Medo e Delírio (Terry Gilliam, 1998)

Priscila Lourenção*

A jornada do homem em meio ao delírio humano no filme de Terry Gilliam

Cartaz original do Filme " Medo e Delírio"

Cenas de protesto da década de 1960, uma pequena frase em tamanho, porém grandiosa em significado: “He who makes a beast of himself, gets rid of the pain of being a man” de Samuel Johnson [1], e letras como em sangue para o título do filme, constroem a introdução de “Medo e Delírio em Las Vegas”, dirigido em 1998 por Terry Gilliam, membro de um dos maiores grupos de humor inglês, de grande sucesso nos anos 70 e 80 na TV e no Cinema, o Monty Python.

Estamos no deserto de Nevada, Estados Unidos, em 1971, a caminho de Las Vegas quando dois personagens excêntricos são introduzidos, iniciando-se a narrativa do proprio filme contada por seu personagem principal Raoul Duke, interpretado pelo ator estadunidense Johnny Depp. Aqui, se faz necessário contextualizar a narrativa em relação às suas origens e referências. O filme de Terry Gilliam é uma adaptação de uma das obras mais conhecidas do escritor norte-americano Hunter S. Thompson, “Fear and loathing in Las Vegas”. O diretor, conhecido também por explorar elementos surrealistas na narrativa de seus filmes, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, foi um excelente guia para a perturbadora jornada do alter ego de Thompson. Conhecer Hunter S. Thompson e o que ele representou para a literatura e para a cultura em geral é de extrema importância para a própria compreensão do filme de Gilliam.

Hunter S. Thompson foi um escritor e jornalista nascido nos Estados Unidos e de grande influência na contracultura dos anos 60. Criou a partir de seus escritos e livros uma nova forma de jornalismo, o jornalismo Gonzo, no qual o aspecto mais importante não são os fatos em si, mas o próprio autor. Contratado na década de 1960 pela revista Rolling Stone, Thompson inovou a partir de uma cobertura subjetiva dos eventos que precisaria narrar (ao seu modo de olhar). Ao invés de descrever os fatos no que era conhecido como formato padrão jornalístico, ele tecia ácidas críticas à conjuntura política nacional e à sociedade norte-americana, ao american way of life, aproximando-se sempre da literatura.

O escritor e jornalista Hunter S. Thompson

A presença de Hunter S. Thompson na cultura em geral se explica por todo o contexto vivido desde o final da Segunda Guerra Mundial, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Foi durante a Guerra Fria que surgiu uma geração ferida em farrapos, cindida e desiludida com as vias escolhidas pela própria humanidade em relação ao mundo e seu futuro. É neste contexto que é possível se entender a década de 1950 do movimento Beat e toda a Love Generation dos anos 60 nos Estados Unidos [2], assim como se explica o maio de 1968 na França. Thompson é fruto do contexto que envolve a Guerra do Vietnã, grande referencial das guerras entre superpotências e os países periféricos do globo. Sua geração foi marcada por destruições, mas também por um forte sentimento de esperança, período de grande efervescência, tanto política como cultural, no qual nascem escritores, músicos e artistas dos mais diversos meios, claramente preocupados com a transformação – ou talvez melhor, revolução – da realidade.

Todos estes elementos e todo este contexto surgem às claras em algumas cenas do filme, como a inicial filmada em preto-e-branco, que mostra os protestos de rua contra a própria Guerra do Vietnã. Mas, há as cenas que permeiam sutilmente toda a narrativa de Medo e Delírio, como as do quarto de hotel, de reflexão da personagem de Thompson, seu alter ego Raoul Duke, que narra todos os acontecimentos no decorrer de sua jornada.

Cena do filme "Medo e Delírio"

A história então se inicia com uma viagem de carro no deserto de Nevada, apresentando as duas principais personagens, Raoul Duke e seu companheiro e advogado Dr. Gonzo, o ator Benicio Del Toro, até Las Vegas. Logo percebe-se que são duas figuras estranhas, claros representantes da cultura subversiva e estão em um primeiro momento a caminho de um trabalho de Duke como correspondente jornalístico de um evento de corrida de motos, a Mint 400. Mas, que na realidade ao longo de toda a narrativa trata-se de uma viagem pessoal regada a drogas, desprendimento e loucura.

Já no início, Duke descreve o “arsenal” que carregam, principalmente LSD, mescalina e éter, drogas tão comuns na contracultura dos anos 60, voltadas para a expansão da consciência e a liberdade de expressão.

O cenário do filme, a cidade de Las Vegas, na qual quase toda a narrativa se passa, tem um importante significado simbólico. Erguida e desenvolvida em meio à aridez e esterilidade de um deserto, ela representa o resultado de toda a moral da sociedade norte-americana. Não por menos, o próprio Duke diz ser Las Vegas o nervo central do sonho americano “(…) no seu melhor Horatio Alger” [3]. Claramente movida pelos cassinos e pelo dinheiro, voltada para o entretenimento e o espetáculo, a cidade representa o ápice do que o sonho americano pôde cultivar e até onde ele consegue chegar. O homem, com seu trabalho, vencendo  os obstáculos de um deserto estéril, constrói uma das mais importantes e ricas cidades dos Estados Unidos, tendo por objetivo o consumismo e a criação de uma cultura do espetáculo. Esta superficialidade característica das relações já desprovidas do sentido humano, a plasticidade que a lógica do capitalismo se insere nos espaços, também é alvo de crítica em um rápido diálogo reflexivo de Raoul Duke, em um cassino antes do show de Debbie Reynolds [4], reflete:

O lugar cheirava a fórmica e a palmeiras de plástico. É óbvio que se tratava de um refúgio fino para grandes gastadores.

E é assim, ao passear por diversos locais em Las Vegas, em meio à loucura de mescalina, LSD e éter, que Duke traça a crítica geral da sociedade norte-americana.  Na “Conferência Nacional dos Promotores Públicos” representantes da lei e da ordem são retratados com extremo conservadorismo e clara ignorância. Durante o evento, Duke com clara ironia descreve o objetivo de sua viagem e a crítica que está intrínseca em sua postura de loucura e viagens com as drogas contra a moral e o caráter da sociedade:

Nossa viagem era diferente: iria ser uma afirmação de tudo o que é certo e verdadeiro em nosso caráter (caráter nacional)[5]. Uma continência física, às fantásticas possibilidades de vida neste país. Mas só para aqueles com firmeza de caráter.

Esta frase é dita em um rápido quadro, Duke e Dr. Gonzo, logo depois dos preparativos para a ida à Las Vegas, ingerem mescalina e vão para a praia. É onde surge a bandeira norte-americana que cobre as costas de Duke.

A bandeira dos Estados Unidos torna-se um importante signo durante todo o filme. Diversas vezes ela entra em cena: em um canto escuro do quarto do hotel, como uma capa que cobre a personagem principal, no tribunal imaginário, no capô do carro. O interessante é que, com exceção do quadro envolvendo o tribunal – imaginado por Duke como seu pesadelo da repressão do sistema judiciário norte-americano – a bandeira sempre aparece como signo de um mau estado, de desleixo e descaso quanto ao respeito às simbologias de conquistas e domínios heróicos e históricos de seu país, dos quais a maioria de sua nação tanto se orgulha até hoje. E claro, do qual todo o mundo compreende seu domínio e objetivo quanto nação imperialista, de paz e democracia. Esta bandeira que representa a moral estadunidense tão inflamada e hasteada em diversos outros filmes, passa uma importante mensagem de deterioramento e desgaste de sua própria ideia e ideal de sociedade.

Até mesmo a imprensa nacional, da qual Raoul Duke – e Hunter S. Thompson – faz parte, não deixa de ser alvo de sua ironia com uma pitada de cinismo. A famosa “Mint 400” é o cenário para apresentar o que Duke chama de “a nata da imprensa nacional”: os jornalistas bebendo e jogando cartas em meio à poeira desértica de Nevada, representando toda a indiferença de estarem ou não ali, da relevância ou não do evento. É neste cenário que um diálogo importante acontece entre Duke e outro jornalista:

Jornalista: Um final adequado para os anos 60. Ali espancado por um hambúrguer humano.

Raoul Duke: Ambos os Kennedys assassinados por mutantes.

Este diálogo acerca do combate entre os pugilistas Muhammad Ali e Joe Frazier [6] é bastante representativo e sustenta uma análise reflexiva de todo o contexto histórico político no qual também se situa a história do filme, assim como aponta para a questão talvez mais importante da narrativa: o fim da esperança de transformação da realidade junto ao sentimento de ceticismo pós-década de 60. De certa forma, um sentimento de “fim” das grandes esperanças de transformação iniciadas no começo do século XX com as revoluções socialistas, e que, já em 1970, pareciam estar dissolvidas em um passado remoto. É neste momento que o ápice do filme ocorre em um quarto de hotel, e talvez seja aqui que a mensagem mais importante e interessante de Medo e delírio é transmitida: a história de um “sobrevivente” dos grandes acontecimentos e das grandes esperanças de mudança do mundo, um indivíduo que viu e sentiu concretamente ser parte e sujeito da História, pertencente a todas as narrativas históricas que a humanidade construiu contra a opressão e a repressão, e a exploração do homem pelo homem. Raoul Duke é uma figura simbólica de um período em transição e de um mundo cindido em dois, antes de 1960 e após 1970:

Havia loucura em todas as direções, o tempo todo. Podíamos acender baseados em qualquer lugar. Havia um fantástico sentimento universal de estarmos agindo bem, de estarmos ganhando.

