Mesa 4 do Ciclo de Debates do 3º FestLatinoSP

Mesa 4 (Realidade: Apreensão e Representação) do Ciclo de Debates do 3º Festival de Cinema Latino-Americano

Merlot argentino e muita castanha-do-pará. Um coquetel humilde antes do início da Mesa 4 (Realidade: Apreensão e Representação) do Ciclo de Debates do 3º Festival de Cinema Latino-Americano que aconteceu em São Paulo. A edição homenageou Fernando Solanas, que perambulava pela sala de espera apreciando com orgulho o vinho de seu país, e Tomás Gutierrez Alea.

O diretor cubano, a propósito, teria se deliciado com a pompa do evento, que mostra em suas salas filmes de fome, luta, revolução, suor e sofrimento, mas que se abarrota em ternos europeus legitimando nossas memórias do subdesenvolvimento. A busca por um cinema com identidade latino-americana, tropical, admitidamente subdesenvolvida, parece não refletir na vontade da elite intelectual brasileira, que se vangloria do Cannes Latino.

Eu que não sou bobo, também tomo logo dois copos.

No meio de tantas lendas do cinema, encontro uma galera de Imagem e Som que também prestigiam o evento. O professor Mauro D. Addio Silva também está presente.

Entramos no mini-auditório e Cléber Eduardo, crítico de cinema e mediador da mesa, anuncia os integrantes do debate: Cao Guimarães, Cláudio Assis e Eduardo Coutinho. Mas onde está Coutinho? No banheiro! – alguém diz. Ufa! Os mestres também mijam.

Brincadeiras a parte, o debate é sensacional. Cleber Eduardo ainda tentou colocar um tom mais acadêmico levantando questões sobre o tema da mesa, mas logo de cara Coutinho diz em seu tom divertido e simpático que não tem nada para falar sobre real, realidade. “Necessito de perguntas. Se me perguntarem eu respondo, se não vou embora. Não dou palestras”.

Já Cláudio Assis, inspiradíssimo fumando seu charuto, manda logo um “foda-se” para aquela pompa toda, para todos os termos acadêmicos e para hipocrisia petulante. “Me incomoda as caracterizações fáceis, reducionistas. Cinema tem muito a se construir e modelar. Tudo tem ficção e documental”. Acrescenta ao pedir o cinzeiro que “Todo mundo fuma, todo mundo bebe, todo mundo trepa. Você não fuma maconha? Foda-se. Vamos parar com essa hipocrisia. A gente vem aqui pra conversar, pra descobrir pra onde a gente tem ou não que andar. Eu não sei porra nenhuma, mas tenho vontade do querer, o lado que eu não sei. Faço cinema de compromisso. Arte que faz pensar. A arte que não faz pensar não me interessa. Eu filmo pessoas de carne e osso. Foda-se Fernando Meirelles, foda-se quem for desses aí”.

“Não sei se respondi à sua pergunta”, indaga Cláudio ao fim de sua fala vestindo sua camisa vermelha com os dizeres “Sex in the Sitio” e um boi sobre uma vaca. “Você vai responder o que quiser, não importa o que eu perguntar. Eu só estou aqui fazendo o jogo de cena“, brincou o mediador.

Cao Guimarães, mais reservado, ao melhor modo mineiro, abriu sua fala apontando como a relação dos personagens com o espaço era importante em seu trabalho. Lembrou que na época das primeiras exibições o projetor ficava na mesma sala que as pessoas despertando mais interesse que o próprio filme. Quando se escondeu o aparelho, o espaço perdeu importância para o tempo, o que foi perpetuado com o cinema clássico. Cao vai na contramão, ou na Mão Dupla.

Famoso por suas instalações, os filmes de Cao só são exibidos em condições consideradas perfeitas pelo autor, onde o espectador está totalmente inserido na obra. O diretor comentou que ao entrar em uma instalação em Copenhagen onde seu filme A Bolha era exibido, “Vi vários doidões dormindo nos pufes, alguns acordavam, viam aquelas bolhas e voltavam a dormir. Por que a gente tem sempre que entender o que as coisas falam? Palavras são sensações também, sopros”.

