A Invenção de Hugo Cabret (Martin Scorsese, 2011)

Por Marcelo Félix*

O mais novo filme de Martin Scorsese se diferencia bastante de outros de sua extensa obra marcada pela temática mais adulta e violenta, pois Hugo transita entre sua trama infantil e uma verdadeira homenagem ao cinema, especialmente à vida e à obra de Georges Méliès, algo que, por sua vez, é intrínseco ao diretor, entusiasta da sétima arte. Assim, a história da perda do pai e a descoberta de um misterioso autômato pelo protagonista, bem como o desenvolvimento dos personagens e do ambiente onde ele vive, soam aquém do potencial do cineasta que consegue ao mesmo tempo nos maravilhar com um filme belíssimo. E ele faz isso mesclando as mais avançadas técnicas 3D, com a profundidade e expressividade visual desde as referências e reconstituições da história de um primeiro cinema em plena expansão, descobrindo as possibilidades do uso da “magia” já no início do século XX com as obras fantásticas de Méliès.

Dessa forma, podemos estranhar, além da temática, o desenvolvimento simplista dos personagens e da trama em um longa do cineasta que dirigiu filmes consagrados como Touro Indomável, Táxi Driver, Os Bons Companheiros e, mais recentemente, Os Infiltrados, filmes que se aprofundam nos conflitos de seus personagens ou estabelecem relações intrincadas entre eles. E a ideia de que Hugo seria um filme para crianças não resiste diante de tantos filmes interessantes para todas as idades, como os longas animados da Pixar. Talvez a explicação resida no roteiro fraco do irregular John Logan, o mesmo de Aviador e Rango, mas também de Sweeney Todd e Gladiador, que não consegue empolgar nas relações mais emocionais e entrelaçar de maneira orgânica os objetivos de seu personagem principal com os de seus coadjuvantes.

Entretanto a técnica deve ser reconhecida, já que Scorsese sabe contar uma história com imagens, e a utilização do 3D é umas das melhores do gênero. Para tanto, o cineasta se utiliza bastante da profundidade de campo e da composição das cenas criando ambientes que podem ser explorados para isso, como a Estação de Trem e a Torre do Relógio, fazendo com que a câmera adentre por esses espaços e por entre as pessoas para colocar o espectador mais próximo da ação. Já as sequências, por mais que falhem em seus aspectos cômicos ou dramáticos, não deixam de capturar a emoção das aventuras vividas por Hugo (Asa Butterfield). E é junto com sua amiga Isabelle (Chloë Moretz) que ele embarca na descoberta do cinema e, em especial, do grande cineasta Georges Méliès, interpretado intensamente por Ben Kingsley. É a partir de então que o filme toma outro rumo e cresce enormemente alçando um novo objetivo a ser alcançado, já que investe no drama da vida do diretor que depois de grande sucesso perdeu tudo, inclusive o reconhecimento.

É então o momento de sermos transportados para as memórias dos primeiros filmes, o trem “saindo” da tela, as pessoas saindo da fábrica, filmadas pelos irmãos Lumiére, os grandes comediantes do cinema mudo, os primeiros épicos e os faroestes, as primeiras cores pintadas quadro a quadro, e a motivação de um mágico em levar seus truques para o cinema criando alguns dos mais inventivos e fantásticos filmes vistos naquela época, como Viagem à Lua. Percebemos que o cinema transformara a vida de Méliès e que sem ele o cineasta era apenas uma peça sem função ou um objeto sem conserto, definhando em sua loja de brinquedos. Entretanto, a trama demora a estabelecer a relação de Hugo com Méliès dando espaço para coadjuvantes pouco interessantes ou que agregam pouco a história do protagonista.

É o caso do inspetor Gustave vivido por Sacha Baron Cohen (de Borat) que tenta lembrar os guardas de rua dos filmes antigos sempre a perseguir os meliantes e vagabundos. Aqui seus trejeitos e atitudes visam à comicidade que é alcançada em poucos momentos – vale lembrar sua tentativa de dar um sorriso para a florista. Sua participação poderia ser mais econômica e se justifica somente ao final do longa. Já Christopher Lee, como o dono da livraria, se torna um coadjuvante de luxo e os velhinhos enamorados servem não mais do que para florear o ambiente da Estação. Assim, perdemos um tempo que poderia ser empregado para adensar a relação de Hugo com o pai, cimentar a importância do cinema para ambos, mostrar o peso emocional das perdas sofridas, além de desenvolver melhor a sua relação com Isabelle e com Méliès.

Mesmo assim, os atores Asa Butterfield e Ben Kingsley entregam atuações dignas e fortes, que chegam muito perto de nos emocionar durante o filme, mas perdem a chance devido ao roteiro e a montagem que insistem em cortar rapidamente de uma situação para outra. A ausência de uma explicação mais interessante para o autômato e o seu mistério contribuem para a falta de empatia com a história. E a lógica da mensagem do pai através de um desenho de outra pessoa soa fora de lugar, para não dizer uma falha incontornável do roteiro. A impressão ao final do filme é de que as intenções não foram alcançadas. Seria interessante pensar que, como na vida, elas mudaram durante o processo, mas no filme ao se estabelecer uma lógica interna própria fica difícil não retomá-la ao final. E a tentativa apresentada parece artificial.

O que não parece artificial são os efeitos visuais e sonoros que compõem extremamente bem o espaço geográfico da cidade, desde a bela Paris do começo que se transforma nas engrenagens da Torre do Relógio, ambiente onde Hugo mora, passando pelos detalhes da Estação, da grande biblioteca de cinema e do jardim cheio de estátuas amedrontadoras. São exemplos da qualidade técnica atingida pelo filme, reconhecida pelos Oscar de Efeitos Visuais, Fotografia, Direção de Arte, Edição de Som e Mixagem de Som. E realmente, o universo criado para o filme soube aliar os efeitos visuais digitais com a direção de arte e o designer de produção dos ambientes reais reinventando o clima de época pelo tom sépia da fotografia da Estação, dando expressividade aos lugares que compõem os espaços onde o protagonista vive, sejam as cores nostálgicas da Estação ou o tom opressivo de seus aposentos. A abundância de detalhes contribui para a imersão no filme favorecida ainda pelo som e pela trilha evocativa.

Portanto, é uma pena que tamanho empenho visual não tenha contrapartida em um roteiro mais amarrado e com personagens mais bem entrelaçados e desenvolvidos. Fica a sensação de um ótimo filme, com lampejos de nostalgia sublimes de um grande conhecedor da sétima arte, mas que por mais empolgante que seja deixa exposto sua falha ou desvio de foco das relações mais importantes que poderiam ser estabelecidas entre a juventude criativa de Hugo e a desesperança amargurada de Méliès. Esta relação importante perde muito espaço que é dado a outras superficiais. E apostar na guerra como motivo para a decadência da obra do cineasta é descartar o desenvolvimento da arte cinematográfica e o interesse do público para novas formas de cinema para além de seus trick filmes. A simples nostalgia do começo do cinema não faz jus à inventividade de grandes cineastas como Méliès e Scorsese.

*Marcelo Félix é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos(UFSCar), graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Estagiário da EPTV Central, além de Diretor Assistente e Diretor do Videocast da RUA.

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