Pai e Filho (Alexander Sokurov, 2003)

Por Wanderson Lima*

Sabe-se de muitos criadores que mantiveram, por assim dizer, “padrões clássicos” de linguagem para representar conteúdos destoantes de tais padrões, para minar a confiança depositada nos meios de expressão: não poucos filmes de Buñuel, não poucos contos de Borges tiram-nos o solo comum exatamente por meio dessa estratégia de pôr em dissonância forma convencional e conteúdo invulgar. Mais raro que isso, pelo menos no cinema, é o vanguardismo às avessas praticado por Sokurov em alguns de seus filmes: ideias conservadoras revestidas em uma forma que é fruto de intensa experimentação (lembrando, desse modo, próceres do modernismo anglo-americano como Pound e Eliot, cuja relação com a tradição não era iconoclasta nem a crença no futuro se revertia de utopismo revolucionário).

Creio que assim pode ser definido Pai e Filho: uma obra experimental de um conservador. Toda pesquisa formal ali serve não para negar o passado e construir um modelo de arte futura, mas para construir a imagem de um mítico mundo virtual. Não sei se uso “conservador” com perfeito rigor. Quero sugerir que a atitude de Sokurov, neste Pai e Filho e em alguns outros filmes, é de um sujeito nostálgico e autocentrado, que olha por cima, com certo menosprezo, as frivolidades de sua época sem espírito; que sustenta como valores positivos tradição (russa) e individualidade; que se horroriza com a arte reduzida a entretenimento, tomando-a antes arte como tarefa humanizadora, desalienante.

Mas nem Pai e Filho, nem nenhuma outra obra de Sokurov, é um simples panfleto antimoderno ou mero exercício nostálgico. Como o anterior, Mãe e filho, só que em um nível de elaboração ligeiramente inferior, Pai e Filho é, antes de qualquer coisa, o filme de um rigoroso construtor de quadros, um pintor decadentista, um fabuloso criador de atmosferas que despreza olimpicamente a (suposta) vocação narrativa do cinema: sua obsessão é reinventar o mito do amor que enlaça pai e filho, um amor que é elevado por Sokurov a uma zona que embaraça as fronteiras entre o patológico e o sacral.

Pai e Filho trava uma batalha com os meios expressivos do cinema a fim de iluminar certas zonas do comportamento afetivo humano que não encontram expressão fácil. O inefável da relação pai e filho é sua suprema meta. Trata-se, por conseguinte, de um filme difícil, que se não for visto com dedicação integral passará pelo que não é (fato que discutirei mais adiante) e parecerá longuíssimo, mesmo não chegando a ter uma hora e meia de duração. Confesso: só da terceira tentativa o assisti por inteiro. Se o tivesse assistido numa sala de cinema (sem poder congelar as imagens ou repetir cenas) poderia fazer dele uma opinião pouco simpática. Poderia. E explico por quê. Como em outros filmes do diretor, o fluir narrativo é preterido pela “beleza difícil” de uma imagem antinatural, retrabalhada exaustivamente; por ângulos e enquadramentos inabituais que são verdadeiros achados seja pela beleza incomum, seja pela riqueza de sugestões acerca do estado psíquico dos dois protagonistas.

Parte da crítica só soube ver em Pai e Filho um requintado (e oco) formalismo; alguns chegaram a enxergar ali (o que enfureceu Sokurov, levando-o, em Cannes, a perder a compostura) uma apologia da homoafetividade incestuosa. As duas interpretações (ou deveria dizer “acusações”?) não são despropositadas, ainda que equívocas. Nem em Pai e Filho, nem em qualquer outro dos filmes do ciclo das relações familiares, preocupa a Sokurov elaborar uma interpretação desmitificadora dessas relações. A moldura que ele dá a tais relações é a do mito (só em Alexandra esse propósito soma-se a outros); o que é mostrado é o que há de universal, eterno, inefável, sacral em tais relações. Daí os títulos Mãe e filho dado ao primeiro filme e Pai e Filho ao segundo (nomes próprios negariam a universalidade do discurso que se constrói nessas obras); daí também que o terceiro filme se chame Alexandra e não “Avó e Neto”: nele a moldagem arquetípica disputa espaço com a história, Alexandra não é só a imagem da avó. Ora, essa recusa de Sokurov em descer às contingências históricas atuais e construir um discurso sobre a “família moderna” (drogas e desempregos como problemas-chave, jogos de poder, inversão hierárquica de valores, diluição de seu modelo e outros clichês) é que faz com que críticos o acusem de formalismo estéril (essa acusação foi mais forte em Pai e Filho, escassa a respeito de Mãe e Filho e quase inexistente em relação à Alexandra).

O choque do público devido às fortes insinuações homoeróticas que permeiam as relações entre o pai e o filho no filme gerou uma desvirtuação do debate. Parte da imprensa sensacionalista restringiu a interpretação da película em acusar ou absolver o diretor em relação ao “escândalo”. Ora, independente da intenção ou não do diretor, as imagens estão lá e são ambíguas, sim. É impossível alguém minimamente sensato defender que não há essa ambigüidade na cena de abertura do filme. Porém, por mais que moralmente me desagrade, não preciso sequer recorrer à psicanálise para reconhecer que determinadas condições podem fazer aflorar com mais evidência a ambigüidade do amor que une o filho ao genitor. No caso do filme, fica evidente que a doença do pai, somado à seqüela (mais forte no genitor) deixada pela ausência da mãe, desencadeia os gestos excessivos, o cuidado pegajoso, os rompantes injustificados e o egoísmo que os fecha ao mundo, na celebração de um amor que liberta e prende; que por mais elevado que seja, assemelha-se, aos olhos profanos, a uma patologia. Uma frase do filme diz que “O amor de um pai crucifica”. É isto mesmo: ali estão dois crucificados, padecendo no paraíso.

*Wanderson Lima é escritor e professor de literatura da UESPI. Co-edita a revista dEsEnrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog Epigramas & epitáfios (http://epigramaseepitafios.blogspot.com.br/).

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