Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente (Lourenço Mutarelli, 2011)

por Tiago Canário*

Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente. A curiosa frase, com certo tom remissivo, dá nome ao trabalho que marca o retorno do também ator, escritor e dramaturgo Lourenço Mutarelli à produção de narrativas em quadrinhos. A história, como uma revisita ao passado, uma nostalgia seca, se configura a partir de uma série de memórias. Pontuado por fragmentos desconexos, o álbum articula com sensibilidade o encadeamento de uma vida – ou melhor, de seu fim.

Na obra, o personagem, presente apenas como uma voz narradora, reconta os acontecimentos na vida de seu pai, aposentado da Companhia Telefônica e aficionado por fotos antigas de desconhecidas e pelo velho hábito de desmontar e remontar (sem sucesso) máquinas antigas. Sua vida segue a repetição dos pequenos hobbies até o instante em que um acidente tira a vida de sua esposa, mãe do protagonista. É a partir da tragédia que o personagem inicia seu relato, atento ao modo como o evento afeta seu pai e como seu luto se estende, perpassando os estágios da apatia, da negação e da raiva. E – como um dos pontos altos – Mutarelli conduz a narrativa com um personagem que, apesar das tristes memórias, inclusive sendo responsável por algumas das más escolhas, não resvala na pieguice.

As vivências desse personagem não nomeado e a sua relação com o pai são tratadas de modo sincero; como a vida de tantas famílias, marcada de boas e más escolhas, em uma postura mais concreta, mais palpável, distante do melodrama ou de uma felicidade forçada. Sua intenção não é a busca por uma redenção, alforriando-se de seu passado, mas de apenas narrar os fatos. Como diz logo de início: “alguém acreditou que essa história deveria ser contada e ponto”. No caso em questão, o evento vivenciado por seu pai, que, após o luto, é levado pelo irmão para uma pescaria, uma distração, onde acaba desaparecido por alguns de dias e, em meio à angústia dos familiares preocupados, retorna com a história do curioso encontro com o extraterrestre.

O álbum é marcado por um uso bastante econômico das palavras, quase que restritas ao personagem-narrador, oscilando entre a narração em terceira pessoa e grandes momentos de silêncio, em uma narrativa concisa, com pausas, suspensões. O curioso encontro de seu pai, inclusive, é construído entre o ceticismo e o surreal, entre a crença e sua negação, embora, de fato, a atenção do narrador se detenha sobre os rumos tomados pela vida de seu pai, não tanto pelo evento. Como um caso contado e recontado, várias pontas continuam em aberto.

O fio narrativo, então, subverte o sequenciamento linear dos fatos. Não só os textos verbal e visual destoam em alguns momentos – cada qual preocupado com sua própria narrativa, recobrindo simultaneamente dois instantes –, mas a própria sequência imagética apresenta rupturas, oscilando entre o sequenciamento convencional e a inserção de imagens independentes; às vezes representações de supostas fotografias, parte da coleção do personagem, às vezes um incongruente convite para que a imaginação do leitor busque significações.

As imagens, todas produzidas com tinta acrílica, ocupam as páginas inteiras, descontruindo a expectativa da narrativa em quadrinhos a partir do sequenciamento de vinhetas. Aqui, Mutarelli evita seu uso, ou melhor, cada página é uma vinheta por si só – e os requadros, a grande malha de barras brancas tão comum aos quadrinhos, resumem-se não mais do que às bordas de cada página. Nesses grandes painéis, o quadrinista explora pinceladas, texturas e tons com um detalhamento que produz um rico discurso visual. As imagens revelam um trabalho lento e minucioso, uma dedicação do autor em construir, em tom taciturno e desolado, a história da família.

Cada imagem é por si só uma ilustração densa e expressiva, como grandes avatares de momentos da narrativa. Sendo assim, se organiza a partir dos grandes saltos, pontuada por momentos pregnantes que, juntos, retratam o evento. Ao invés da tradicional fragmentação de cada ação em uma série de movimentos, de diálogos, de contra planos, a tessitura do discurso visual obedece a uma composição própria, dando grandes saltos entre cada momento, além de não se submeter ao eixo narrativo.

Sobreposta ao texto verbal que recobre os fatos, o discurso imagético engendra uma sequência de grandes quadros (em parte) temporal e espacialmente distantes, requisitando ao leitor o uso de sua imaginação. Assim, ao contrário do que possa parecer, a sequência rígida dos grandes painéis, obedecendo todos às mesmas dimensões, sem qualquer variação de tamanho, escapa a uma possível monotonia, revelando um ritmo narrativo dinâmico, com fluidez, ao que soma, ainda, quadros com composições sempre diversas, explorando enquadramentos, disposições, formas, cores e tons distintos.

Mutarelli retorna à produção com um álbum que ultrapassa a linguagem tradicional da mídia, explorando articulações e recusando convenções, especialmente quando à estrutura narrativa gráfica convencional. De fato, em alguns momentos, chega mesmo a oscilar na linha que cruza os limites entre o universo das ilustrações e dos quadrinhos. Versando sobre a memória e sobre a força de eventos aparente banais, de escolhas mal sucedidas no cotidiano, apresenta uma obra que se revela tão laboriosa quanto interessante.

Tiago Canário* é graduando em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Apresentação do álbum por Mutarelli:


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