007 – Operação Skyfall (Sam Mendes, 2012)

Por João Paulo Capelotti*

“Qual é o seu hobby?”, pergunta Silva (Javier Bardem). James Bond (Daniel Craig) o encara e responde: “Ressurreição”. Bond referia-se ao fato de ter escapado da morte depois do insucesso de uma missão na Turquia. A resposta também não deixa de ser um exercício de metalinguagem, pois, depois de 50 anos e seis atores diferentes, as sobrevidas do espião criado por Ian Fleming são um feito notável. Da inconsciente mistura de sucesso lançada por Sean Connery em 007 Contra o Satânico Dr. No (Terrence Young, 1962) a um insuspeito casamento em 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade (Peter Hunt, 1967), James Bond conseguiu não só ser universalmente reconhecido pelo Martini batido, porém não mexido, mas também a proeza de se adaptar às discussões de seu tempo e de, como grande personagem que é, permitir as mais diversas leituras.

Neste 23º filme da série oficial, depois de ser dado como morto e passar um tempo desaparecido, Bond retorna a Londres quando o Serviço de Inteligência britânico sofre um ataque terrorista e a vida de sua chefe, M (Judi Dench), passa a ser ameaçada.

O fato de Skyfall ser um dos melhores filmes da franquia é ainda mais surpreendente se considerarmos todos os problemas que seu desenvolvimento teve. O hiato desde o anterior, Quantum of Solace (Marc Forster, 2008), é o maior existente entre dois filmes sem que houvesse substituição do ator que encarna o protagonista. A produção chegou a ser completamente paralisada devido à falência da MGM, estúdio que o bancou. Daniel Craig, de 44 anos, declarou publicamente sua preocupação, receando que a idade prejudique sua atuação em filmes futuros.

Com a MGM ainda em recuperação, o estúdio acabou aderindo à prática de inserir merchandising na trama. As intervenções publicitárias (entre as quais uma muito polêmica da cerveja Heineken) permitiram ao filme um gigantesco orçamento estimado em 200 milhões de dólares.

O principal benefício com o atraso das filmagens talvez tenha sido a consolidação do roteiro, que aproveita algo que estava no subtexto da série desde 007 Contra GoldenEye (Martin Campbell, 1995), com Pierce Brosnan, quando a talentosa Judi Dench assumiu o até então exclusivamente masculino papel de M. A figura materna de James Bond é confrontada com seu passado, ameaçada por todos os lados e levada para o centro da trama. Ela, que tem a baixa estatura satirizada em certo momento por Silva, mostra-se na verdade a encarnação humana do buldogue de porcelana que enfeita sua mesa. Inabalável em suas decisões e seca em suas atitudes, M é uma figura de força, que apesar das farpas típicas do humor britânico, guarda uma indiscutível relação de afeto com seu agente favorito.

Outra amostra de boa aliança entre roteiro e atuação vem do personagem Silva, que, apesar do pouco tempo de tela, é hipnotizante em suas aparições. Javier Bardem confere tridimensionalidade ao que nas mãos de muitos seria apenas uma caricatura. Silva, na verdade, é um espelho distorcido de James Bond: não obstante loiro e tão agente secreto quanto ele, o personagem não só é desprovido das melhores intenções, como se veste mal e tem sexualidade ambígua – e o modo como Bond reage a tudo isso gerou a cena mais comentada do filme.

Javier Bardem como "Silva"

Skyfall é também uma das raras ocasiões da série em que o roteiro não se centra nos esforços do agente secreto para salvar o mundo de uma organização maquiavélica – seja ela a S.P.E.C.T.R.E. dos tempos da Guerra Fria ou a Quantum dos anos 2000. Tal como em Permissão para Matar (John Glen, 1989), estrelado por Timothy Dalton, o tema central é bem menos ambicioso: pura e simples vingança.

Contudo, os filmes da série 007, por mais ingênuos que fossem nunca deixaram de ser comentários sociais e políticos de seu tempo. Na era Roger Moore, por exemplo, a agonizante travessia da fronteira da Alemanha Oriental para a Ocidental, no início de 007 Contra Octopussy (John Glen, 1983), dizia algo sobre o Muro de Berlim. Neste Skyfall, o vilão Silva, de origem abertamente latina, é um terrorista-mercenário – mais ou menos na mesma linha, aliás, de Le Chiffre (Mads Mikkelsen) em Casino Royale (Martin Campbell, 2006) e Dominic Greene (Mathieu Amalric) em Quantum of Solace. Uma determinada fala de M é ilustrativa: reportando-se à ministra que a interroga em uma audiência pública (Helen McCrory), ela ressalta que hoje em dia os inimigos não são mais países, não têm rosto conhecido. De fato, no cinema de ação ocidental, desde o fim da Guerra Fria, os vilões já não eram mais os russos (ou os nazistas, como em Indiana Jones), mas as grandes corporações. É sintomático que em 007 – O Amanhã Nunca Morre (Roger Spottiswoode, 1997), o vilão seja um magnata da mídia, e que em O Jardineiro Fiel (Fernando Meirelles, 2005) e O Legado Bourne (Tony Gilroy, 2012) os antagonistas ajam na interface da indústria farmacêutica com o Estado, lembrando os efeitos perniciosos da globalização que está à porta. Porém, desde o 11 de Setembro, o terrorismo, sem rosto e vindo dos países subdesenvolvidos, tomou o posto de maior ameaça.

