Sem essa Aranha (Rogério Sganzerla, 1970)

O cinema de Glauber Rocha, apesar da intensidade dramática e das tensões, sempre pretendeu encerrar, por meio da alegoria, uma visão em totalidade da realidade do país e uma didática da revolução, ocorresse ela por meio da política ou por meio da religião popular. Rogério Sganzerla herda de Glauber este cinema convulsivo e de tensões, de registro iconográfico híbrido e forte empenho ético (contra o conformismo burguês, contra o cinema comercial). Mas, ao contrário do baiano, o desencanto e o sarcasmo tomarão o lugar da esperança revolucionária. Sganzerla é o cineasta do caos e da desesperança. Seu cinema requestará uma estética do anti-sublime, realizando uma “nekyia” a um inferno chamado Brasil. Inferno impossível de ser representado numa imagem una, harmônica, totalizante; daí irá o cineasta colher para seus filmes uma miscelânea de imagens e sons propositalmente inconciliáveis, irredutíveis a uma síntese dialética. Cinema onívoro e caótico, impiedoso com os últimos mitos da resistência segundo a ótica de certo cinema novo: nossa porção agrária e nosso povo.

“Sem essa Aranha” (1970) foi o terceiro longa-metragem de Rogério Sganzerla e é, até hoje, uma obra-prima pouco conhecida. Seu acesso é atravancado, além dos já conhecidos problemas de distribuição, pelo moralismo que não sabe distinguir o ensejo de revolução estética da simples e grosseira provocação. Nele, Sganzerla leva a uma dimensão cósmica seu niilismo (a frase “o sistema solar é um lixo” é repetida várias vezes) e sua proposta de um cinema anti-ilusionista, repleto de metalinguagem e de intervenções autorais.

O filme é protagonizado por Jorge Loredo, encarnando seu imortal Zé Bonitinho, escolha das mais felizes, pois o espalhafato e o donjuanismo kitsch do personagem casaram perfeitamente com o tom de paródia corrosiva do filme, que um crítico chamou acertadamente de “chanchada apocalíptica”.  No filme, narra-se, se assim podemos dizer, as deambulações do impagável Aranha (o Zé Bonitinho de Loredo) com suas três mulheres (Helena Ignez, Maria Gladys e Aparecida) por diversos recantos do Rio de Janeiro e também pelo Paraguai. Embora aqui o plano-seqüência tenha tomado o lugar da colagem (técnica recorrente em “O bandido da luz vermelha”), a sensação de caos continua asfixiante. Sganzerla abandona o roteiro bem amarrado e conta com a indulgência dos atores e do acaso; o resultado é um caos programado, em que a avacalhação geral é o leitmotiv que amarra o filme mais que o seu suposto enredo. Há um sentido de transgressão e inversão dos valores, que invalida qualquer halo de grandeza épica à busca dos personagens. Títeres das mensagens do diretor, que propositalmente lhes negou unidade e densidade psicológica, eles vociferam bordões e achincalhes, respondendo com cinismo (principalmente no caso de Zé Bonitinho) ao cinismo que os rodeia. A mise-en-scène, como os personagens, é impura e caótica: muda sem explicação lógica, incorpora transeuntes como coadjuvantes e figurantes e  faz questão de exibir sua provisoriedade e improviso. O estilo câmera-de-mão, com seus movimentos, reafirma a desordem representada.

Todos esses movimentos e opções estéticos não seriam, em si, motivos de ovação, mas revelam seu acerto na medida em que se coadunam com o objeto representado – lembremos que estamos no Brasil e em 1970.  O cinema de Sganzela – como o de Glauber, o de Nelson Pereira, o de Bressane, entre outros nomes que envolvem cinemanovistas e marginais – não se contenta em representar o caos e os impasses do país – este caos, estes impasses deveriam se transformar em dados estéticos, influindo de forma decisiva em o que e em como filmar. Em outras palavras: não era bastante filmar o subdesenvolvimento, era preciso descobrir as operações artísticas que dariam origem a um filme subdesenvolvido.

É por isso que “Sem essa Aranha” é uma agressão não apenas pelo que diz, mas também pela maneira que diz. A radicalidade não está na imagem que choca (vide algumas cenas de “Cidade de Deus” e seus decalques), mas no choque desautomatizador da imagem que se produz no contrapelo da gramática fílmica convencional, que codifica e cristaliza modos de filmar – fazendo-os familiares a nossos olhos e , assim, pouco provocadores.

Sganzerla põe essa gramática convencional de pernas pro ar. O resultado – falo aqui de forma bem pessoal – nem sempre é agradável de se ver, a não ser que se pense em um prazer puramente intelectual, de quem se deleita em apreciar a transgressão por já estar familiarizado com a convenção. É injusto, porém, com seu ideário artista ver os filmes de Sganzerla apenas pelo resultado final do produto, desvinculado da intenção revolucionária de seus gestos. “O Bandido da Luz Vermelha” alça vôo acima dos gestos do autor e da história que lhe provocou, mas “Sem essa Aranha”, mesmo radicalizando posturas e procedimentos de filmes anteriores, não suporta esta atitude, digamos kantianamente, de apreciação desinteressada.

“Sem essa Aranha” não oferece refrigério: é um filme por demais interessado em destruir – e , por coerência, em destruir-se. Ironia e auto-ironia. Nenhum horizonte utópico recorta sua paisagem, e ele só pode ser um lixo entre outros. Afinal, como diz um de seus bordões, “o sistema solar é um lixo”.

Sganzerla pertence a um momento histórico, ao mesmo tempo tão perto e tão longe do nosso, em que o experimental não podia se harmonizar com o comercial (ao menos no Brasil), reiterando a posição adorniana que cindia, de forma indelével, grande arte e prazer. O intertainment era para o reino “alienante” de Hollywood. Além disso, a marcação política se evidenciava no modo de tratamento que se dava ao público, que no caso do cinema marginal deveria ser de desafio e de ofensa frontal ao espectador. Estes fatores talvez neguem uma audiência mais ampla aos filmes de Sganzerla. Mas precisam ser levantados e refletidos, a meu ver, em contraste com os trabalhos do cinema de retomada, dos anos 90, onde a provocação, algumas vezes, se limita ao chic chocante – a violência e a feiúra estetizadas para circularem sem obstruções no mercado global.

Não que Sganzerla seja a panacéia para o nosso cinema atual (nem mesmo sei se ele continua atual!), mas, com seu radicalismo, ele nos faz ver onde nossas concessões bordejam a covardia, o medo de ousar. De qualquer forma, “Sem essa Aranha” encerra um capítulo fundamental de nosso cinema. Um capítulo cuja semente pode voltar a dar brotos.

José Wanderson Lima Torres escreve sobre cinema e literatura. É professor e co-editor da revista eletrônica dEsEnrEdoS

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