Django Livre (Quentin Tarantino, 2012)

Por João Paulo Capelotti*

Pensar a arte, e por extensão o cinema, como retrato fiel da realidade é sempre questionável. Nenhum discurso é neutro, e mesmo documentaristas apresentam certa visão de mundo, entre as várias possíveis. Graças a isso, filmes como Lincoln (Steven Spielberg, 2012) são apresentados como meramente inspirados ou baseados em fatos reais. Para o diretor e roteirista Quentin Tarantino, contudo, o caráter autoral do discurso é uma vantagem, que permite contar não uma determinada versão da história, mas uma alternativa a ela.

Parte-se, a princípio, do farto registro histórico de atrocidades cometidas por senhores de escravos com suas “propriedades”. Não tarda, porém, a que essa ordem seja invertida, formando um contraponto à própria história da forma como a conhecemos, ou pelo menos até onde a conhecemos. Sabe-se que o fim da escravidão se deu por um processo histórico longo, complexo e, infelizmente, ainda inacabado. Porém, ao transformar o acerto de contas entre opressores e oprimidos em explosões de violência, o cineasta dá ao espectador algo que os livros didáticos não são capazes de proporcionar: é como se resolvesse às claras os conflitos em que a história botou panos quentes.

Em Bastardos Inglórios (2009), o longa anterior de Tarantino, várias tramas se cruzavam em um cinema no qual o alto comando nazista (Hitler incluído) era fuzilado sem dó por um grupo de soldados judeus. É a catarse que os norte-americanos nunca tiveram e sempre tinham sonhado, já que, ao que tudo indica, Hitler se suicidou em seu bunker, como ilustra o excelente A Queda (Oliver Hirschbiegel, 2004).

Neste Django Livre, Tarantino não pode usar todos os elementos metalinguísticos de que dispunha em Bastardos (como, por exemplo, o fato de a execução dos nazistas acontecer dentro de um cinema, ou seja, dentro de um espaço onde tudo é possível). Em troca, porém, o diretor entrega um número maior dessas catarses que provavelmente nunca aconteceram. Age também com maiores liberdades ao lidar apenas com personagens fictícios, e incorre em maiores polêmicas, por tratar de um tema ainda espinhoso em todos os países que recorreram à mão de obra escrava.

Ao contrário do que havia feito em Bastardos Inglórios, cujo roteiro juntava várias tramas, a princípio independentes, neste novo filme o centro das atenções desde o início, em 1858, é Django (Jamie Foxx), negro que carrega nas costas as marcas dos açoites. Comprado pelo caçador de recompensas King Schultz (Christoph Waltz) para auxiliá-lo a identificar criminosos foragidos, Django é alforriado e vira sócio do alemão, que, por sua vez, promete auxiliá-lo a salvar a esposa Broomhilda (Kerry Washington). Esta, descobre-se, fora comprada pelo fazendeiro Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), um dos maiores plantadores de algodão do país, que tem por hobby promover sangrentos duelos de luta livre entre seus escravos.

Aos poucos, Django Livre deixa de ser um simples filme de resgate para se mostrar o que verdadeiramente é: um filme de vendetta. Na maioria das obras de ficção, a vingança (que como diz o bordão, nunca é plena), é desaconselhada por conduzir quase sempre a resultados trágicos. Tarantino, todavia, aparentemente a enxerga como um dos motores do mundo, uma das poucas coisas capazes de lhe devolver alguma justiça. Não é outra a explicação para a música animada e o sentimento de verdadeira felicidade da cena final de À prova de morte (2007), outro trabalho do diretor, quando um grupo de mulheres surra o dublê malvado interpretado por Kurt Russell. Sem falar, é claro, na sofrida, mas bem sucedida vingança da Noiva (Uma Thurman) em Kill Bill – Volumes 1 e 2 (2003 e 2004).

Em Django, a revanche vem, primeiramente, em emblemáticas chicotadas infligidas pelo ex-escravo a um feitor que havia maltratado a ele e a sua mulher. Prossegue, mais tarde, com a morte de todos os vilões (entre os quais a irmã de Candie, que literalmente voa depois de levar um tiro, como se fosse retirada de cena à força) e se encerra com a explosão da casa-grande, representando a própria destruição do sistema escravagista que ocorreria em alguns anos.

Tarantino, que nunca teve muita sutileza ao filmar a violência, adota cada vez mais o expediente de mostrá-la em sucessão a diálogos particularmente extensos. Além de ser uma ótima forma de criar tensão e de potencializar o choque do expectador com o que vem a seguir é como se, na visão de mundo desencantada do diretor, falar não resolvesse nada e fosse apenas um subterfúgio para adiar o inevitável. Neste filme, isso se nota desde a cena inicial, em que o Dr. Schultz tenta comprar Django pacificamente, até perto do final, em que o resgate de Broomhilda quase tem êxito pela via diplomática. As duas cenas terminam em banhos de sangue, tal como o diretor já ensaiara na famosa cena de Bastardos Inglórios, em que Michael Fassbender trai seu disfarce ao sinalizar o número três.

