Experimentando o Cinema: notas e reflexões sobre o cinema de vanguarda

Tereza Azambuja*

Resumo

Este trabalho faz um estudo das teorias formuladas sobre o Impressionismo Francês dos anos 1915-29 a fim de entender melhor como esse movimento de vanguarda foi articulado e quais foram suas heranças para o cinema autoral e independente. O artigo também propõe uma ponte entre o movimento avant-garde da década de 20 e o cinema moderno das décadas de 58-68, no mesmo país, França, amplamente conhecido como Nouvelle Vague. Compreende-se que duas vanguardas francesas apresentam as mesmas características técnico-estilísticas, irreverentes ao cinema hegemônico e sua linearidade narrativa. Essa análise busca provar como uma escola influi na outra – inclusive em suas formulações teóricas e tradições de crítica cinematográficas.

A poesia das imagens

Na primeira fase da história do cinema mundial, quando foram definidos os códigos da linguagem cinematográfica, a indústria dos Estados Unidos ganhou muito espaço no mercado europeu, por conta da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Com isso os cinemas foram progressivamente inundados com sua consolidada narrativa clássica: o “melodrama hollywoodiano”, que visualizava o mundo através de representações hegemônicas, ditas “realistas”.

Nesses momentos de incerteza política e decadência das instituições burguesas é que surgem as vanguardas, como um meio de expressão contrária à forma socialmente correta de se retratar o mundo – um reflexo da descrença generalizada ao sistema em crise. Foi assim na década de 1920, com os movimentos avant-garde europeus surgidos depois da primeira grande guerra, o mesmo acontecendo nos fins dos anos 50, pós-Segunda Guerra Mundial.

Quando os artistas e críticos se interessam pelo potencial poético cinematográfico como meio de expressão de um mundo imaginário, é que o cinema se consagra como arte e expõe uma supra realidade mais verdadeira que a realidade cotidiana, com a orquestração de temas a partir de princípios sinfônicos. É assim que surge o movimento impressionista cinematográfico francês.

(…) [os realizadores] defendem uma força de expressão ligada ao tempo. Ou seja, ao fluxo das imagens, ao movimento incessante da luz e dos corpos na tela, à sucessão necessária das impressões. O cinema torna-se expressão do fluxo visual como a música é organização do fluxo sonoro. (AMIEL, 2007, p.121)

A gênese da teoria cinematográfica

Ricciotto Canudo foi o precursor teórico do movimento impressionista, e também o pensador que atribuiu ao cinema o estatuto de sétima arte; a arte do filme era a fusão das artes plásticas e rítmicas, “um maravilhoso instrumento de novo lirismo” que tinha como finalidade suprema a visualização do aspecto intimista da vida, e não a pura representação dos fatos.

Em seus textos Manifeste des sept arts e Esthétique du septième art sustenta que o cinema é uma abstração, uma “arte nascida para ser representação total do espírito e do corpo, um drama visual feito com imagens e pintado com o pincel de luz”. Para Canudo, a arquitetura e a música seriam as duas artes fundamentais, das quais derivam: a pintura e a escultura como complementos da primeira; a dança e a poesia como desdobramentos da segunda – a dança, um esforço da carne; a poesia, um esforço da palavra: ambas buscando se tornar música. O cinema, assim, faz a perfeita junção dessas duas artes fundamentais: “é a arte plástica em movimento”. (ARISTARCO, 1961)

Os principais nomes do impressionismo francês são Abel Gance, Germaine Dulac, Jean Epstein, Louis Delluc, Marcel L’Herbier, René Clair, dentre outros imigrantes naturalizados, como é o caso do russo Dimitri Kirsanoff e do brasileiro Alberto Cavalcanti. Muitos destes já haviam entrado no meio das artes: Dulac e Delluc foram críticos, Cavalcanti era arquiteto, Gance era ator, Epstein fora poeta, Clair era romancista e Kirsanoff era músico – todos foram atraídos pela gênese de uma nova arte. Essa multiplicidade artística revela que a união desses realizadores se dá mais por uma expressividade pungente do que pela própria unidade estética e teórica do movimento impressionista.

