João Paulo Capelotti*
O adultério é tabu desde o início da própria vida em sociedade e, talvez por isso, um dos temas mais discutidos pelas diversas manifestações culturais que a acompanham. Um sonho de amor, produção italiana do ano retrasado que só agora chega aos cinemas brasileiros, não inova tanto a trama clássica do adultério, procurando investir, por outro lado, na maneira como ela é contada.
Tilda Swinton dá vida a Emma, mulher de meia-idade de origem russa, residente na Itália desde que se casou com o Sr. Tancredi Recchi (Pippo Delbono), um rico industrial de Milão. Numa noite de neve intensa, ao preparar em sua casa o jantar de aniversário do sogro (Gabriele Ferzetti), fundador do império têxtil da família, conhece Antonio (Edoardo Gabbriellini), rapaz que conquistou o primeiro lugar num exame de seleção, logo à frente de seu filho Edoardo (Flavio Parenti). Gentilmente, Antonio oferece um bolo como sinal de cordialidade ao perdedor, que acaba se tornando seu amigo e sócio num restaurante. Retribuindo as amabilidades, Emma e sua sogra Allegra (Marisa Berenson) almoçam no restaurante de Antonio, e provam o talento genuíno do cozinheiro em preparar pratos surpreendentes pelo visual e pelo sabor. O prazer sensorial despertado em Emma pelos pratos de Antonio funciona como o detonador do tórrido romance que desponta entre eles – que, como não poderia deixar de ser, aguarda um final trágico.
Da mesma forma que em Como água para chocolate (Alfonso Arau, 1992), o prazer do paladar é um arremedo de prazer sexual. Mas enquanto no filme mexicano Tita (Lumi Cavazos) mantinha “uma relação sexual pela comida” enquanto já separada de seu amado Pedro (Marco Leonardi), em Um sonho de amor a boa cozinha representa o fator de atração. Antonio não é bonito, nem rico, nem tem conversa envolvente. É absurdamente comum, a não ser pelo extraordinário dom que possui de capturar e transmitir o sabor ideal, quase divino, a seus pratos.
A fusão dos amantes num corpo só é metaforizada na receita de oucha, sopa russa ensinada por Emma e executada à perfeição, e com melhorias, por Antonio. É ao tomar essa sopa que Edoardo perceberá o adultério da mãe e desencadeará a grande tragédia que, de certa maneira, sobrevém para punir o casal, como sempre ocorre nas histórias do gênero, de forte conotação moral.
Edoardo, cuja infantilidade é bem retratada pela direção de arte de seu quarto (principalmente pelo urso de pelúcia), parece nutrir um velado amor incestuoso por sua mãe. Seus conflitos com o pai são outra pista disso. Já Emma – palíndromo para “Amme” – é, como diz o título original, o próprio amor, dedicando a cada pessoa uma diferente dimensão dele: a Antonio dedica o amor carnal; a Edoardo, sua mais profunda ligação materna; a Betta (Alba Rohrwacher), sua filha recentemente assumida lésbica, a compreensão; à empregada Ida (Maria Paiato), amizade que transborda a relação de trabalho.
Algo poderia ser dito também sobre a escolha do nome Emma não ser aleatória e remeter, claro, a Emma Bovary, a adúltera do clássico romance de Gustave Flaubert. Ou ainda sobre as intervenções da economia globalizada na trama, em claro alerta de que o mundo mudou, presente na aquisição da indústria da família por um empresário indiano.
Mas os grandes esforços do diretor Luca Guadagnino realmente se dirigem ao apelo sensorial de seu filme, obtido principalmente com a ótima interação entre fotografia, direção de arte, figurino e montagem.
Guadagnino busca ressaltar o sabor e o aroma – e as reações de genuíno prazer que despertam em quem degusta os pratos de Antonio – por meio de planos muito próximos à comida e ao uso discreto da câmera lenta.
Para retratar a evolução do romance, existe uma escolha clara dos elementos cênicos. A noite em que o casal de amantes se conhece é de inverno rigoroso, e os tons dos figurinos criados por Antonella Cannarozzi (indicada ao Oscar da categoria neste ano) são escuros: Emma usa um vestido roxo, e Antonio uma roupa inteiramente preta. Por outro lado, o primeiro contato dela com a comida de Antonio ocorre num dia ensolarado de primavera, ocasião em que Emma veste um vibrante vestido vermelho. E quando a paixão de ambos finalmente explode, ela veste uma combinação de azul claro e laranja. Nas cenas mais tórridas, o calor do dia é quase palpável através da tela: não há uma nuvem no céu, os insetos estão inquietos no jardim, os raios de sol aquecem os corpos dos protagonistas. Após a tragédia dos minutos finais, Emma está de luto em um sóbrio vestido preto. Enquanto isso, chove torrencialmente, e a música orquestrada cresce a ponto de tornar-se quase ensurdecedora.
A mencionada tragédia dos minutos finais, porém, não é a mesma tragédia das últimas páginas dos romances clássicos sobre o adultério. Enquanto a Luísa de O primo Basílio e a Emma de Madame Bovary são punidas com a morte, Um sonho de amor consente a união do casal de amantes, ainda que esta mal se perceba nas cenas escuras que encerram o filme. A composição, mais semelhante às gélidas cenas iniciais, é completamente oposta aos fotogramas ensolarados e quentes dos momentos mais tórridos dos personagens. A impressão é de que, embora a tragédia não tenha sido mais que uma triste fatalidade, ainda assim sua sombra irá pairar para sobre eles para sempre. É como se, para os instantes de felicidade dos amantes, houvesse a contrapartida do risco aceito não só da mágoa ou da quebra de confiança do cônjuge traído, mas também da produção de algo verdadeiramente trágico.
*João Paulo Capelotti é graduado em Direito pela UNESP/Franca. Mestrando em Direito das Relações Sociais na UFPR.