quando eu era vivo (marco dutra, 2013)

*por Daniel de Boni Ribeiro Lima

Quando eu era vivo gira em torno do retorno de Júnior (Marat Descartes), à antiga casa dos pais, após brigar com a esposa. A receptividade do pai viúvo (Antônio Fagundes) é fria e aborrecida. Inicialmente ele dorme no sofá da sala, pois a jovem estudante Bruna (Sandy Leah) aluga seu quarto. (leankitchenco) Mas aos poucos Júnior vai se envolvendo com os pertences da mãe (cuja causa mortis é desconhecida), entulhados numa pequena dispensa. Toda a ambientação do filme traz consigo um tom sugestivo de loucura. Desde a chegada de Júnior, quando ouvem-se gritos ensandecidos na rua, passando pela cena na qual a lâmpada do apartamento pisca misteriosamente, o que se vê na tela é um crescendo de terror. Pouco a pouco, os personagens vão sendo tragados pelas forças sinistras enraizadas no ambiente.

 A cada novo trabalho, Marco Dutra parece consolidar um estilo próprio de direção. Seu mais recente longa-metragem, Quando eu era vivo, apresenta características que têm sido recorrentes em sua breve filmografia. Assim como em Trabalhar Cansa (direção dividida com Juliana Rojas), a câmera percorre o espaço em planos-sequência a partir dos quais emana a atmosfera sugestiva de terror. Apesar de todo o apelo cômico e ingênuo que Sandy carrega enquanto pessoa pública, a direção de atores cuidadosa consegue extrair dela uma interpretação discreta que, se não arranca aplausos, também não compromete a qualidade dramatúrgica do filme.

Embora a utilização do famigerado arquétipo expressivo consagrado por Kubrick no rosto de Jack Nicholson em O iluminado soe gratuita, e a anuência ao terror clássico seja mais nítida do que em trabalhos anteriores, a inserção dos elementos comuns ao gênero (atmosfera claustrofóbica, suspense, imprevisibilidade, recordações de fatos estranhos) ainda se dá de modo não-espetacularizante. Segue sua busca pela revelação do extraordinário em sua dimensão prosaica. A memória marcante de Júnior é confrontada com o reencontro material do lar e da intimidade, o que produz o incomum e o bizarro.

Num certo sentido, Dutra elabora um estudo psicológico dos efeitos da educação familiar na constituição da própria subjetividade. Embora implícito no filme, é possível depreender a tese segundo a qual a morte da mãe gerou um trauma no irmão (diante do qual Júnior se depara ao fim da trama) a ponto de torná-lo esquizofrênico. Não obstante, o paternalismo implacável e a falta de afeto do pai parecem ter levado a graves consequências psíquicas em ambos os filhos. No caso de Júnior, parece ter moldado seu embotamento social, sua passividade e a preservação de uma certa infantilidade. O comportamento ancestral da mãe no ritual misterioso das máscaras de gesso ao qual submetia os filhos configura-se como via redentora para a própria família: o pai agora deve ser re-educado, e através do mesmo rito. É uma espécie de tratamento de choque que restitui na sequência final o que resta da paternidade em sua dimensão terna e sensível.

O que chama mais a atenção ao fim de Quando eu era vivo é a busca por uma certa autoralidade e por uma originalidade narrativa que, se não calcada em abstrações filosóficas ou engajamentos políticos, ao menos nos oferece uma obra de fruição estética inteligente numa produção nacional essencialmente dominada por pastiches repetitivos e dramas históricos.

*Daniel de Boni Ribeiro Lima é graduando do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos e editor da RUA

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