A Grande Parte do Arquivo: agenciamentos na composição de narrativas documentárias em Civelli, Bernadet e Sganzerla

Por Régis Orlando Rasia*

Resumo:

Analisaremos três filmes de diferentes diretores: Tudo é Brasil (1997) de Rogério Sganzerla; Sobre Anos 60 (1999) de Jean Claude-Bernadet e O gigante (1968) de Mario Civelli. Todos têm, como característica na manufatura das suas narrativas documentárias, o uso de grande parte de materiais de arquivo. Os três filmes trazem direta ou indiretamente o contexto histórico do final da década de 60 e 70, conhecido pelo intenso debate dos movimentos culturais e artísticos, sob a atmosfera da ditadura militar que culminaria no aumento da repressão com o AI-5.

Texto:

Os três filmes de diferentes diretores, Tudo é Brasil (1997) de Rogério Sganzerla; Sobre Anos 60 (1999) de Jean Claude-Bernadet e O gigante (1968) de Mario Civelli, têm como característica na manufatura das suas narrativas documentárias o uso de grande parte de materiais de arquivo. Os três diretores proporcionam, através de seus escritos e filmes, reflexões pontuais sobre a montagem com narrativas, que servirão como dispositivos de análise neste artigo.

O contexto contemporâneo da produção audiovisual incita inúmeras reflexões sobre o uso de materiais de arquivos, um exemplo é a disseminação de estudos sobre a prática do found footage¹, afirmação das novas tecnologias impulsionadas por plataformas como Youtube, Vimeo, consolidando a internet como o “grande bazar” do arquivo audiovisual. O contexto atual aponta para uma aparente saturação das imagens e da informação, muitos reivindicam que tudo já foi feito e tudo já foi filmado. Alguns documentaristas com tradição em trabalhar com materiais de arquivo se propõem a fazer um filme “sem a câmera”, ou usar o mínimo de tomadas, produzindo menos e organizando mais. O arquivo proporciona o encontro do “novo” através do contato com o “velho”, utilizando os materiais do passado para contar e montar o presente, mas também apontando para o futuro. Os cineastas que recortamos neste artigo apresentaram narrativas singulares e que proporcionam uma análise em várias camadas, com filmes anteriores à tendência atual desta dinâmica contemporânea da ressignificação.

Através de uma dinâmica de identificação de filmes articulados, em sua maioria, por arquivos, vale destacar a presença de documentaristas com tradição neste uso como Silvio Tendler e Sylvio Backe, com seu filme Yndio do Brasil (1995) feito inteiramente de materiais de arquivo. Podemos encontrar a experiência cinematográfica de Bernadet em São Paulo sinfonia e Cacofonia (1995) anterior ao filme Sobre anos 60 (1999). É importante destacar a existência do filme de Marcelo Masagão, Nós que aqui estamos por vós esperamos (1999), também feito, em grande parte, de materiais de arquivo e que gerou uma intensa discussão de cunho teórico e crítico (inclusive nos artigos de Bernadet) enquanto produção e utilização de materiais ressignificados. Com exceção de O Gigante (1968, Civelli), isolado no final da década de 60, os demais filmes somados a Tudo é Brasil (Sganzerla, 1995) se aglomeram no período de 1995 até 2000 na fase brasileira que podemos pensar como promissora de experiências com filmes compostos de grande parte de materiais de arquivo, introduzindo o contexto contemporâneo da produção audiovisual em que o arquivo ganharia maior destaque.

Essa fase de 1995 a 2000 atravessa o período chamado de “retomada” do cinema brasileiro, após a crise evidenciada com a extinção da EMBRAFILME pelo governo Collor em 1990 quando a produção foi reduzida quase a zero. Com os recursos limitados, trabalhar com filmes de arquivo pode colaborar com a redução dos custos de produção. A partir de 1994, o cinema brasileiro começava a dar sinais de retomada na sua produção e os filmes encontrados nesta fase, que chamamos de promissora para filmes compostos com grande parte de materiais de arquivos, não se encontrariam por acaso.

Afirmar o uso de arquivo na totalidade da composição narrativa seria um equívoco, pois os três cineastas usam também materiais atuais como sons, narrações, imagens e fotos. No entanto, o que evidenciamos é a grande “partes dos arquivos” tomando conta da narrativa, combinados com imagens e sons atuais. Esses cineastas trabalharam basicamente com a reorganização dos materiais, compondo uma nova narrativa a partir de pedaços de outros filmes ou trabalharam a partir de tomadas já utilizadas em outras das suas obras datadas em contextos do passado. Essas narrativas se propõem muito mais a “organizar os materiais” do que propriamente a “criar novas imagens”. Apesar das tomadas atuais existirem, o “arquivo resgatado” toma proporção na construção da narrativa e os materiais atuais (como argumentaremos) servem muito mais como objeto de coesão e costura para estes materiais resgatados.

Em filmes articulados com grande parte de materiais de arquivo, se torna evidente o chavão da atividade do montador: construir um filme na sala de montagem. Trabalhar em filmes que envolvem a articulação de materiais de arquivo a fim de compor uma narrativa significa trabalhar na enésima potência da montagem. Verificaremos o papel desempenhado pelo montador nos agenciamentos e composição destas obras analisadas. Segue a noção de Fernão Ramos sobre o uso do arquivo em filmes documentários.

Chamamos, portanto, de documentário com filme de arquivo o documentário que utiliza material de fontes diversas, heterogêneas à narrativa propriamente […] em outras palavras, a intenção desses filmes é determinada pela presença de imagens que são tomadas com intenções outras que não a constituição da narrativa fílmica a qual não são inseridas. […] No documentário de arquivo há essa cisão entre o contexto da tomada (e a intenção que norteia os agentes da tomada nesse contexto) e a utilização das imagens, em outra época, pela narrativa […] A coloração que as imagens de arquivo introduzem no documentário é relativa à intensidade da tomada e modulada por sua articulação com o contexto da montagem/mixagem do filme. Essa tensão, própria às imagens de arquivo quando dispostas em narrativa, é particular ao filme documentário. (RAMOS, 2005:165)

Ditadura e a ligação destes três filmes

Os três filmes trazem a tona o contexto histórico da década de 60 e 70, conhecido pelo intenso debate dos movimentos culturais e artísticos, o engajamento intelectual sob a atmosfera da ditadura militar que culminaria, com o aumento da repressão, no AI-5. O que se evidencia nestes três filmes é a razão de uma memória que se “instala” nos fragmentos de arquivos, reverberando linhas de fuga de uma época que resiste, insiste e persiste para estes cineastas. Sendo todos fragmentos cristalizados através de uma memória, quando estes fragmentos são retomados em novas narrativas, eles são sempre reivindicados para um novo contexto. Não por acaso, estes pedaços/fragmentos de memórias da ditadura e da repressão seriam significativos para os documentários recortados neste ensaio.

O Gigante (1968), feito em pleno contexto do final dos anos 60, apresenta um discurso irônico que reflete claramente a atmosfera da época. Seu desaparecimento das telas de exibição estaria intimamente ligado à censura imposta pela ditadura. Sobre anos 60 (1999), como o nome mesmo se propõe, remonta com pedaços de filmes esta época e se assemelha a uma atividade de colagens de materiais (áudio e visual) contando os anos 60. Tudo é Brasil (1997) coloca a discussão em outro extrato de análise. Adentrando em um plano subjetivo do diretor, verificamos os desdobramentos dos acontecimentos vividos, como a censura e o exílio para o exterior, durante a ditadura na figura de Welles. A repressão e censura sofrida pelo diretor americano na ditadura do Estado Novo seria também a repressão e censura de Sganzerla em 60-70. Podemos perceber que os três filmes direta ou indiretamente orbitam sob a ditadura do final dos anos 60 no Brasil.

Responsável por uma reflexão do cinema com a ditadura, Maria Luiza Rodrigues de Souza cita Derrida (2009:79) “o material por organizar e conter itens do passado, é voltado ao presente e assim, pode pôr em questão a chegada do futuro”. Maria Souza complementa, sobre filmes do período ditatorial:

Os filmes brasileiros sobre o período ditatorial podem ser lidos como tendo uma estrutura arquivante especial, posto que ligada à produção imagética massiva, de memórias e discursos acerca da ditadura; são também, peças artísticas relacionadas a uma imaginação sobre a nação. […] Aquilo que é fixado em película (re)significa o passado, trabalha em memória de, coloca em tela decisões que privilegiam sentidos sobre o passado […] que afetam o presente e implicam o futuro, pois o que está no arquivo (filme) é parte de uma seleção prévia, foi organizado a partir de opções que se ligam, por sua vez, a esquemas políticos-narrativos especiais (SOUZA, 2009:79).

O arquivo não estaria assim limitado a uma representação do passado, mas quando agenciado com a memória, se instala no sujeito (presente) em algo que ecoa do passado, escapando para uma memória futura, não subjetiva nem coletiva, mas cosmológica através de um tempo que aponta a um devir futuro. Para o cinema, as décadas de 60-70 povoam-se de uma dinâmica que vai desde nostalgia por parte dos movimentos e ambiente para debates, até um profundo ressentimento com o espalhamento de toda esta esfera produtiva com o aumento da repressão.

Verificamos na relação do termo cunhado por Grierson para documentário como “tratamento criativo das atualidades” uma memória que se instala e escapa em um novo plano de significação. Civelli e Sganzerla tomam as atualidades em formato cinejornal para compor criativamente as suas (novas) narrativas. Ao que parece, Grierson já teria ultrapassado a discussão da mudança de significado de um contexto para o outro a partir do que ele chama de “tratamento criativo das atualidades”. O formato das atualidades são os mesmos dos cinejornais da época de 30 e 40 que Sganzerla recuperou em seus filmes, do extinto Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Partimos da própria constituição desta gênese da definição do documentário em Grierson, de que a atualidade ou o arquivo sempre passa pelo tratamento criativo do diretor, portanto mediado subjetivamente e recebendo um novo significado, resultando em uma nova narrativa.

Aspectos da subjetividade ficam mais claros a partir da citação de Bernadet sobre o filme, “o que encontro neste estado de ansiedade dos filmes, não é o meu eu atual, mas o desesperado adolescente que fui. É como seu eu fizesse hoje filmes com as tensões da adolescência” (BERNADET, 2000:40). O filme de Bernadet acaba exatamente com imagens representando o caractere na tela do AI-5. Em Civelli, aspectos da subjetividade estão no enunciado em primeira pessoa e no tom irônico da narração, trazendo o contexto da época.

Evidenciando a montagem

Segundo Fernão Ramos (2005:191), “hoje a montagem é valorizada como procedimento estilístico, ocupando lugar de destaque na metodologia analítica desenvolvida para mostrar o trabalho do discurso”. Diante desta questão fundamentalmente estilística, queremos neste ensaio verificar alguns pontos que nos interessam para análise destes filmes.

A “política dos autores” perpassou todos àqueles que participariam ou seriam os grandes responsáveis por deixar sua marca no labor fílmico. Em busca de um “autor” no cinema, produtores foram “endemonizados”, diretores martirizados, roteiristas ganham força de discussão, enfim; a discussão preconizada pela Nouvelle Vague nos anos 50-60 teria repercussão internacional, marcando também o Cinema Novo e o Cinema Marginal brasileiro nos anos 60. Como um todo, pouco se percebeu ou mesmo se justificou a atividade de “mais um autor” nesta atividade coletiva que é o cinema, a figura do montador. Em vista disso, os artigos de Jean Claude-Bernadet falam diretamente da experiência de montador do teórico/diretor, se propondo diretamente a refletir sobre esta atividade. Segue sua reflexão.

O filme de montagem feito com material de arquivo implica uma série de vaivéns entre a vida e a morte. Ele é vida na medida em que tenta existir. […] O processo é destrutivo também ao isolar da montagem original um plano selecionado para inseri-lo na nova montagem. Destruição porque a significação que este plano tinha originalmente ganhará nova significação ao ser inserido na nova montagem. Uso o termo ressignificação para designar este processo. (BERNADET, 2000:32)

Rogério é entrevistado por Rodrigo Modenesi (2000) após a exibição de Tudo é Brasil na França. Abaixo segue a resposta de Sganzerla quando perguntado se a montagem era o objeto central da obra.