O cineasta, como usual, utiliza a técnica a favor de sua história. Faz o Dr. Schultz vestir roupas com firulas e babados que se complementam ao seu modo requintado de falar. Integra perfeitamente Calvin Candie ao seu meio escravocrata, vestindo-o nos mesmos tons (e até mesmo estampas) dos ambientes que ocupa. Seu cinegrafista habitual, Robert Richardson, traz planos abertos e em contraluz, homenageando os clássicos do western, mas não deixa de usar zooms abruptos como forma de chamar a atenção para algum elemento da cena – como a satisfação de Candie em assistir a uma luta violentíssima entre seus mandungos.

O “MMA dos escravos”, aliás, foi um dos pontos mais controvertidos de Django Livre. Tarantino, que já fez um braço decepado esguichar sangue igual a um chuveiro em Kill Bill, filma o corpo-a-corpo entre os negros de um modo um tanto mais seco e realista (além de fazê-lo desacompanhado de trilha sonora). São opções que denotam uma clara intenção de se passar uma mensagem, de contribuir ao já extenso debate sobre o papel da violência no cinema, para além de sua necessidade/integração com a trama. Ao cortar com precisão do confronto físico entre os escravos e do chão sujo de sangue para a satisfação quase infantil de Calvin Candie e o olhar de repulsa do Dr. Schulz, fica a impressão de que o cineasta nos pergunta: qual deles você é? Reflexão interessante em tempos de popularização da luta livre, no Brasil e no mundo.

Nessa mescla entre a gramática tradicional e a tarantinesca, entre a recriação fidedigna e a inverossimilhança de diversas situações, outro ponto que ganhou destaque na imprensa norte-americana foi o fato de a palavra “nigger” ser pronunciada mais de uma centena de vezes. O diretor Spike Lee achou isso um desrespeito e anunciou aos quatro ventos que boicotaria o filme. Entretanto, para além de ser efetivamente muito usada na época, parece que a intenção do diretor era justamente retratar o sul escravagista e seus habitantes com a maior fidelidade possível. O exagero, visual e histórico, que destoa do que seria normal para a época, ficou reservado para ressaltar aspectos interessantes pelos paralelos possíveis com os dias atuais.

Algo similar havia sido feito pela ex-namorada de Tarantino, Sofia Coppola. Em Maria Antonieta (2006), os figurinos, recriados com apuro por Milena Canonero, premiada com o Oscar da categoria pelo trabalho, mostravam a certa altura um par de tênis da marca All Star no guarda-roupa da rainha. A trilha sonora, em vez de ser puramente instrumental, pontuava os bailes da corte francesa com o som de bandas como Strokes. A intenção das duas escolhas era clara: frisar o caráter pop da monarca, um ícone fashion e, pela opinião da diretora, uma das primeiras vítimas da fama; em segundo lugar, transmitir como as pessoas daquela época se sentiam dançando naqueles eventos sociais. Se hoje, para muita gente, música clássica é sinônimo de aborrecimento, para os cortesãos franceses os quartetos de cordas providenciavam compasso para as divertidas coreografias do salão, tanto quanto uma banda de rock contemporâneo anima numa festa atual. Em Django Livre, Tarantino usufrui de liberdades semelhantes. Por exemplo, escolhe rap e blues como músicas de fundo de algumas cenas para ilustrar a contribuição da cultura negra para gêneros musicais marcantes da cultura norte-americana. E, naquela que talvez tenha sido a ideia mais inspirada do filme, antecipa em alguns anos a fundação da Ku Klux Klan para mostrar quão ridículo é o preconceito em razão da cor da pele. Ao mostrar as dificuldades de se vestir um capuz com furos nos olhos, e as rixas hilárias que isso ocasiona no grupo, o diretor destrói a mítica de terror inspirada pelas atrocidades dos homens com aquelas máscaras. Por meio do humor, Tarantino atinge os preconceituosos de hoje, que, tal como seus antecessores, são incapazes de enxergar através de seus capuzes.

Por fim, ao colocar Django para protagonizar, sozinho, a meia hora final (o que, por certo, enquadra-se no clichê do cinema oriental que o diretor tanto admira, do aluno que supera o mestre e se torna capaz de vencer o vilão sozinho), o filme constrói uma história que, apesar de não ter par em registros históricos, representa por metonímia as fugas e os atos de resistência dos escravos contra o sistema no qual estavam engendrados. Tarantino, com isso, empresta aos negros protagonismo que raramente lhes é conferido, mesmo em filmes que contam a própria história da luta contra a discriminação, como Histórias Cruzadas (Tate Taylor, 2011). Ao mesmo tempo, porém, o diretor evita maniqueísmos ao introduzir na trama um vilão negro, Stephen (Samuel L. Jackson), que representa não só o preconceito que existe de dentro pra fora como também o comodismo daqueles que encontraram um nicho num sistema que lhes é desfavorável.

Se a história do filme é claramente ficcional, uma alternativa a um processo histórico um tanto mais complexo (vide o próprio Lincoln, já mencionado acima), a obra de Tarantino não deixa de prestar um serviço igualmente relevante. Django Livre fornece reflexões atualíssimas sobre a espetacularização da violência, o ridículo do preconceito e o papel do negro na própria libertação e na forja da cultura norte-americana.

*João Paulo Capelotti é doutorando e mestre em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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