.

Tão secas quanto seu redor, suas relações. De início, vaga perdido em um diálogo monocórdio com seu urso de pelúcia. (Klonopin) Mais à frente, encontra-se com outros seres humanos, mas aparentemente tão (ou mais) perdidos do que ele. As falas não se estendem por muito tempo ou com profundidade, resumindo-se, boa parte das vezes, a divagações, hesitações ou recursos retóricos.

Quanto às ações, de um lado, a insignificância; de outro, a surpresa. Se parte dos eventos oscila entre pequenos gestos repetitivos e o esmiuçar de movimentos desnecessários (parte da rotina débil e viciada desse andarilho sem rumo); outra parte surpreende ao quebrar com as expectativas e colocar o protagonista frente a frente com um grupo de alces ou um acidente de helicóptero, o improvável.

Dogs & Water, em sua marcha indelével, se mostra tão forte e metafórica quanto instigante. Sua sucessão de eventos, caracterizados por fluidez e entrecruzamento, parecem criar uma grande sequência ininterrupta. É uma narrativa de um só fôlego, um fluxo indivisível, como sua história.

* “Você sabe … na realidade não chegaremos a lugar algum. Não que eu esteja reclamando, estou apenas … você sabe … apontando isso como um fato”.

Tiago Canário*Jornalista e pesquisador de narrativas em quadrinhos no mestrado em Análise de Produtos e Linguagens da Cultura Mediática, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia – PPGCCC/UFBA.

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