Falar sobre montagem, insistindo em uma questão básica, no próprio Orson Welles, que para mim talvez é o pai do cinema moderno, porque ele inventou tudo, não somente a montagem mas a multiplicidade, as ações paralelas. […] Por sua vez, o Welles diz que a montagem não é um aspecto do cinema, mas o aspecto, talvez um dos aspectos principais do processo criativo […] Nesse filme [Tudo é Brasil] eu não tinha os recursos, a iluminação, os atores de que normalmente disponho […]E veja bem, o Brasil é um país atrasado, um país onde as pessoas não têm essa informação, o acesso, então se faz uma montagem ainda pré-histórica, uma montagem que não conhece nem o corte em movimento. […] A montagem, além de ser o aspecto essencial, é também o personagem do meu filme, você pode dizer isso. Você colocou de uma forma interessante a questão de… como se fosse uma árvore com várias raízes que se multiplicassem espontaneamente. Eu vejo mais do que isso: ele tem uma interposição de textos… Enfim, não vamos fazer teoria aqui. O que eu poderia dizer sobre a montagem é que o filme é uma imagem e uma imagem diz mais do que mil palavras.

Ainda sobre a importância do montador, dentre todas as funções desempenhadas por Sganzerla em cinema, a atividade de montador parece ser a que ele mais se identificava. Vemos isso em vários textos, no início da sua carreira em 1966: “porque se adquire muito conhecimento na montagem e já montei vários filmes amadores. Filmes do Andrea Tonacci, da Helena Solberg, de outros amigos” (SGANZERLA, 1966:20). Em 90, a função de montador ainda é presente, pois ele comenta: “vivi de cinema e ainda escrevendo, fazendo vídeo, montando alguns curtas-metragens” (SGANZERLA, 1990:122). Curiosamente a montagem seria o sustento de Sganzerla nas piores fases de sua carreira.

A montagem foi algo defendido por Sganzerla como imprescindível para o cinema, trabalho sempre refletido diretamente nos seus filmes, como em Isto É Noel (1990) e de forma bastante radical em O Signo do Caos (2005). Não por menos o cineasta escreve para a Folha de São Paulo em 1981 um artigo intitulado a Atração da montagem, desdobrando a concepção de Eisenstein da montagem de atração, ele mostra toda a sua atração por montar, incitando a grande “atração do montador: a imagem e os arquivos”.

Em cinema interessa (me) a atração dos planos, tomadas. Isto é, montagem por atração, e tudo o mais no assunto pouco me interessa. Logo, corte é movimento (de imagem e som). […] Ponto de intersecção, tensão ou de encontro entre um plano (em movimento) e outro. […] dependendo da mão do montador – aquele determinado instante de liberdade entre um movimento que inicia e outro que finda em relação à analogia contraste ou semelhança de forma e ideia (no som e na imagem, juntos, isto é, na mente do montador, ou melhor, ideia percorrendo da mão à cabeça do montador – não me refiro a chofer, operador ou motorneiro de moviola). (SGANZERLA, 1981:113)

Os documentários que se utilizam de materiais de arquivo tem como objeto principal as guerras, revoltas, os acontecimentos que são partes flagrantes diante das câmeras. Visto que o arquivo cinematográfico tem relevância por seu acontecimento, Sganzerla reflete sobre os cinegrafistas de atualidades, pois é no resgate dos cinejornais que estão boa parte das suas composições “para um cinegrafista de atualidade, a revelação pode surgir de um minuto para outro, pois a verdade não tem hora. Importante é o sentido de risco e sua iminência” (SGANZERLA, 1980:68). As reflexões de Sganzerla pendem para a atividade dos cinegrafistas de atualidades e a relação destes com a montagem, “assim pensam do cinema grandes montadores – e autores […] e alguns cinegrafistas de atualidade (estes trabalham diretamente sobre o negativo, sem necessidade de copião e moviola que, vendo com olhos livres, exercem montagem por atração na base do olhômetro)” (SGANZERLA, 1981:114). Civelli antes de se tornar produtor e diretor fazia parte do cinejornal O Gigante. Dispomos de poucas informações e acreditamos que o nome do filme de 1968 deriva da atividade do diretor como cinegrafista de atualidades. O filme de Civelli é uma homenagem àqueles que coletaram imagens do gigante Brasil, os cinegrafistas de atualidades.

Sganzerla e Civelli, além do gosto por cinegrafistas de atualidades, estão ligados por Silvio Renoldi, montador dos dois filmes (O Gigante e Tudo é Brasil). Da atração por montar de Sganzerla, surgem encontros e o diretor assina filmes com Renoldi (um dos maiores montadores brasileiros). Além de amizade, Sganzerla vai apreender e se inspirar na função desempenhada por Renoldi que participou ativamente dos filmes da boca do lixo e do cinema marginal. Renoldi seria um dos montadores de O Gigante juntamente com Luiz Elias e Glauco Laurelli. Nos filmes de Sganzerla, ele monta também O Bandido da Luz Vermelha (1968), o curta Perigo Negro (1992) da série Oswaldianas, O signo do Caos (2005) e consequentemente Tudo é Brasil (1997). Em um encontro do Rogério e Renoldi temos o comentário de ambos sobre Mario Civelli:

O Mário Civelli era uma grande figura, né? Os jornais criticavam, mas era uma figura fabulosa… Depois ele virou distribuidor e ganhou uma fortuna com aqueles filmes tchecos, né? Filmes italianos, de faroeste, quer dizer… Ele tinha visão. Agora, nos livros, o que se fala sobre ele é que ele era só um assistente de Roberto Rossellini e que quando passou o Roma Cidade Aberta não tinha o nome dele […] E o Civelli gostava de cinema, ele entendia de distribuição, ele ajudava as pessoas. (RENOLDI, SGANZERLA, 2001:177)

Veremos algumas particularidades em cada um dos três filmes recortados neste artigo.

Tudo é Brasil

Aos olhos do regime do estado novo de Getúlio e de seu órgão de censura, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), estavam se tornando inconvenientes as filmagens feitas por Welles e sua equipe nos morros cariocas e na Praça Onze. Esperava-se que o cineasta se dedicasse às belezas das paisagens naturais da Cidade Maravilhosa e ao registro de cenas mais aprazíveis para os estrangeiros. A imagem de Brasil que interessava ao regime deveria seguir outra orientação, como a dos curtas-metragens (cinejornais) do DIP que divulgavam as realizações governamentais nas escolas brasileiras, sendo também distribuídos para algumas escolas dos Estados Unidos.

Segundo as informações do press release (2003) de Tudo é Brasil, o filme seria uma memória histórica e visual da cidade do Rio de Janeiro, feito de pedaços de tudo que se passou, encontrando um caminho que permite seguir adiante – trata-se de um caleidoscópio sonoro – sobre a transformação dos anos quarenta. Sequências rigorosamente inesquecíveis – até então dadas como perdidas – fazem parte do repertório audiovisual. A meta era reconstruir o passado à luz das inquietações atuais, reconstruindo um momento importante, período ou processo da nossa história recente – mas já distanciado pela ação do tempo – tendo como inspiração um fato real cheio de significação. Orson Welles despertou o nacionalismo. Filmou uma realidade brasileira escondida, tirando-a de debaixo do tapete, encantado com a espontânea criatividade do povo brasileiro. Tudo é Brasil nada mais é que um caso de amor não correspondido entre o nosso país e o maior cineasta do mundo.

Em Tudo é Brasil, apesar do mote principal do filme ser Orson Welles na passagem do diretor americano pelo Brasil, é possível encontrar alguns aspectos dos acontecimentos perpassados por Sganzerla no desdobramento das censuras sofridas tanto pelo diretor brasileiro em 1968, como por Welles em 1942. Orson Welles veio ao Brasil filmar It’s all true (1942), estando inserido no contexto da propaganda ufanista e da ditadura do Estado Novo, o projeto acaba por ter inúmeros problemas para a sua concretização. Sendo assim, Welles é incorporado ao filme de Sganzerla operando àquilo que entendemos como crítica funcional da repressão e censura vivida por ele em 1968, tudo isto culminaria com a finalização das atividades da Belair e exílio de Sganzerla, Helena Ignez e Bressane para a Inglaterra. Estes intempéries da sua carreira se repetem nas suas narrativas e nos acontecimentos sofridos por Welles, este por vezes considerado um “alter-ego” de Sganzerla. O desdobramento das datas e acontecimentos dos diretores nos permite enveredar para além da composição dos materiais de arquivo em Tudo é Brasil, nos trazendo expressões significativas da subjetividade de Sganzerla.

O “tudo” é mais um interstício dos filmes de Sganzerla com o filme de Civelli. Ambos trazem à tona a antropofagia. Vemos na citação do filme O Gigante quando ele se refere à adaptação de uma dança indígena citando que “tudo é Brasil”. Ao que nos parece, Tudo é Brasil seria um conceito de síntese da antropofagia, bastante próxima de alguns conceitos incorporados por Sganzerla, que diz que esta expressão era cunhada por Welles vendo todas as adaptações do jeito brasileiro. Este “tudo é Brasil” serve como mote para O Gigante, que discute a diversidade brasileira, um país gigante em que “tudo” o pertence.

Para Sganzerla o “tudo” poderia ser entendido como soma e unidade da multiplicidade. “Um filme é feito da soma de partes, fragmentos, pedaços de filmes (SGANZERLA, 1999:451)”. Ao que nos parece, no interstício existe uma complementação destes significados bem como a própria citação do filme O Gigante, referenciando o contraste e as especificidades da cultural brasileira, como é citado também por Sganzerla (1989:94) “Isto é o Brasil, país de contrastes”. Para os dois diretores, esta concepção do “tudo” reverbera também no uso da totalidade dos materiais de arquivo. Encontramos uma boa baliza de Sganzerla se referindo ao material como soma e importância da montagem para isso.

Valorizar a figura do produtor executivo da montagem, que define o valor do trabalho e, antes, do projeto. Se o material filmado é razoável, pode melhorar na edição. E, ao contrário, sem um produtor de montagem, um ótimo material pode perder muito de sua eficácia. […] O Brasil é muito maior do que isso. Nós sabemos que a soma das partes é maior, é ela que forma o todo. (SGANZERLA, 1999:451)

O Gigante

Os filmes de Sganzerla e de Bernadet são conhecidos no meio acadêmico. Apesar de haver certa escassez de reflexões sobre eles, algumas cópias de seus filmes circulam em videotecas, cineclubes, etc. O filme de Civelli, pelo fato de ter sido censurado, acabou no esquecimento até ser descoberto, restaurado e lançado para o público no Festival é Tudo Verdade em 2008. Civelli capturou imagens para o cinejornal O Gigante durante 60 anos.

A restauração foi motivada pela família do produtor/diretor, em especial, pela sua filha Patricia Civelli, que é restauradora. Civelli foi produtor, diretor e trabalhou com cinejornais. Aproveitando boa parte de suas tomadas cinematográficas, compilando dois de seus filmes anteriores, acaba cristalizando essas imagens no filme O Gigante. Nos letreiros iniciais do filme feitos por Civelli, encontramos os seguintes dizeres:

Este filme é o resultado do trabalho de um homem: William Gericke e uma homenagem ao cinegrafista anônimo, que documenta a vida atravez [através] de sua câmera. É um retrospecto de mais de meio século da vida do Brasil e, portanto, sendo filmado em diferentes datas, com vários tipos de negativos e câmeras, deve ser justificada a desigualdade notada entre as cenas em benefício da autenticidade. A montagem, também, não segue uma ordem cronológica e o velho e o nôvo [novo] se entrelaçam formando o contraste que é o próprio Brasil. Não houve, no entanto, a mínima preocupação em fazer cinema cultural e nem de longe se pensou em dar aula sobre o Brasil – é simplesmente uma coletânea de aspectos interessantes, divertidos ou trágicos e das várias fases de nosso pais, registrados por uma objetiva de cinema. Agradecemos ao INSTITUTO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS por nos ter cedido algumas cenas sobre o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon utilizadas neste filme. (Queremos esclarecer que as referidas cenas foram filmadas há mais de 60, não tendo, portanto, a qualidade atual, sendo adicionada pelo seu grande valor histórico e por sua raridade).

