Simplesmente Feliz (Mike Leigh, 2008)

Otimismo deslocado

O rosto de Poppy domina uma parte inicial do filme. Ela ri, faz piadas, se contorce, faz caretas, se embebeda, pula, cai, fala sem parar. Aos 35 anos de idade, ela não é uma pessoa comum: meio infantil, vestida em trajes multi-coloridos, ela não sabe se comunicar sem piadas e cinismo. As pessoas ao seu redor já aprenderam, digamos, a “tolerá-la”: a colega com quem mora contorna bem seu tipo de humor, a irmã mais velha já está acostumada.

No início, portanto, vemos Poppy integrada em seu próprio meio. Mesmo quando sua bicicleta é roubada, ela sorri e diz: “eu nem tive tempo de me despedir!”. Pois é essa figura deslocada que vamos acompanhar. A diferença é que, se a protagonista não transforma seu comportamento ao longo da narrativa, é o foco da história que se transforma, quando passamos a conhecer o mundo que a cerca.

Aqui, abro um pequeno parênteses. Engraçado ver que grande parte da crítica francesa torceu o nariz para o filme, ou por ser “leve demais”, ou pelo fato da personagem de Poppy ser simplesmente “irritante”. Duas exceções apenas: a primeira, menos expressiva, é a nota máxima de “estrelinhas” dada pelo jornal Le Monde, que obviamente também patrocina o filme; enquanto a segunda diz respeito à revista Brazil que cita, de passagem, a importância das relações de Poppy com o ambiente.

Pois é justamente nesse mundo que o diretor Mike Leigh faz um retrato realista. Nossa protagonista sorridente é um claro anti-exemplo, uma figura de exceção destinada a tornar mais claro o contraste com o mundo menos colorido em que vive. Aos poucos, o roteiro vai mostrar como a sociedade funciona numa lógica bem menos alegre que a de Poppy.

O primeiro “encontro”, muito marcante, ocorre de noite, com um mendigo. Perto dele, Poppy não consegue rir, ela é forçada pela primeira vez a escutar essa pessoa que, não sabemos se por timidez, por problemas neurológicos ou simples embriaguez, não consegue articular uma frase sequer. No entanto, fica clara a tristeza desse homem (de olhos sempre marejados). Poppy se cala, afirma entendê-lo e vai embora. Taí um dos momentos mais belos do filme: uma comunicação pelo olhar, sem palavra alguma.

Além disso, há o contato de Poppy com seu professor de auto-escola, um tipo gótico-neurótico que tem problemas em lidar com a falta de rigor no comportamento de sua aluna; e por fim entramos na própria família de Poppy, quando tomamos conhecimento da irmã mais nova, uma figura amarga e ressentida, já grávida e casada. As relações de Poppy com esses dois atenuam gradativamente o caráter cômico. Ela fala menos, depois pára de rir, depois chora e chega mesmo a gritar.

Sim, seu otimismo voltaria logo após, mas ao custo de um atrito forçado com um mundo mais plausível. Leigh insere um palhaço no seio de uma sociedade amarga e triste. Se o palhaço pode arrancar sorrisos de algum, ele irrita a maioria. De qualquer modo, seu lugar não é lá. O diretor Roy Andersson fez algo semelhante em seu Swedish Love Story (1970): construiu um amor perfeito e puro rodeado de relacionamentos fracassados e sentimentos perdidos.

Talvez Poppy seja excessiva, mas nem por isso o filme o é. Simplesmente Feliz pode passar facilmente por uma comédia de poucos neurônios para quem quiser vê-la de tal maneira; ou também uma possibildade de retrato social através de seu oposto. Mike Leigh sempre registrou com habilidade o comportamento humano, e não é neste filme mais leve que ele deixa de fazê-lo.

Bruno Carmelo é graduado em Cinema pela Faap e mestrando em Teoria e Crítica de Cinema na Universidade francesa Sorbonne Nouvelle

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta