Andrei Rublev (Andrei Tarkoviski, 1966)

Breno Rodrigues de Paula*

Tarkoviski e a Metafísica do Belo no filme “Andrei Rublev”

Pôster de “Andrei Rublev”.

Andrei Tarkoviski possui uma posição inusitada na história do cinema russo. Sem dúvida, ele é o mais expressivo e importante cineasta da Rússia desde a tríade de grandes cineastas da Escola Formativa Russa (Eisenstein, Pudóvkin, Kuleshov), que teve seu auge na década de 20 do século passado. Estudado, amado e laureado fora Rússia, no entanto, em seu país, Tarkoviski foi incompreendido e extremamente censurado. As características de seus filmes não se enquadravam nos preceitos da estética do “Realismo Socialista”, então pregada como obrigatória na União Soviética. Tarkoviski realizou apenas oito filmes nos seus vinte e oito anos de carreira, desde a data do seu primeiro filme, aos vinte e oito anos, “O rolo compressor e o Violinista” (1960) ao último, um ano antes de sua morte, “O Sacrifício” (1986). Este pequeno número de filmes não significa um conjunto pobre de obras, pelo contrário, seus filmes possuem características de dimensões filosóficas, anteriormente, alcançadas somente pelo cineasta sueco Ingmar Bergman. Um filme que seria a obra prima de Tarkoviski, e síntese de seu modo de conceber uma obra dentro da Sétima Arte, é o fantástico “Andrei Rublev” (1966). No filme, questões filosóficas, tais como a relação dialética entre Artista x Meio e Arte x Sociedade, juntamente com questões de qual a função e constituição do Artista e de da Obra de Arte são desenvolvidas a partir de uma narrativa cinematográfica singular e inovadora.

O filme é uma biografia não linear do grande pintor russo Andrei Rublev, que viveu entre os anos de 1360 e 1430. Um período extremamente conturbado da história da Rússia, que sofria com invasões de tribos Tártaras e estava no auge da Baixa Idade-Média. Acompanhamos, ao longo de mais de três horas e meia, a trajetória de Rublev e o surgimento e desenvolvimento de seus anseios e de suas dúvidas sobre a fé (Deus), a sociedade russa e sobre a Arte. Vê-se a tentativa do Artista de compreender o mundo a sua volta, seja nos aspectos históricos e sociais como também artísticos e estéticos, em uma incessante busca pelo conhecimento e pela verdade.

Cena do filme “Andrei Rublev”.

A narrativa do filme é bastante interessante e muito inovadora. Ela é estruturada a partir de oito blocos narrativos autônomos, compostos por histórias não lineares a partir da seleção de faixas temporais. Não são narrados exclusivamente momentos da vida do grande pintor russo, pelo contrário, não há o protagonista clássico, do qual a narrativa e os acontecimentos desenvolvem-se a sua volta. Este é um dos pontos inovadores desenvolvidos por Tarkoviski, pois Rublev é um “observador”-, os acontecimentos desenvolvem-se aquém dele, por isso o filme perde o caráter biográfico e, até mesmo, histórico, pois ambos não são importantes-, o central é a “ideia”, na sua acepção estética e filosófica do termo.

A inovação de Tarkoviski, na estrutura narrativa de “Andrei Rublev”, foi extremamente mal recebida pelo público, pela crítica e pelos políticos soviéticos. Eles alegavam que a narrativa do filme subvertia os dados históricos e a biografia do grande pintor russo. Bradavam ainda que o cineasta desconsiderou a conjuntura materialista histórica dialética e que ainda não se utilizou dos preceitos da estética “Realista Socialista”, que vinha no seu auge criativo com o cineasta Mikhail Kalatazov através do filme “Soy Cuba” (1964). Devido a este conjunto de fatores, Tarkoviski foi censurado e execrado pela crítica cinematográfica soviética. No entanto, fora da Rússia, “Andrei Rublev” recebeu diversos prêmios, dentre eles o “Prêmio da Crítica” do Festival de Cannes. O filme é ainda considerado um dos mais importantes da história do cinema.

Cena do filme “Andrei Rublev”.

A importância e a qualidade do filme “Andrei Rublev” também se sustenta a partir do seu conteúdo e da maneira como Tarkoviski o concebe, dando-lhe uma dimensão que vai além da narrativa, chegando ao nível filosófico. Tarkoviski foi único cineasta, na história da Sétima Arte, no qual a sua obra conseguiu se aproximar, mas não chega, das características do maior de todos os cineastas: o sueco Ingmar Bergman. Ambos os cineastas (um mais, outro menos) intelectualizaram a realidade efetiva e fizeram com que a Arte fosse a expressão máxima dela. Para eles, o mundo é a representação, ou seja, em termos schopenhauerianos, a vontade de representação do Artista, através da sua obra de Arte. O que move esta vontade é a investigação gerada, de acordo com Schopenhauer, por uma necessidade metafísica.

O Artista pretende decifrar o enigma do mundo, não pelo conhecimento racional (isto cabe à ciência), mas através da Arte e é justamente isto que Andrei Rublev almeja fazer. Ao longo do filme, Rublev tenta compreender o mundo a sua volta de forma racional a partir dos três pontos de referência que ele possui: a fé, a crença na sociedade russa e a Arte. Contudo, ao longo da narrativa, ele perde a sua crença nestes três pontos, voltando a acreditar somente na Arte, quando conhece o jovem sineiro Boriska, isto no final do filme.

A fé de Rublev é abalada no momento em que as questões e as respostas da teologia cristã não conseguem lhe satisfazer o espírito incessantemente interrogativo e contemplativo. Ele fica maravilhado com a pureza e a liberdade de um culto pagão, mas se decepciona, quando cavaleiros, em nome da santa religião, matam brutalmente os pagãos. Sua crença na sociedade e no povo russo é abalada ao presenciar as guerras e as invasões tártaras, na qual um príncipe russo se alia aos tártaros para tomar o trono de seu irmão gêmeo. Por seu turno, sua crença na Arte é abalada no momento em que suas pinturas são destruídas e pelos ciúmes e inveja do seu grande amigo Kiril para com ele. Rublev perde completamente os seus três pontos de referência no momento em que mata um soldado tártaro. Ele havia tirado uma vida, não criado algo-, decide parar de pintar e se isola num mosteiro.

Rublev reata a sua crença na Arte, na mais bela cena do filme: “A fabricação do sino”. Ele observa o modo que o jovem sineiro Boriska fabrica o sino: não aceitando conselhos e, muito menos críticas-, indo apenas com a sua intuição e espírito criativo. Boriska representa o Artista, o Gênio criador. Ele tem a capacidade preponderante de apreender as idéias e a realidade das coisas por intuição contemplativa e puramente objetiva, ou seja, a capacidade criativa. Isto desperta Rublev. O pintor pede para que o jovem o acompanhe: um pintando e o outro fazendo sinos.

Em “Andrei Rublev”, Tarkoviski realizou uma obra de profundidade filosófica cheia de questões relacionadas à estética e a metafísica. Através do personagem Rublev há a discussão do papel do Artista na sociedade e a função da Obra de Arte. Tarkoviski realiza o filme a partir de uma “metafísica do belo”, no qual o conhecimento estético se torna algo que não pode ser comunicado mediante doutrina e conceitos, mas apenas, como salienta Schopenhauer, por meio de Obras de Arte. “Andrei Rublev” é uma das grandes e mais importantes obras da Sétima Arte. Aos que a censuraram, por não ser fiel ao contexto histórico, cabe as palavras de Aristóteles, retiradas do livro V da “Arte Poética”, sobre a diferença entre a História e Literatura: “a primeira narra o que foi, a segunda narra o que poderia ter sido”. O filme “Andrei Rublev” narra aquilo que poderia ter sido e, acima de tudo, o que pode ser.

Breno Rodrigues de Paula é Graduado em Letras, membro do Cine Campus, bolsista CAPES e mestrando em Estudos Literários pela UNESP Araraquara, é Curador Jr. Do Festival do Minuto, desenvolve trabalhos na área de Literatura e Cinema.

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