Civelli fundou em 1952 a Multifilmes, em Mairiporã, sendo responsável pelo primeiro filme colorido brasileiro, O Destino em Apuros (com Paulo Autran). O diretor se atraiu pelo documentário ao percorrer as matas virgens de Goiás, Mato Grosso, Alagoas e Bahia. Embrenharam-se pela Amazônia duas vezes, de onde saiu o Grande Desconhecido (1956) e Rastros da Selva (1958). Civelli seria o primeiro a filmar rituais indígenas no Brasil, o que chamou a atenção de Marechal Rondon que cedeu a ele as imagens que havia registrado no início do século de suas expedições pela Amazônia (conforme citação em ficha do filme). Os filmes de 1956 e 1958, que estavam em estado avançado de deterioração, mais o material atual do dinamarquês William Guericke, formam o mosaico do documentário O Gigante. Ele seria um resgate de 60 anos de filmagens e história de um produtor e diretor importante em nossa história do cinema, que se preocupou em recuperar e compilar em um novo filme o trabalho de toda a sua vida.

A história do Brasil é contada pelas imagens captadas durante 60 anos pelo diretor de cinema Mário Civelli. O filme é um reencontro com o passado e a descoberta de um país desconhecido. Na região Amazônica, os índios mostram rituais filmados pela primeira vez. O filme reúne uma espécie de cinejornal com recantos do Brasil de seis décadas, entre 1910 e 1965. No cinejornal, o cineasta italiano registrou em 1944 as rotativas do jornal O Globo. A manchete anunciando que o Brasil entrava na segunda guerra mundial e o retorno dos pracinhas que lutaram na Europa. No Carnaval do Rio, os ranchos desfilavam na Avenida Rio Branco. Ieda Maria Vargas era miss universo. O país “gigante” leitmotiv do nome, ganhava uma nova capital com grandes construções, o filme registra também a periferia, que começava a crescer ao redor de Brasília.

Todo o texto do filme O Gigante é construído com a fruição do narrador com as imagens. Sob a narração/voz over de Vicente Leporace, um importante radialista popular do Brasil, que também teria atuado em alguns filmes de Civelli, encontramos um tom crítico e irônico nas imagens apresentadas. Esta voz over costura mais as imagens para o espectador, em contraponto aos filmes Tudo é Brasil e Sobre anos 60. A relação de construção de sentido para o espectador no filme de Civelli é muito mais presente do que nos filmes dos outros dois diretores analisados neste artigo.

O tom irônico foi o grande responsável por censurar o filme. Em relação a esta ironia, seria interessante ligar O Gigante ao Cinema Marginal (também por influência de Renoldi), na época 1968-1969 se delineando como movimento de revolução estética nos filmes brasileiros. Além da proximidade geográfica, já que Civelli instalou suas produções em São Paulo, as influências estilísticas do diretor em relação ao Cinema Marginal seriam mais um ponto de ligação para análise (além do montador Renoldi), já que o tom de ironia e deboche era comum aos filmes marginais da época. Em relação ao filme, e a censura sofrida, encontramos informações incorporadas a partir da sua restauração.

Este filme chamava-se originalmente de Tuxava – Hora e a vez de um cinegrafista, mas foi para as telas como o Gigante. Teve sua produção iniciada em 1965, e finalização em 1968, mas só conseguiu entrar no circuito comercial na década de 1970. Essa demora foi consequência da censura imposta pelo Instituto Nacional do Cinema que, por não aprovar o tom crítico do narrador, recusou-se a conceder a O Gigante o Certificado de Exibição Obrigatória do Filme Nacional de Longa Metragem. O INC, para justificar essa atitude, alegou que assim agia a fim de “evitar o descrédito do cinema nacional em decorrência da produção de filmes sem qualquer valor técnico, artístico e cultura”.

O sufocamento e repressão da ditadura também ficam claros através da ficha que refere o texto a A. C. Carvalho, na qual acredita-se que este seria um nome fictício, preservando a identidade dos diretores ou àquele que tenha escrito o filme. Esse pressuposto se consolidaria pelo fato de que, no filme, o enunciado constantemente se dá na primeira pessoa. São exemplos, “eu e minha câmera testemunhamos um drama mostrado na tela …”. “Este poço primitivo que eu filmei há alguns anos…”. O contexto da ditadura e o medo de colocar o seu nome ou assumir os textos se cristalizavam também ao compósito do filme. Ainda sobre o enunciado em primeira pessoa, temos o leitmotiv deste documentário no inicio do filme com imagens de cinegrafistas portando câmeras, após citar texto de José de Alencar, o narrador fala: “basta assistir as amostras de Brasil que eu vi e gravei em minha memória subconsciente, a minha câmera, porque um cinegrafista e sua câmera são um ser único e indivisível”.

O documentário em primeira pessoa se tornaria uma tendência no Brasil a partir do inicio do século 21, também vinculados aos estudos culturais emergentes no mundo nas décadas de 1980 e 1990. No entanto, podemos ver este documentário de Civelli deslocado de seu tempo, a narração em primeira pessoa seria uma síntese e testemunha do trabalho deste produtor e diretor, em suas investidas como documentarista e produtor de cinejornais. Apesar de o texto referir-se a A. C. Carvalho e lido por Leporace, o “eu” é presente em boa parte do enunciado, e este eu pode ser de Civelli ou mesmo de Gericke, no entanto ele não fica apenas no plano individual, se lançando ao coletivo, como todos os filmes contemporâneos de narrativa em primeira pessoa.

O filme de Civelli usa linguagens, expressões populares, chavões e provérbios da época, inclusive expressões de cada região do Brasil são abordadas. Em cada um ele apropria-se de expressões típicas e populares destas regiões. Vemos na banda sonora, além da presença da voz over com a leitura e interpretação sincronizada da banda imagética, o som totalmente pós-sincronizado pela Odil Fonobrasil. A sonoplastia constrói a atmosfera das imagens, e as músicas também acompanham a ironia do texto, por vezes colocando índios dançando seus rituais ao som de rock’n’roll.