É nesse contexto que se insere o outro grande mote de Skyfall: a necessidade de existir o espião. James Bond justifica a si mesmo ao resolver rusticamente, à moda antiga, sem tecnologias, o problema Silva, que havia sido posto à solta por grades controladas por computador. 007, que em GoldenEye foi chamado por M de “relíquia da Guerra Fria” e “dinossauro machista”, ainda é isso, de certo modo, do alto de sua frieza como assassino e conquistador de mulheres em escala industrial. A música tema, composta e cantada por Adele, já noticia que Bond pode ser despido de suas aparências, mas que sua verdadeira identidade, tal como a dos cavaleiros solitários, é indecifrável: “You may have my number / You can take my name / But you’ll never have my heart” (em tradução livre: “Você pode ter meu número / Você pode saber meu nome / Mas você nunca terá o meu coração”).

Toda essa análise contextual e em perspectiva tem a pretensão de demonstrar dois pontos importantes com relação à obra que se comenta. O primeiro é que, ao contrário do que alguns afirmaram, Skyfall não é o primeiro nem o único filme a retratar um aspecto mais humano de James Bond, que já havia aparecido, por exemplo, em 007 – O Espião que me Amava (Lewis Gilbert, 1977), e, principalmente, em 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade, em que ele (na única vez em que foi interpretado por George Lanzeby) se casa com Teresa (ou Tracy), Condessa de Vicenzo. Mas, realmente, foi só em 2005 que a profundidade psicológica do personagem foi melhor moldada e caiu nas graças do público e da crítica, em parte graças ao ótimo trabalho de Daniel Craig.

Em Casino Royale, seu Bond encarava-se com certo horror no espelho ao lavar as mãos ensanguentadas e ficava profundamente desolado com a paixão mal resolvida por Vesper Lynd (Eva Green). Em Skyfall, a humanidade de 007 é realçada por uma rápida lágrima que escorre de seus olhos em um dos instantes finais, bem como quando ele desaba, só, depois de um teste de exercícios físicos. Seus olhos nervosos durante a prova de tiro são outro indicativo de que ali, mais do que um ciborgue infalível, está um ser humano tensionado ao limite, mas que sabe que algo muito pior está por vir.

O segundo ponto é a dimensão histórica que a série 007 adquiriu em si mesma, e como a consciência desse papel de referencial icônico é percebido pelo filme, sem descuidar de estabelecer, ele mesmo, um diálogo com o restante da produção cinematográfica. Obviamente, essa percepção e esse diálogo também não são exclusivos de Skyfall. Citem-se, nesse sentido, as próprias tentativas mercadológicas de aproximar a franquia de sucessos temáticos do momento (o que já rendeu pontos baixos como a ação no espaço sideral à la Star Wars em 007 Contra o Foguete da Morte, de Lewis Gilbert, 1979, e o “modo Jason Bourne de filmar” em Quantum of Solace).

Neste Skyfall, a influência dominante no mercado é representada pela humanidade do herói, com inequívoca carga dramática – consagrada pela trilogia Batman de Christopher Nolan e ressaltada nos recentes O Espetacular Homem-Aranha (Marc Webb, 2012) e X-Men: Primeira Classe (Matthew Vaughn, 2011), entre outros. Mas talvez o exemplo mais eloquente de que o cinema de ação caminha nesse sentido venha do fato de os fortões infalíveis (Chuck Norris à frente) serem retratados com um misto de humor, nostalgia e condescendência em Os Mercenários 2 (Simon West, 2012).

A qualidade de Skyfall está justamente em aproveitar a tridimensionalização do herói (que faz muito bem ao personagem), sem descuidar de sua essência. Permita-se dizer que essa tendência, tal como o Martini do espião, é batida, mas não mexida, com o que ficou consagrado como marca registrada da série – isto é, há mais estudo de personagem, há mais nuances, mas sem que este filme de James Bond deixe de apresentar os elementos que os consagraram como tais. Isso se percebe em duas camadas. A primeira e mais óbvia contém a dimensão icônica do personagem (trilha sonora, ternos bem cortados, gadgets) e as referências a outros filmes da série (como o Aston Martin de 007 Contra Goldfinger (1964) e o apoio providencial de um réptil em 007 – Viva e Deixe Morrer (1973), ambos dirigidos por Guy Hamilton). A segunda camada se perfaz na utilização dos elementos clássicos aos filmes de ação que a própria franquia 007 indiscutivelmente ajudou a consolidar (e que hoje constituem o tripé da esmagadora maioria dos filmes do gênero): belas mulheres, que representam o interesse romântico/sexual do protagonista (com maior ou menor densidade dramática); trama internacional; e, claro, perseguições, tiros e explosões. Isso se revela principalmente na elegante cinematografia das cenas rodadas em Xangai: filmagem em grande escala, ressaltando o exotismo do lugar, mas sem descuidar de colocar uma femme fatale no edifício ao lado daquele em que transcorreu uma luta mortal.

Skyfall, portanto, é um 007 de equilíbrio. Como os outros filmes da série, têm um universo próprio e está longe de ser um retrato fiel do mundo da espionagem – que, como demonstrado em O Espião que Sabia Demais (Tomas Alfredson, 2011), envolve, sobretudo, burocracia, observação e paciência. Não obstante, avança com profundidade na psique do personagem, que se mostra algo mais do que as simples aparências de Bond, James Bond.

*João Paulo Capelloti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e doutorando e mestre em Direito pela UFPR.

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