Cine-Natureza-Canção
Por Ciro Lubliner*
A Luz do Tom documentário realizado pelo cineasta Nelson Pereira do Santos flui (e sobrevoa como veremos mais adiante) por entre três pilares essenciais: o cinema, a natureza e a música. É desta tríade que resulta a força principal do filme.
Há, já no próprio título uma multiplicidade de sugestões e interpretações para a íntima relação que se densificará durante todo o documentário entre cinema, natureza e música. Não tenho por objetivo esgotar as possibilidades deste título tão rico, porém algumas direções podem ser apontadas. A palavra luz remete diretamente à natureza (o que constitui o dia, a beleza de boa parte do universo), e ao cinema (pois sem ela este não seria nem mesmo possível), enquanto que Tom pode se referir tanto ao óbvio sentido do próprio nome do compositor brasileiro, quanto à música (tonalidade musical) e também ao cinema (tonalidade cromática). Cabe ainda enfatizar a ligação existente entre a cor e a música, pois há inclusive uma série de estudos sobre a cor de cada nota musical, com suas tonalidades específicas. A partir destes apontamentos abre-se um leque de interpretações do título como um todo, e todas estas interpretações reforçam os pontos de encontro entre a tríade que compõe o documentário. Pelo título, já é apresentada ao espectador a intenção do cineasta de, por meio da imagem em movimento, e no tempo, captar alguma espécie de aura, luminância emitida por esta figura tão forte que foi Antonio Carlos Jobim.
Mas afinal, que luz é essa tão peculiar que Tom vê, captura e emite?
No transcorrer do filme, a câmera parece se esforçar para alcançar as visões de Tom, seja em uma simples observação de uma paisagem ou nos momentos de criação de uma música, essa beleza que chegava a seus olhos, e que ele conseguia capturar, reter de modos altamente sensíveis e com força sublime, catártica. As belas paisagens que compõem as imagens do documentário transportam o olhar para instantes próximos aos vividos pelo compositor, na clara intenção de transmitir suas experiências e sensações, e enfim, a vontade de vida e o amor que por ela carregava. Esta experiência com a beleza do mundo, da natureza, pela qual atravessava Tom, e na qual ele conseguia vivenciar encantos bastante singulares, se mistura com seu exercício de composição musical. As melodias pareciam vir a ele assim como o canto dos pássaros a seus ouvidos e a beleza do oceano a seus olhos. É a partir desta verdadeira sinergia entre natureza e música que Nelson Pereira dos Santos encontra o ponto central da existência de Jobim, adicionando, então, mais um elemento a esta alquimia estética: o cinema.
As canções que pareciam brotar de um nada (neste caso nada além da natureza), que se faziam no compositor ao invés dele se fazer nelas, pareciam chegar em estado de quase completude, aptas a retenção de Tom. Esta leitura da forma criadora do maestro se aproxima de uma concepção produzida pelo psicanalista Wilfred Bion, definida como “proto-pensamentos”: os pensamentos sem pensadores. Segundo Bion, os proto-pensamentos subexistem antes de se tornarem efetivos pensamentos, como potências a serem incorporadas pelo ser, processo que só se materializa quando da aparição de um pensador, que os transformam em ato e prática ao pensá-lo. Na esteira deste conceito de Bion, Tom Jobim parece justamente capturar o que seriam espécies de proto-canções, que já se encontram soltas no ar (portanto na natureza), a espera de um alguém sensível o suficiente para notar suas presenças. Faz-se necessário, no entanto, afastar de alguma maneira uma visão idealista. Não se trata da mesma visão romântica do artista como um ser com a dádiva e o dom da inspiração. Como o próprio Tom Jobim afirmou em uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura, citando, no caso dele – já que esta frase já foi atribuída a inúmeras figuras – Stravinsky: “a criação é 95% transpiração e 5% inspiração”. Portanto, esta suposta “inspiração divina” do artista surge na verdade, no caso de Jobim, de uma intensa carga de sensibilidade desenvolvida e certamente exercitada em direção e em sintonia com a natureza e a música. Desde sua tenra infância o compositor parecia participar, solitariamente ou não, de rituais de encontro e/ou iniciação. É o caso de seu primeiro contato com o piano, com a praia e a natureza, e com suas esposas.