O filme não segue uma ordem cronológica, e não coloca ordem na apresentação geográfica da montagem. Existem pequenos blocos que vão do sudeste ao norte, do centro ao sul, no entanto, em um determinado momento o filme, procura mostrar o velho e o novo, sem seguir ordem de blocos geográficos. A proposta do filme seria mostrar o Brasil como um país de contrastes, até mesmo onde velho e novo coabitam. Citando as diversidades e os contrastes, mostrando elementos que se misturam em nossa cultura, Civelli faz essa composição/comparação do velho e do novo mudando o filme do preto e branco para a película em cor a partir do terço final do filme, justamente no intervalo em que discute Brasília. Civelli contrasta o natural das belezas com o contexto urbanizado e industrial de nosso país. As imagens em cores seriam partes da intervenção de Gericke com algumas tomadas feitas especialmente para o filme de Civelli.

O filme começa em SP e termina em SP com a chegada ao aeroporto. O filme se monta como uma grande viagem entre o velho e o novo, moderno e arcaico, elementos naturais e elementos urbanos nos mostrando O Gigante, também trecho do hino nacional.  No final, com uma animação, ele fecha o grande mosaico que é o nosso país, encerrando com o Brasil sendo tomado pelos prédios, sendo assim, o urbano predominaria.

Sobre Anos 60

Jean Claude-Bernadet tem seus dois filmes analisados em dois artigos: Sobre anos 60 (1999) e São Paulo Sinfonia e Cacofonia (1995), nos artigos “A subjetividade e as imagens alheias: Ressignificação (2000)” e “A migração das imagens (2004)”, ambos sintetizam, de forma bem orgânica, o uso de materiais de arquivos nestes filmes. O autor fala que ambos foram feitos com a “totalidade” de outros filmes, tendo, porém o filme de 1999, 10% menos de filmagens do anterior. Colocando em pauta a discussão das noções de autor no cinema, questiona Bernadet através dos filmes de arquivo, quem seria o autor? A figura do diretor, como se convencionou, a do produtor, que confrontava com o cinema de autor, ou a responsabilidade e autoria era do roteirista? Bernadet insere nas suas discussões, ainda, a figura do montador como autor.

O montador/diretor se insere como o grande catalisador e agenciador destes cacos, pedaços e fragmentos, para a composição de uma nova narrativa. “Um dos aspectos mais importantes da montagem de um filme composto de fragmentos de outros filmes, consiste em selecionar plano (ou trechos) que servem às finalidades do novo filme: a origem está evidentemente presente na imagem, mas deve-se evitar que o texto original venha demais à tona e fique se sobrepondo ao novo texto que está sendo criado”. (BERNADET, 2004:77)

Como parte de um processo criativo coletivo, Bernadet assume a direção de seus projetos fílmicos, pois de acordo com o teórico-cineasta “decisões coletivas, de grande rendimento durante a pesquisa, só poderiam prejudicar a montagem” (BERNADET, 2000:22). Bernadet questiona (2000:30) “fazer filmes com pedaços de filmes já feitos será uma espécie de bovarismo?”. Trabalhar com os cacos/pedaços de outros filmes diferentes e criação de sentido usando também o contexto anterior, no âmbito da multiplicidade conforme reflexão abaixo.

Uma questão básica que preocupa o montador de todo filme feito com material de arquivo não é apenas a seleção de imagens, mas a construção do novo contexto para e com essas imagens. Dito de outra forma, a questão da unidade do novo filme, sem a qual o espectador terá a sua frente um amontoado caótico de imagens e o realizador não terá como conduzi-lo e orientar sua compreensão e emoção. Tal situação implica uma série de procedimentos sem os quais o novo texto não se constrói e, em decorrência, não se constrói a subjetividade do realizador. (BERNADET, 2000:34)

Bernadet se refere à construção do filme com “material de repertório” e que “apesar de um processo coletivo, o filme acabou assumindo um caráter bastante subjetivo”. No filme Sobre anos 60, esse repertório de trechos filmes é parte do repertório da memória do diretor ou, como afirma, o compósito de uma época instalado em sua memória subjetiva. Bernadet questiona “como ser subjetivo, trabalhando o material dos outros, isto é, um material que provinha de outras subjetividades ou outros pontos de vista, que não os meus” (BERNADET, 2000:23). Ele fala que seus dois filmes “se apropriam de imagens alheias” (2000:26), ou “imagens prostituídas”. Mas qual filme que toma um material em outro contexto não o é? “As imagens utilizadas em diversos filmes adquirem significação em cada um deles, mas no conjunto do processo das várias montagens elas acabam ganhando um valor em si, independentemente das significações diversas que lhes são atribuídas” (BERNADET, 2000:40). Conforme o teórico:

Ao fazer filmes com pedaços de filmes já feitos, penso assumir plenamente esse ser que se vive como um feixe em que são indiscerníveis os gravetos que se poderia considerar pessoais e os que se poderia considerar sociais […]  Nos filmes que realizei, há algo de ready-made na medida em que as imagens encontradas prontas mudam de significação ao serem transpostas de um contexto (o filme original) para outro (o filme sendo feito)”. Mas este não me parece ser o essencial do projeto. (BERNADET, 2000:31)

Bernadet manifesta a capacidade da montagem em harmonizar os planos através das combinações de conteúdos, usando como referência a composição do quadro e do movimento. Em Sobre anos 60, a montagem polifônica perseguindo a continuidade entre os planos, tentaria dar ao filme uma unidade própria. Citando Eisenstein, acerca da busca pelo ritmo e organicidade da unidade que surge a partir da justaposição dos planos, comenta:

O agenciamento dos planos ocorreu exclusivamente através dos cortes de imagem, tratados de maneira precisa e refinada, possibilitando o surgimento dos sentidos e criando a organicidade necessária. Esse tratamento faz com que o espectador interaja e fique aberto às sensações que o filme quer passar. (BERNADET, 1999:113)

Bernadet aponta o ritmo como instigador da montagem, na euforia do golpe de estado e sua tensão provocada, ou mesmo a calmaria e o silencio da banda sonora quando relatado o AI-5, o filme acaba exatamente com o anúncio do AI-5.