Em seu filme Mão Dupla, em que Cao dá a câmera a duas pessoas que não se conhecem e ambas gravam a casa do desconhecido, o diretor aponta que, ao gravarem, as pessoas revelam-se muito mais do que apresentam o outro. “Quando fala de si, o indivíduo se protege. O olhar e a linguagem escolhidos para documentar o outro são reveladores. Acredito que há três formas, que exemplifico na metáfora do lago: você pode sentar à margem e observar, jogar uma pedra na água ou pular de cabeça”.

Outro tema que surgiu foi a importância de festivais como este para oportunizar a exibição de filmes latino-americanos e da busca por essa linguagem comum entre o povo do cone sul.

Cláudio Assis não perdeu tempo: “Não existe uma linguagem latino-americana. O cinema não é de Caruaru, Brasil, América… é do mundo. É uma questão maior que fronteiras, é um olhar sobre a humanidade. Qualificar e segregar. Já chega os EUA para ditar como faz cinema com seus modelos estabelecidos. Seja honesto consigo mesmo. Eu não quero cinema pra vender, e sim pra transformar, pensar. Fazer cinema é diferente de distribuir. Tem pessoas que ganham para isso. Pra que ir pra Hollywood, ganhar Oscar? Eu quero que eles enfiem aquele Oscar no cu! E cá entre nós, onde está passando cinema venezuelano no Brasil? Ninguém assiste o cinema daqui, imagina do Peru. Existe modismo: ainda não entrou na moda, quando é moda a mídia compra”.

Coutinho ainda lembrou: “Alguém já ouviu dizer de filme da União Européia? Tem cinema na Suécia, Rússia; cada um é diferente. Outra coisa perigosa são as etiquetas: só negro filma negro, só gay filma gay, etc. Nos EUA é assim, eles fazem cinema de assistência social. Se você for da África, negra, lésbica e anã e for fazer um filme com certeza consegue patrocínio estatal. São os Michael Moore da vida”.

Eduardo Coutinho

O documentarista acrescentou que as diferentes línguas também dificultam a homogeneização do cinema latino-americano e sua exportação/exibição no exterior. Coutinho lembrou que seus filmes, predominantemente falados, são de difícil tradução, devido à limitação do espaço da legenda, e alguns até mesmo intraduzíveis pela regionalização de certos termos e sotaques. “Foi mais difícil traduzir Santo Forte que fazê-lo”, brincou. Ele ainda apontou que os filmes dublados têm encontrado maior espaço nos festivais que os legendados. Eduardo Coutinho comentou sobre um documentário que assistira sobre a favela de Santa Marta em que todos os entrevistados falavam em inglês. “Cinema é específico, não brasileiro. A união deve ser feita através de políticas de cultura”, completa.

Um bom exemplo dessa especificidade lingüística no cinema que não impede a universalização da obra é o próprio Cao Guimarães.  Sua “mineiridade” tem maior fluxo no exterior do que em território nacional.

Cláudio Assis ainda acrescenta: “Cada pessoa tem um modo de olhar. Use esse olhar. Primeiro leia, viva intensamente, seja honesto consigo mesmo, não tenha vergonha de errar. Ninguém nasce sabendo! A fórmula é não ter fórmula. O grande barato é pensar o filme: aquele plano, olhar, movimento, tudo tem um objetivo, consciência. O que eu quero tocar, filmar. Tem pau duro, tem tesão, tem xoxota latejante, bota pra foder!”

Eduardo Coutinho ainda lembrou da maior facilidade em se fazer cinema com a chegada do digital. “Às vezes me pagam pra fazer palestras, não sei por que, se eu não sei dar palestra. Não sei arranjar dinheiro, gastar eu sei mais”, responde quando questionado sobre editais e como buscar verbas. “Deve ter mais miniDV no Brasil que no resto do mundo! Brasileiro gosta de bugiganga. Faça filmes antes de ganhar dinheiro. Vocês não tão na faculdade? Se enturmem e façam filmes. O Brasil tem herança da escravidão ainda: todo mundo quer ser diretor, quer mandar!”, brincou o documentarista.

Concordo com você, Coutinho. Mandar, usar terno e beber vinho.

Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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