A escola impressionista está submersa no meio de um plural-artístico que abrange toda forma de manifestação experimentalista avant-garde contracorrente, característica do zeitgeist revolucionário de toda a década de 20 – que põe em questão toda práxis de um sistema capitalista e de uma sociedade burguesa com estruturas e valores morais falidos. Isso dá conta de esclarecer a diversidade estilística, formal e temática do conjunto da produção vanguardista do pós-primeira guerra. Muitos diretores flertaram com vários movimentos que estavam em voga nesses anos, o que dificulta sua categorização formal em um único bloco impressionista, sem, no entanto, ofuscar o valor da unidade do movimento em si ou de cada obra isolada.

Todos esses jovens artistas estavam fartos de uma tradição formalista e pragmática na teoria da arte, e eram fortemente atraídos pelas infinitas possibilidades de uma arte recém descoberta:

Por essa época, o desejo de experimentar havia empolgado também os artistas franceses, disso resultando que todos os principais movimentos artísticos da década de 20 – impressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo – pouco depois estavam representados no celulóide. (KNIGHT 1957, p.88)

Como exemplo há o pintor alemão Hans Richter, que antes buscava criar na pintura um tema visual com ritmo crescente, da mesma maneira que o tema musical evolui na sinfonia ou na sonata. Frustrado com as limitações intrínsecas daquela forma de arte, o precursor vanguardista começa em 1921 suas experimentações abstratas com a própria câmera, que foram responsáveis por consolidar técnicas e efeitos visuais utilizadas por cineastas até hoje.  São exploradas em seus filmes as relações mutáveis de formas que se moviam no espaço, os efeitos de tonalidades variáveis de cinzas, as superposições de objetos inesperados, as distorções criadas pelas diferentes lentes e prismas. (KNIGHT, 1957)

Interessavam a Richter a textura da luz, o movimento gerado em coisas inanimadas e os ritmos criados pelo corte. A função do artista, para ele, seria aumentar o campo de ação e a expressividade da câmera de maneira inconcebível no filme narrativo comum, assim realizando o “filme absoluto”.

Entre a idealização e a realização

Louis Delluc foi o crítico que deu continuidade ao trabalho de Ricciotto Canudo na formulação de uma teoria cinematográfica impressionista. Contudo, não importa  tanto a Delluc dar ao cinema a categoria de Arte:

‘Nós assistimos ao nascimento de uma arte extraordinária: talvez a única arte moderna, porque é ao mesmo tempo, filha da máquina e do ideal humano.’ (Louis Delluc, 1919) Não é nem a primeira, nem a quinta, nem a sétima: é uma arte com poucos artistas, como poucos são os verdadeiros escultores e os verdadeiros músicos. A sua força deriva dos seus meios peculiares de expressão direta. (ARISTARCO, 1961)

Delluc define o conceito “visualismo”, que fora cunhado por Canudo, como “o conjunto de procedimentos da escrita cinematográfica que chega a expressar estados de ânimo, realidades emocionais” alcançados através da atmosfera, do dramatismo e da psicologia que caracterizavam os filmes impressionistas.

Essa escrita cinematográfica, para Delluc, contava com quatro elementos principais: le décor (cenário), la lumière (a luz), la cadence (o ritmo), e le masque (a máscara, que era o intérprete). É claro que ele não deixava de mencionar também a montagem alternada das imagens – que permitiria estabelecer “relações de confronto entre o presente e o passado, a realidade e o sonho”.

Para Abel Gance, a montagem cinematográfica se assemelhava a uma sinfonia – o cinema para ele era a “música da luz”. Já Jean Epstein dizia: “desejo fazer filmes onde não ocorra nem nada nem muito”, pois acreditava que a ausência de tema permitiria à realidade preservar todo o seu mistério e simbolismo latente. Ele cunhou o termo “fotogenia”, que designa a capacidade de criação inerente à montagem:

O que vemos através [dos objetos], são as recordações e as emoções, os projetos ou as mágoas que associamos (…) a essas coisas. Ora esse é o mistério cinematográfico: um tal objeto com este caráter pessoal, ou seja um objeto situado numa ação dramática com esse caráter fotografado também com ele, que reproduz-se cinematograficamente acusando ainda o seu caráter moral, a sua expressão humana e viva (…) (EPSTEIN, 1924)

Germaine Dulac distinguia a “ação” da “situação”, e entendia que a imagem era a alma do filme. Para ela, o movimento das imagens não podia ser usado para multiplicar episódios e cenas como meio cômodo para variar situações dramáticas. O movimento sozinho, por seu ritmo, é que criaria a emoção de um filme. A confusão entre agitação e movimento que muitas vezes era feita pelo cinema narrativo americano era criticada fortemente pela realizadora.