De uma forma geral, para Bernadet, “o essencial do processo não está na apropriação das imagens, mas na transformação, na ressignificação. […] Quando ele se vale de diversas vezes da mesma imagem com significações diferentes, a sua subjetividade aparece como móvel, em transformação, em trânsito”. (BERNADET, 2000:40)

A migração do sentido é evidente, mas o que ressalta é o trânsito de significação entre os filmes na sua relação com a subjetividade. Conforme Bernadet (2000:39) “não apenas a necessidade de apropriação, mas da transformação”. O uso do arquivo seria a forma de contar, resgatar e fabular com imagens e sons da nossa história e da história passada ou futura do diretor. Todos eles trazem uma vontade arqueológica de resgate de materiais e resgate de uns passados cristalizados em seu presente e projetados para um futuro, seria assim o cinema na história em sua mais pura acepção.

Como proposição do agenciamento do caco (pedaço estilhaçado) pensamos no leitmotiv do nome de “São Paulo Sinfonia e Cacofonia” que surgiu a partir do caos em uma das sessões de trabalhos, quando uma das participantes do grupo de pesquisa falou “que não sabia se era uma sinfonia ou uma cacofonia” (BERNADET, 2000:25). A iluminação ocorrida e relatada por Bernadet ilustra os agenciamentos da montagem enquanto o uso de materiais de arquivo, este gérmen produzido na cabeça de Bernadet a partir da preensão e apropriação da frase de uma das integrantes do grupo de pesquisa, surgiu dentro do contexto de criação de ordem para o caos a partir de uma discussão em grupo, nos remetendo também a desordem e caos que a montagem proporciona na hora de colocar, criar com estes diferentes pedaços (cacos) de materiais, a fim de dar uma ordem narrativa compondo assim uma sinfonia.

Do caos à ordem, da ordem ao caos

Do caos à ordem para o diretor que junta os cacos dos diferentes pedaços e fragmentos de outros filmes a fim de ordená-los e criar sentido em uma narrativa, e da ordem ao caos para o espectador desta multiplicidade, que fruiu face às descontinuidades provocadas pela passagem dos materiais múltiplos.

No inicio do filme de Mario Civelli, o diretor insere os seguintes letreiros: “Sendo filmado em diferentes datas, com vários tipos de negativos e câmeras, deve ser justificada a desigualdade notada entre as cenas em benefício da autenticidade”. A preocupação de Civelli se dava com a multiplicidade de bitolas, de materiais e de texturas na tela. Conforme Bernadet:

Eu tinha um problema bem claro a resolver: um filme composto de tantos pequenos fragmentos, mesclando ficção e documentário, cor e preto-e-branco, formatos e épocas diversas, corre o riso de se tornar uma colcha de retalhos, de se atomizar; era necessário mobilizar diversos mecanismos que assegurassem a unidade. (BERNADET, 2000:27)

Diferentemente de Civelli e Bernadet, Sganzerla não se importa com a criação de um sentido na articulação dos materiais, que estão dispostos de “forma solta” na narrativa de Tudo é Brasil. A multiplicidade na montagem vem a conformar o vocabulário e a estilística de Sganzerla, que propõe a multiplicidade ao invés da unidade com os fragmentos de arquivos. “Acho que o caminho é a diferenciação, a multiplicidade. […] Me interessa um cinema que tenha liberdade de câmera, de microfone, de montagem porque acho que o grande problema do cinema brasileiro, hoje, é voltar a ser cinema” (SGANZERLA, 1987:98). Como cita Sganzerla em entrevista a Modenesi (2000) sobre a montagem de Tudo é Brasil, “você colocou de uma forma interessante à questão de… como se fosse uma árvore com várias raízes que se multiplicassem espontaneamente. Eu vejo mais do que isso: ele tem uma interposição de textos”.

Nos filmes de Sganzerla a figura de Welles se multiplica na tela, ao surgir em fotos de arquivo, em locuções radiofônicas antigas, com o contato com Carmem Miranda, ou na voz gutural do narrador, homenagem e paródia antropofágica do cineasta aos cinejornais. “A obra de alguns cineastas orienta-se na procura da distância ideal, em que se fundem a multiplicidade e o fervilhamento barroco com a unidade e superioridades clássicas (a disciplina livre, aprendida através de um olho superabundante e generoso, a câmera)” (SGANZERLA, 1965:88). Sobre Barroco, Bernadet propõe que Sobre anos 60 e São Paulo Sinfonia e Cacofonia seja uma experiência neobarroca.

Como se articulam os materiais a fim de construir ou destruir o sentido da narrativa com a montagem? Quanto às particularidades adotadas na estilística dos diretores, a produção de sentido do enunciado no espectador de Tudo é Brasil e Sobre anos 60, parece inicialmente complexa mesmo para quem conhece o acontecimento, ou no caso do filme de Bernadet, um repertório dos filmes recortados.

A construção de sentido na narrativa através dos agenciamentos de materiais e modos de composição verifica em um espectador fruidor, àquilo que chamamos de construção de um documentário “mais solto”, desconexo, em que o relato e as indexações/significações dos materiais parecem não serem “costurados” a narrativa, com ausência de referências entre as imagens ou materiais que compõem o filme.

Bernadet (2004:71) chama de ressignificação a “transposição de um contexto fílmico para outro, modificando lhe a significação”. Podemos observar o que Bernadet versa o conceito de ressignificação, através da apropriação de materiais, mas não no que resultaria na costura e estruturação das narrativas dos filmes, mudança de sentido e contexto. A necessidade ou não de “legenda” é ultrapassado nos assuntos teóricos, mas incisivo na construção do sentido da narrativa na montagem. Sendo assim, o nosso interesse se dá nos modos de agenciamentos dos materiais de arquivo e de materiais atuais através da montagem, verificando a “costura” da narrativa para a fruição do espectador a partir destes três filmes.

O arquivo e sua articulação na narrativa nos trazem outro caráter como baliza de diferenciação nestes filmes, o fato de “costurar” o sentido da narrativa ou deixar o espectador “solto” nela tem relação direta sobre os modos de composição fundamentalmente com elementos do documentário. A estilística mais solta, desconexa e complexa, que é o caso dos filme Sobre anos 60 e mais radicalmente tratado em Tudo é Brasil, nos fazem refletir determinados aspectos.