E penso que isso era a forma de lidar com um sentimento de inevitável vitória sobre as antiquadas forças do mal, não num sentindo militar e mesquinho. Não precisávamos disso. Nossa energia triunfaria simplesmente. Tínhamos todo o ímpeto. Estávamos na crista de uma alta e belíssima onda. Por isso agora, menos de cinco anos depois, podemos subir em uma colina de Las Vegas e olhar para o oeste, e com olhos de quem quer ver, quase podemos vislumbrar a alta linha de água. O lugar onde a onda finalmente arrebentou antes de recuar de novo.

Bela cena na qual Raoul Duke olha através da janela do seu quarto de hotel e, em sequência, imagens dos protestos na rua e dos festivais de Woodstock surgem em preto-e-branco – o passado retratado em oposição ao colorido do presente. Aqui há uma íntima relação com as últimas e belas reflexões da personagem de Duke, ressaltando Hunter S. Thompson, que fecharão o filme, porém abrirão novas possibilidades de reflexão e crítica, não apenas da própria realidade, ma a respeito de quem são os homens, de quem somos nós e o que fazemos e faremos no agora.

Cena do filme 'Medoe Delírio"

Medo e Delírio não é apenas um “filme de drogas”, como facilmente é aceito rotular algumas produções, mas é uma viagem – ou seria melhor “viagens”? -, uma saga de um indivíduo único, porém com altivos sentimentos universais, para dentro e para fora de si, sempre à procura de perguntas do que ocorreu ao mundo, aos sonhos e à humanidade desumanizada. Não é a toa que na introdução desta jornada apareça a frase “He who makes a beast of himself, gets rid of the pain of being a man”, um homem que faz de si mesmo um monstro para não ter de sofrer como um homem. Uma jornada em meio à loucura, ao medo e ao delírio das esperanças que ainda permanecem e das incertezas que as acompanham, no caminhar da essência do próprio homem sobre o mundo.

Medo e Delírio é um ótimo exemplo das potencialidades exploradas na união da literatura, do cinema e da política, e demonstra a possibilidade de se confluir as preocupaçoes que estão na ordem do dia, do indivívduo e sua existência no mundo. Como resultado encontramos ótimas atuações e excelente direção por parte de Terry Gilliam, que se preocupa com o traçado trágico e cômico da sua crítica social, impregnada também de fantasia, ação e vida.

Notas

[1] “Aquele que transforma a si mesmo em monstro, livra-se da dor de ser um homem”. Samuel Johnson, poeta e ensaísta do século XVIII

[2] A geração beat que surge em meados dos anos 50 e começo dos anos 60 tiveram como grandes resentantes Jack Kerouac, Neal Cassady, Allen Ginsberg e William Burroughs. Um grupo de poetas, escritores e artistas da cultura subversiva e marginal. Nos seus escritos, privilegiavam a espontaneidade, o fluxo de consciência e expansão da mesma. Não à toa, a criatividade literária caminhava junto com inúmeras viagens com as drogas. Grandes questionadores da realidade e conjuntura norte-americana, são representantes da contracultura que culmina nos movimentos hippies e da geração do amor dos anos 60.Em maio de 1968, estudantes e operários entram em greve e protestam juntos nas ruas da França, não apenas contra o governo de Charles de Gaulle, mas como um movimento universal e unificado, tinham amplas lutas, como contra a guerra do Vietnã, a intervenção norte-americana, as condições trabalhistas, a repressão contra os estudantes.

[3] Horatio Alger foi um escritor norte-americano do século XIX. Seus escritos são conhecidos por estabelecerem uma moral e possibilidade de se atingir o “sonho americano” , o sucesso e a ascensão com o trabalho duro, coragem e determinação. Até mesmo os “jovens marginais” poderiam atingi-lo segundo seus preceitos.

[4] Debbie Reynolds é atriz, cantora e sançarina norte-americana.

[5] Parenteses do editor

[6] Combate entre os pugilistas Muhammad Ali e Joe Frazier. Ali é considerado um dos melhores pugilistas do mundo até hoje. Conhecido nos anos 60 não apenas por sua maneira de lutar, mas por também por suas posições políticas, principalmente contra a discriminação contra os negros nos EUA.

Priscila Lourenção* é graduada em Ciências Sociais pela Unesp de Araraquara e graduanda em Imagem e Som pela UFSCar.

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Este post tem um comentário

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    É uma pena que o filme não tenha muito da critíca aos EUA e o humor negro de Hunter S. Thompson tenha sido escrachado neste “Medo e Delírio”. O livro possuí passagens que justificam ou ao menos tentam justificar o significado das drogas e os ideais daquela geração, enquanto o filme se foca simplesmente nos efeitos das drogas e na psicodelia de Las Vegas sem nenhum foco critíco, o que é uma pena, tornando o filme um mero entretenimento.

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