Daí a necessidade de se voltar o filme para o lado visual – o “visualismo”, já explorado por Canudo e Delluc, se baseia, na concepção da autora, em cinco pontos principais:

  • A expressão de um movimento depende de seu ritmo,
  • O ritmo em si mesmo e o desenvolvimento de um movimento constituem dois elementos sensíveis e sentimentais, que estão na base da dramaturgia da tela,
  • A obra cinematográfica deve recusar qualquer estética estranha e procurar a sua própria,
  • A ação cinematográfica deve ser “vida”,
  • A ação cinematográfica não deve limitar-se à pessoa humana, mas estender-se, para além dela, ao domínio da natureza e do sonho.

(ARISTARCO, 1961, p.126-7)

Dulac procurava comunicar a emoção apenas através da orquestração de estruturas visuais, do movimento abstrato, e recusava todo elemento narrativo, psicológico, dramático, tributário da tradição literária. Ela achava que a impressão que um filme causa deveria resultar de harmonias visuais óticas, e que deveria buscar a emoção no sentido ótico puro. A meta da cineasta era atingir a sensibilidade por meio de harmonias, de acordes, de sombra, de luz, de ritmo, e de expressão de rostos.

A vanguarda foi a procura e a manifestação abstrata do pensamento puro e da técnica pura, aplicados depois a filmes mais inteligentes e humanos; lançou as bases da dramaturgia da tela e ao mesmo tempo estudou e propagou todas as possibilidades de expressão contidas na objetiva cinematográfica. A sua influência é inegável: melhorou o gosto do público e a sensibilidade dos expectadores, estudou o pensamento cinematográfico e ampliou-o em todo o seu vasto alcance. A vanguarda, que é necessária à arte e à indústria, é um fermento de vida, contém em germe, as idéias das gerações futuras: é progresso. (DULAC, 1932)

Dulac com essas palavras sintetiza o caráter de inovação experimental, e a  ideologia contracorrente de todo seu movimento; além de prever suas consequências diretas para as gerações futuras, tanto por trás da tela, quanto na frente dela. As heranças desse cinema de vanguarda, autoral e independente, vêm a ser sentidas poucas décadas depois, tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial – o grande inverno em que a expressão artística europeia fora forçada a hibernar.

Ritmo e luz

No cinema impressionista a narratividade do filme é somente anunciada, pois a compreensão do roteiro não é o objetivo do autor, mas sim o entendimento da carga emocional da história – o que é atingido a partir da montagem dos fluxos de imagem, das composições de cena e enquadramentos, que privilegiam as luzes e os ritmos. As imagens são montadas e orquestradas de modo a emitir um sentido que não é identificado a partir da racionalidade, mas do sentimento.

Amiel denomina essa técnica de montagem por correspondências, designando-a “(…) ecos formais valorizados pela montagem, mas cuja experiência não se esgota na sensação. Esta poderia ser a definição dessa colagem à distância que, de longe em longe, cria efeitos sensíveis que provocam eles mesmos relações de significação. Os sentidos engrenam a substituição, que por sua vez produz Sentido.” (AMIEL, p.111)

Os inserts e sobreposições dos planos de ponto-de-vista são efeitos de trucagem muito utilizados afim de uma intensa exploração do drama psicológico dos personagens, feita através da montagem. Também é muito comum nesses filmes o uso de close-ups, enquadramentos não-geométricos ou assimétricos, pontos de fuga, planos detalhes e falsos raccords, que vão influir para a composição de narrativas não-lineares. Esses últimos são muitas vezes voltados para um mundo externo ao dos personagens, longe da vida agitada da cidade: remetem a uma exaltação da natureza, do puro, da harmonia – os takes de paisagens parecem pinturas de Claude Monet.

Além disso, como marca do movimento impressionista, as imagens das folhagens ou da água são pontos de fuga da narratividade, momentos contemplativos, de reflexão. Lucidez da água, fluidez do vento, reflexos de luz do sol – são como figuras de linguagem em meio à poesia audiovisual: cinema multissensorial.