Em A Música segundo Tom Jobim, filme precedente, Nelson Pereira dos Santos concentrou seus esforços em um trabalho específico de pesquisa e montagem. Já em A Luz de Tom outros artifícios do labor cinematográfico são utilizados. Além de várias imagens aéreas e panorâmicas, temos o uso de gruas durante todo o filme, oferecendo ao espectador a possibilidade da experiência (e o olhar) do voo, tal qual os pássaros que Tom tanto admirava possuem, experiência extra-humana, suave e fluida. Na maioria das vezes estes voos da câmera se encontram e se despedem das personagens – as verdadeiras contadoras da história – as três mulheres provavelmente de maior importância no desenvolvimento e na vida do músico. A perspectiva destas figuras femininas – a irmã Helena Jobim, e as ex-mulheres Thereza Hermanny e Ana Lontra Jobim – é certamente ponto fundamental neste documentário. É possível perceber como a presença de quem está ao lado, em devota companhia, pode realmente alterar e desviar o curso dos acontecimentos, e a própria história de uma composição ou de um olhar. Esta questão lembra outro documentário em que a presença feminina na vida de um grande artista, na organização, no auxílio e no diálogo se faz bastante importante: José e Pilar do diretor português Miguel Gonçalves Mendes, que retrata os últimos anos de criação e vida (coisas que comprovadamente se confundem) de José Saramago na companhia de sua esposa Pilar.
A questão da memória permeia todo o filme, já que seus desdobramentos se dão exatamente a partir do testemunho dessas mulheres, que voltam-se ao tempo compartilhado ao lado do maestro para contar as estórias (como ouvimos Tom dizer no início do filme em um registro de arquivo de áudio da época em que apresentou um programa de rádio, onde dizia querer contar estórias – com “e” mesmo – sobre a música brasileira). Baseado no livro “Antonio Carlos Jobim – Um Homem Iluminado” (mais um título em que há a presença da luz) da irmã de Tom, Helena, as histórias contadas se fixam na lembrança de casos, momentos de intimidade no desenvolvimento do ser e do compositor que foi Tom Jobim. Há um claro desenrolar linear do tempo no documentário, assim como uma nítida separação entre as paisagens onde se encontram cada mulher, sendo o primeiro relato dado pela irmã em um espaço litorâneo (infância e juventude), depois pela primeira esposa Thereza em um sítio perto de montanhas (início no trabalho de composição orquestral e cancioneira) e finalmente da segunda esposa Ana no jardim botânico do Rio de Janeiro (novas perspectivas de produção e fase final da vida). Nota-se que as três contadoras atravessam o processo de encenação, provavelmente com algumas repetições, porém através de uma mise-èn-scene espontânea, onde o seu texto encontra-se decorado nas lembranças do passado, sendo seus discursos suas próprias memórias. Histórias que certamente já foram contadas e recontadas por elas em outras ocasiões. O que há então são improvisos ensaiados. A única sequência que parece não funcionar deste processo de exploração de uma linguagem documental/ficcional, pelo qual opta Nelson Pereira, é o da reunião de Helena com alguns jovens em um bar (local sagrado de encontro e conversa para Jobim, principalmente na época de sua juventude). Temos rápidos planos onde os jovens fazem perguntas à ela de maneira notadamente forjada, o que acaba anulando o caráter espontâneo, dando lugar apenas há uma encenação não convincente. A força que poderia ser causada pelo estranhamento acaba se tornando de tom (com o perdão do infame trocadilho) mais jocoso do que surpreendente.
Parece louvável e notória a intenção do cineasta em reter em sua obra apenas o belo no humano, relegando ao esquecimento o que poderiam ser fatores existentes nas histórias, porém bem menos interessantes. Relés ocasiões que evidentemente não mereceriam um tratamento tão especial. Ouvimos estórias curiosas e engraçadas em que Tom demonstrava toda sua espirituosidade e inteligência, pouco importando, aqui, neste recorte imagético em específico, suas tragédias e paixões negativas. É desprezado ao espectador a ciência de separações, tensões, e perdas.
Por fim fica a imagem tão desejada por Tom, que Nelson Pereira dos Santos enfim coloca em prática: o desafio e a conquista da imagem filmada, puro movimento, de um urubu em pleno voo.
*Ciro Lubliner é graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e mestrando no programa de pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).