Baseado em um repertório prévio, para quem conhece algumas especificidades da passagem de Welles pelo Brasil, ou os filmes recortados por Bernadet, apesar da complexidade e multiplicidade na articulação destes materiais, é passível para o espectador a construção de sentido dos filmes. Já para quem desconhece estes materiais ou o acontecimento relatado, algumas vezes é factível ficar “solto” na narrativa. Em ambos, a estruturação não costurada ou pouco linear, multiplicado pelas bitolas, meios e tipos de materiais utilizados, dá a sensação na fruição de estar vagando em referências nulas, ou mesmo não nos prender a fruição, deslocando a atenção do espectador da narrativa. Não seria nem a legenda da imagem ou a completude necessária para o sentido da obra, mas a imagem som e verbo vagando de “forma pura” na narrativa, quer dizer, a banda sonora e banda imagética descolada.

O filme de Civelli, O Gigante, possui a sua narrativa mais “amarrada”, o acontecimento que já é ressignificado pelo discurso, para o espectador se coloca de forma aparentemente “coesa” quando comparado aos filmes de Sganzerla e de Bernadet. Isto porque O Gigante tem a voz over ligada e dinamizada com as imagens. Sobre anos 60, a presença da voz over de ItalaNandi, intenta a criar a polifonia, logo a polissemia das imagens. Já em Sganzerla, a sensação de estar solto na narrativa é muito maior, a banda sonora é completamente descolada da banda imagética e a trilha sonora é ainda mais solta com músicas disparadas do inicio ao fim.

A significação de uma imagem se constrói pela sua inserção em determinado contexto visual e sonoro, jogando e experimentando a polissemia com a indeterminação da significação, tornando assim filmes feitos na linha de montagem com sentidos imprevisíveis. O filme com grande parte de arquivos acaba sempre “eclodindo” para a polissemia. Este ponto é notório nos três filmes. Não por menos, Bernadet refere a imagens prostituídas, mudando de vestido conforme os contextos, uma relação de criação de continuidade aponta, ou tenta, a conexão entre as imagens na tentativa da criação de raccords, impossíveis, já que são cacos/fragmentos. Dessa impossibilidade de continuidade expõe-se a poética do arquivo, quando sentimos a interrupção do fluxo e da continuidade através da passagem de uma imagem para outra. Na relação da montagem com esta multiplicidade do arquivo, verificamos que a preocupação com a unidade é mote de preocupação de Civelli através dos créditos iniciais de seu filme, Bernadet explora a polissemia, mas ainda com a busca de unidade na multiplicidade e Sganzerla pouco se preocupa com esta multiplicidade de bitolas, de materiais e continuidade na montagem.

Este ponto de diferenciação nos três filmes nos faz entender o papel da voz over e de demais agenciamentos para amarrar/costurar o conteúdo (arquivos, tomadas, etc.) para o espectador. Quanto a não amarrar; quem conhece o contexto histórico abordado na narrativa ter repertório para tal pode fruir de forma particularmente excitante pelo fato de entender a inventividade ou a abordagem do diretor ao compor a narrativa com algumas particularidades, que vêm à tona na montagem com o resgate e a articulação dos materiais de arquivo.

Conclusão: obsessão pelas imagens

O que estes cineastas têm e por isso recorrem a estes agenciamentos com imagens e arquivos é a obsessão pela imagem e assim se satisfazem na montagem. Cita Bernadet (2000:39) “é o fascínio que corre quando a imagem fica despojada das significações e funções que lhe atribui o seu contexto. As pessoas de minha geração foram introduzidas à imagem fascinante por uma forma de montagem dos anos 60 e 70”. A obsessão de Sganzerla era Welles e o resgate da sua passagem pelo Brasil se da em grande parte com o encontro do diretor brasileiro com as imagens de arquivo na Cinemateca captados pelo DIP na época de Getúlio Vargas. Essa paixão pelas imagens se manifesta nos três diretores.

A pesquisa para Sganzerla é um primor nas atividades cinematográficas desempenhadas pelo diretor, se tornando claro nos filmes que retrataram a passagem de Welles pelo Brasil. Ao que nos parece, esta pesquisa se estendeu por praticamente toda a sua vida. Dela resultaram quatro filmes diretamente sobre Welles, dois documentários e dois filmes de ficção. Na sua busca por materiais e reconstruções históricas da passagem de Welles, Sganzerla seria um dos grandes responsáveis pelo levantamento histórico do diretor americano na sua passagem conturbada pelo Brasil. A pesquisa, para Jean Claude-Bernadet, seria fruto de uma experiência acadêmica com materiais e colagem de outros filmes, como relata em seus ensaios teóricos, além de ser fruto de uma pesquisa, ele ganha todo o verniz acadêmico em cinema. A pesquisa em Civelli é empírica, sendo O Gigante um compilado da sua vida de cinegrafista, produtor e diretor.

Criando assim a sua poética em imagens textos e sons, de modo geral, os três cineastas se lançam a montagem através da criação e ordenação dos pedaços/cacos de arquivos, seria a montagem em sua enésima potência. O arquivo e a pesquisa vêm assim para o primeiro plano, no que chamamos de poética do arquivo. A narrativa insiste em ver e ouvir os pedaços ao invés de entender o sentido da narrativa. A obsessão de todos os cineastas abordados neste ensaio pelas imagens e pelos sons de arquivos é evidente. Seria uma pulsão escópica dos diretores através dos arquivos, cristalizados através da montagem a grande vocação do cinema.

O trabalho de pesquisa com resultados no encontro dos arquivos vêm para o primeiro plano, mostrando a sua poética e tornando “visível” a montagem. Nestas três obras, a poética das imagens se evidencia vertendo possibilidades na fruição. Entre levantar materiais e imprimir a subjetividade, tocando e modificando o conteúdo das imagens e sons, os diretores optam por salientar o resgate, a busca por sua memória, nunca resolvida nem coletiva nem individual, mas cosmológica, de um passado nostálgico e de um presente que suscita o contexto apontando para um futuro. São aspectos que estes três diretores nos proporcionam com suas experiências em documentários com grande parte de materiais de arquivo na composição de suas narrativas.

¹O found footage com ênfase no estilo, traz enfoque no resgate e no trabalho com materiais de arquivos. A prática contemporânea enfatiza a reapropriação destes materiais.

*Régis Orlando Rasia é mestrando do programa de Pós-Graduação em Multimeios da UNICAMP.

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