Os autores impressionistas aproveitavam frequentemente os parques para filmar: locações baratas a céu aberto – numa era em que imperavam os filmes de estúdio, era quase um contrassenso, um manifesto do cinema independente, que tinha em sua fórmula cenários simples, locações externas, atores não profissionais e pouco uso de equipamentos para iluminação; aliados a uma intensa expressividade na direção de atores e muito significado na decupagem. Essa equação resultava em obras-primas da arte, poéticas e atemporais, que serviriam de inspiração para cineastas do mundo todo, até os dias de hoje. Um prato cheio para críticos e intelectuais.

O cinema moderno herdou muito da vanguarda da década de 20, que repetiu a antiga fórmula com afinação, e ganhou mais ainda com o surgimento da cultura pop, que formou legiões de fãs para o novo cinema de autores. Fãs esses que passam a ser críticos e teóricos da sétima arte, e, sem demora, lançavam-se às experimentações cinematográficas eles mesmos. Foi assim que se movimentou a onda da nouvelle vague, e que surgiram nomes como Godard, Truffault, Rohmer e muitos outros.

Era o mesmo panorama: um grupo de jovens artistas, nascidos ou criados numa França contextualizada pelo pós-guerra, inspirados por ideias revolucionárias e unidos pelo amor à arte do cinema, aventurando-se de forma ousada e amadora no experimentalismo. Além disso, havia também um teórico mentor – André Bazin –, que concebeu as estruturas do movimento e foi um dos fundadores de uma revista sobre cinema: o objeto de circulação de ideias, onde todos publicavam artigos com suas teorias sobre a sétima arte.

As duas vanguardas francesas apresentam as mesmas características técnico-estilísticas, irreverentes ao cinema hegemônico e sua linearidade narrativa. Compreende-se, assim, que uma escola influi na outra – inclusive em suas formulações teóricas e tradições de crítica cinematográficas.

Da primeira à segunda onda

Os filmes frutos do impressionismo francês não só abriram caminho para a experimentação e para a crítica artística, eles também influenciaram toda uma audiência receptora, que passa a compreender a experiência cinematográfica de uma nova forma.

O público francês tornou-se pronto para receber uma nova classe de filmes, que não somente o desafiavam a desvendá-los num esforço intelectual e racional, mas faziam-no experimentar sensações indescritíveis a partir do fluxo e movimento das imagens e luzes na tela.

Contudo, não se fala da audiência francesa cinematográfica como um todo, já que as salas que exibiam os filmes vanguardistas compunham um circuito alternativo, artístico e independente, e já se articulava, assim, o advento de uma “tribo” urbana formada por intelectuais e outsiders, que hoje já pode ser identificada por “cult”. Porém, o que importa é que o universo de exibição audiovisual já comportava, no início da década de 20, espaço para o cinema de arte. E esse cinema havia chegado para impor seu espaço.

Não poderia, portanto, deixar-se morrer o apetite vanguardista após a forçada ruptura de sua evolução – que se deu por conta da eclosão da guerra na Europa. Ele voltaria com toda força em uma “nova onda”, cuja crista não estava tão longe assim.

*Tereza Azambuja é graduanda em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense, onde está no 7º período. Com uma formação complementar básica em Ciências Sociais pela FGV, suas áreas de interesse são Estudos Culturais, Arte e Sociedade, Movimentos de Vanguarda, Artes Visuais e Cinema Autoral. Já atuou como colaboradora no Instituto MoreiraSalles, como crítica de cinema e palestrante.

Bibliografia

KNIGHT, Arthur. Uma história panorâmica do cinema – a mais viva das artes. Rio de Janeiro: Lidador, 1970.
ARISTARCO, Guido. História das teorias do cinema (primeiro volume). Lisboa: Arcádia, 1961.
MARTINS, Fernanda. “Impressionismo francês”. In: MASRCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.
AMIEL, Vincent. Estética da montagem. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
DELLUC, Louis. Cinéma et Cie. Paris: Grasset, 1919.
EPSTEIN, Jean. “Pour une avant-garde nouvelle” (conferência de 1924). In: Écrits sur le cinema, t.1, Seghers, 1974.
DULAC, Germaine. “Le cinema d’avant-garde” in: Le cinema des origins à nos jours. Paris, Aux Editions Du Cygne, 1932.

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