Candinho: A construção do espaço narrativo através da relação imagem-som

O presente trabalho promoverá a análise da construção do espaço da diegese do média-metragem Candinho, de Ozualdo Candeias, através de suas imagens e sons, sob a perspectiva de Michel Chion e de Murray Schafer, utilizando como texto de apoio o artigo Uma São Paulo de revestrés: Sobre a cosmologia varziana de Candeias , de Rubens Machado Jr. A análise será feita tendo como foco a relação imagem-som que é resultado de uma construção artística, levando em conta os significados criados e sensações transmitidas, mais do que as possíveis limitações ou condições técnicas supostamente disponíveis aos criadores.

Livremente inspirado em Cândido ou o otimismo, de Voltaire, Candinho narra a estória de um rapaz interiorano que é expulso, juntamente com sua família, da fazenda onde trabalhavam. Candinho parte então para a cidade em busca de uma promessa de redenção, na figura de uma imagem de Cristo a ele entregue pelo padre local. Aparentemente dotado de uma deficiência mental, ele não consegue se inserir no espaço urbano e se irmana aos demais marginalizados da cidade, passando a caminhar ao lado de uma suposta Boliviana que carrega uma boneca-bebê. O filme se atém por um tempo a mostrar a vida de outros moradores de rua, e depois volta seu olhar a Candinho, que desiludido retorna ao campo de onde veio. Ali finalmente encontra a personificação de Jesus e quando parecia se configurar um happy ending percebe-se que este está ao lado do Fazendeiro do início do filme, que novamente o expulsa com o consentimento do santo homem. Candinho rasga a imagem que carregava e volta a encontrar a Boliviana, mas os dois parecem transformados. Num final aberto, Candinho e a Boliviana se olham, vêem a imagem de um rifle pendurado numa cruz e parecem mirar seu futuro.

Numa perspectiva macroscópica, Candinho apresenta uma estrutura circular, principiando no espaço do campo, com som preenchido por cantos de diversos pássaros, faz uma transição até o espaço da cidade, dominado pelo som de automóveis e buzinas, e retorna ao espaço do campo juntamente com o som de pássaros que no final do filme se une ao som de tiros, fato que analisaremos mais adiante.

Como ao longo do filme há reduzido uso de sons sincrônicos, seja na forma de vozes ou de ruídos, o que predomina é a chamada por Schafer paisagem sonora ou no conceito de Chion o som ambiente. Ambos os conceitos têm definição muito próxima, a saber, os sons que compõem o ambiente acústico em determinado local; ou o som que envolve a cena e habita seu espaço, podendo servir para identificar uma determinada localidade através de sua presença contínua e passiva. A diferença repousa no fato de que Chion versa sobre a construção sonora audiovisual (daí o termo cena), enquanto que Schafer refere-se ao “mundo real”. Schafer faz ainda uma distinção de tipos de paisagem sonora que pode ser aplicada ao nosso estudo. Ele distingue a paisagem sonora hi-fi, (do inglês, alta fidelidade) onde se pode escutar e distinguir perfeitamente todos os sons presentes, característica de ambientes mais silenciosos, de paisagem sonora lo-fi (o equivalente a baixa fidelidade), onde o detalhamento é mascarado pelo excesso de ruídos.

A cena inicial de Candinho, onde o personagem-título faz gesto de escutar os diversos passarinhos que compõem aquele ambiente, é símbolo de que aquele espaço conta com uma paisagem sonora hi-fi, onde é possível estabelecer uma relação com cada um dos elementos sonoros componentes daquele ambiente. Por contraste, o ambiente da cidade é extremamente ruidoso, não se consegue compreender as raras linhas de diálogo e há uma sensação de saturação sonora, onde não há espaço para a expressão dos personagens retratados.

Acerca da saturação sonora que se desenvolveu nas cidades pós Revolução Industrial, Schafer discorre em seu A afinação do mundo:

(…) em todas as sociedades antigas a maior parte dos sons era separada e interrompida, enquanto hoje uma grande parte – talvez a maior – é contínua. Este novo fenômeno sonoro, introduzido na revolução industrial (…) sujeita-nos hoje a sons fundamentais permanentes e a faixas de ruídos de amplo espectro que tem pouca personalidade ou senso de progressão.

(…) à medida que os sons separados cediam espaço às linhas contínuas, o barulho da máquina tornava-se um ‘narcótico para o cérebro’ e aumentava a apatia da vida moderna. A função do drone (som grave e contínuo) é conhecida há muito tempo em música. Ele é um narcótico antiintelectual.

No filme, a ambiência sonora urbana é realmente muito poderosa e parece quase não deixar espaço para os pensamentos. Sua paisagem sonora não é, no entanto, composta apenas de uma freqüência contínua, que devido à própria analgesia descrita por Schafer após algum tempo deixaria de ser notada. Pelo contrário, essa ambiência varia, ora apresentando acentuadas buzinas, ora carros passando em primeiro plano, ora contando apenas com o zumbido indistinto da cidade. Isso faz com que o espectador dificilmente se acostume a esses ruídos, constantemente notando sua presença e tendo potencializado seu efeito incômodo.

Schafer traz ainda dois conceitos pertinentes à nossa análise, Parede Sonora e Áudio-analgesia:

Áudio-analgesia (é o) uso do som como um analgésico, como distração para disseminar distração.” (…) “Hoje as paredes de som existem para isolar. Do mesmo modo, a amplificação intensa da música popular não estimula a sociabilidade tanto quanto expressa o desejo de experimentar a individuação… a solidão… o descompromisso. Para o homem moderno a parede sonora tornou-se um fato tanto quanto a parede no espaço.

Como transparece no trecho escolhido, estes dois últimos conceitos referem-se à utilização da música como analgésico e catalisador de um individualismo. Mas podem claramente ser aplicados aos ruídos contínuos de motores e máquinas da cidade, que analgesiam nossos ouvidos a ponto de raramente percebermos a intensidade da poluição sonora a que diariamente somos submetidos, e de certa maneira congestionam nosso ouvir e falar ao saturar o espaço auditivo. Transportando para a diegese do filme, a parede sonora de carros e buzinas utilizada na parte urbana da narrativa pode muito bem ser símbolo de uma intransponibilidade da cidade para um personagem como Candinho, que ali chega, mas que não consegue se relacionar com aquele espaço, nem com seus ocupantes. Não encontrando lugar para si, ele passa por São Paulo, percorre suas margens e retorna à fazenda de que fora expulso.

Este tipo de não-relação com a cidade é um traço de Ozualdo Candeias, como analisa Rubens Machado:

Vagantes, os personagens de Candeias não são vinculados a espaços que se possam identificar com clareza como ambientes caseiros, privados, íntimos, de pernoite, ou mesmo de estar, num sentido convencional; e mesmo num sentido reposto em termos de moradia precária, favela ou “debaixo da ponte”, sem teto. Não se verificaria propriamente um habitar no filme.

É de fato impressionante a mise-en-scene estabelecida por Candeias, onde os personagens estão em constante movimento, em constante vagar. Uma das seqüências de Candinho que melhor representa este caminhar sem fim é quando, após o encontro com a Boliviana, ambos partem em busca de comida. O vagar estaria justificado no decorrer desta busca, mas o natural seria que uma vez conseguida a refeição, os dois parassem e sentassem para se alimentar. Isto ocorre durante poucos segundos, situação atípica mostrada em um raro plano próximo de ambos comendo e “alimentando” a boneca. Mas, o plano não dura muito e eles logo retomam a jornada em longos planos gerais, das personagens refazendo essas ações anteriores. Aqui o regime de enquadramentos do filme se une ao sentido dado pela mise-em- scene, pois ao longo da narrativa é vasta a utilização de planos gerais onde os personagens se perdem em meio à paisagem, restando pouco de sua expressividade individual. O uso de planos mais próximos é raro e parece ser escolhido a dedo, como no trecho descrito acima.

Há nas personagens de fato uma impossibilidade de se apropriar mesmo que por alguns instantes de um local e tomá-lo como um espaço de conforto. Uma impossibilidade de pertencer e de participar ativamente do espaço urbano, como nos elucida Machado em outro trecho:

Seus personagens chegam à cidade, mas dela não participam. Ocupam, mesmo no interior dela, um hemisfério desqualificado, permanecem personagens descategorizados (…) Deste modo eles não adquirem a condição de cidadania. Seu estar-aí-no-mundo é pura emanação de suas meras presenças físicas, de certo modo resvalando o estatuto cênico de figuras oníricas.

Esta desqualificação das personagens e sua não-apropriação do espaço urbano se mimetiza em sua não-apropriação do espaço sonoro, uma vez que raramente ouvimos sons produzidos por essas personagens. Para analisar este fato mais a fundo, vamos recorrer ao conceito de extensão do espaço sonoro, cunhado por Michel Chion em seu Audio-vision. Extensão é a designação para o grau de abertura e amplitude do espaço concreto sugerido pelos sons, além dos limites do campo visual do espectador, e também no campo visual dos personagens. Chion faz então uma subdivisão nomeando como extensão nula o universo sonoro reduzido ao nível dos sons ouvidos por um único personagem, possivelmente incluindo vozes internas ouvidas por ele. Nesse caso o foco se concentra na ação apresentada na imagem, e não raro na intimidade dos personagens mostrados. No lado oposto do espectro Chion nomeia como extensão vasta o arranjo no qual, por exemplo, em uma cena que se passa em um quarto, ouvimos não somente os sons que estão dentro do cômodo, mas também os externos, como sons do corredor, trânsito de ruas próximas, uma sirene à distância, etc. O uso da extensão vasta nos traz a lembrança da existência de uma espacialidade ampla, e de certa maneira nos afasta do universo íntimo das personagens.

Em Candinho há, como descrito anteriormente, uma intensa ambiência de cidade, raramente em sincronia e muitas vezes sem referência imagética do que poderia ser a fonte destes ruídos, trazendo um sentido de vastidão à extensão desse espaço. Paralelamente, há uma falta de detalhamento sonoro, não se ouve a movimentação das personagens e nas raras vezes em que elas se expressam oralmente pouco se compreende do que é dito. Há, portanto uma falta de concentração na ação das personagens, em seu universo mais pessoal, mais íntimo. Não há uma expressão da individualidade das personagens no mundo, mas o mundo – representado pela parede sonora – as fagocita, envolve-as e anula-as. A falta de ruídos de sala – como são correntemente chamados os sons produzidos pelas personagens em movimento – acaba trazendo também um dado de não-realismo, contribuindo para a construção do universo onírico tão citado a respeito dos filmes de Candeias.

Um exemplo bastante expressivo do uso da extensão vasta se dá na seqüência de sexo entre dois moradores de rua, que apresenta uma relação audiovisual muito interessante. A cena se passa em uma construção abandonada nos arrabaldes da cidade, e o enquadramento mostra os dois personagens de pé em um canto de muro, no que teria sido um dia os fundos da casa. Não há nenhuma referência visual a qualquer movimentação de carros ou trecho de rua, e em se tratando de uma cena de intimidade, poderia haver um resguardo no som, um silenciamento ou inserção de sons mais delicados, a sonorização dos movimentos ou da respiração das personagens. O que ocorre, no entanto, é o oposto: o som de tráfego de veículos é intenso – ainda mais intenso do que na cena anterior, onde os dois recebem a bênção do senhor com as medalhinhas. Após a bênção, os dois saem em busca de um canto mais isolado, procuram se esconder dos olhares dos outros, mas não se escondem da influência acústica daquela cidade que os consome ao mesmo tempo em que os exclui. Esta intensidade sonora, que gera uma espécie de contraponto entre situação mostrada e som ambiente, provoca um estranhamento no espectador e um profundo sentido de devassidão e violência de uma vida onde nem mesmo os momentos mais íntimos são resguardados. Os personagens estão submetidos àquele barulho, assim como àquelas condições de vida. Poderíamos mesmo fazer aqui uma aproximação com o conceito schaferiano de ruído sagrado, que seria o ruído representativo de um poder maior, não sujeito às leis terrenas. O único senão é que os típicos ruídos sagrados apresentados por Schafer, o trovão e o sino de igreja, são claramente reguladores da vida terrena e causam reação instantânea a quem os escuta, normalmente associada ao temor. Nossa paisagem sonora, pelo contrário, não parece afetar e nem mesmo ser ouvida pelos personagens do filme, e produz efeito somente no espectador.

O citado onirismo de Candeias se configura no filme também pela maneira como os diversos planos e seqüências se ligam. A narrativa não segue uma lógica cartesiana ou teleológica, os planos não estão encadeados como causa e conseqüência, mas por vezes parecem mesmo estar embaralhados ou com pedaços faltando. Exemplo disso é a introdução e conclusão da seqüência da construção abandonada, onde temos o senhor que ouve ao rádio-tijolo, a prostituta e as crianças. Não há aparente relação destes personagens com Candinho ou a Boliviana, exceto por um plano no final da seqüência onde a Prostituta e Candinho se cruzam. Não há aparente motivo narrativo para o filme se ater a estes personagens, a não ser pelo fato de estarem assim como Candinho às margens da sociedade. No entanto sua aparição é aceita como parte daquela realidade retratada, e o som aí tem papel fundamental.

Segundo Chion, uma das principais funções do som no contrato audiovisual é a da unificação, pois o som pode fazer ponte nas quebras visuais, pode construir uma unidade ao estabelecer uma atmosfera única, como uma moldura que parece conter as diferentes imagens. Segundo ele a manutenção do som ambiente torna possível a utilização de cenas em locações as mais diversas, pois o som une todas essas locações num único espaço audiovisual. No caso de Candinho, o ambiente de carros unifica todas as diferentes cenas e cenários, trazendo uma expressão de continuidade, um sentido de que todas fazem parte do mesmo espaço urbano ou de várzea, organizando as imagens num “banho” homogêneo.

O uso da música nos filmes de Candeias mereceria um trabalho mais aprofundado, mas vamos fazer aqui algumas observações pertinentes. Em Candinho, Candeias utiliza quatro temas musicais: na sua abertura ouvimos uma música regional com flautas e percussão que poderia ser latina ou do nordeste do Brasil, mas que de qualquer maneira traz referências rurais e tradicionais, já nos ambientando de alguma maneira na estória que será narrada. A segunda música é uma moda de viola que permeia todo o filme, pontuando e comentando as ações. A terceira é a música que toca no rádio-tijolo do senhor das medalhas, o Samba do Urubu, um exemplo de extensão nula do espaço sonoro, onde ouvimos aquilo que se passa na cabeça imaginativa do morador de rua. E a quarta é Jesus bleibet meine Freude, movimento coral da cantata 147 de Johan Sebastian Bach, tocada na transição entre a cidade e o retorno para a fazenda. Sobre a moda de viola e a cantata de Bach nos debruçaremos com um pouco mais de cuidado.

Logo no primeiro plano do filme, onde Candinho caminha entre as árvores e ouvimos os pássaros trinarem, no momento em que o personagem leva uma das mãos ao ouvido fazendo menção de escutar o canto dos animais, a música principia. Há aí um ponto de sincronia, e a letra diz “escute aqui minha gente / já cheguei como Deus quis / pra falar dos pobre doente(…)”, como que nos introduzido à estória que será contada. Em seguida vemos a cena do pai de Candinho trabalhando na roça e caindo de doente, o filho o acode e caminham juntos – aqui ouvimos os sons de seus passos, num dos poucos momentos em que sons produzidos por Candinho são ouvidos – até encontrar o Padre que supostamente está cantando a música ouvida. E neste momento a letra versa justamente sobre como Deus ajuda aos pobres e sofredores. Neste curto trecho introdutório temos alguns pontos de interesse a destacar. A começar pela questão da organização narrativa, a música inicia seu papel no lugar de música de fosso – expressão cunhada por Chion para designar a música não-diegética, em alusão ao local ocupado pela orquestra nas antigas projeções de cinema – e se transforma em música de tela, expressão que designa música que vem de uma fonte localizada no espaço da diegese. Essa mudança de local, segundo Chion, promove uma virada espaço-temporal que só a música é capaz de fazer. Uma segunda estância de análise é com relação ao sentido trazido pela música e sua relação com a narrativa. Chion faz distinção entre música com ou sem empatia com a narrativa e/ou os personagens. Aplicando estes conceitos, podemos dizer que neste princípio a música tem total empatia tanto com a narrativa quanto com o personagem, funcionando mesmo como um narrador daquilo que ocorre na tela. Com o desenvolvimento do filme, quando o espectador percebe que a tal ajuda divina nunca chega, a música passa a funcionar como um dado de ironia, contrária ao que está sendo mostrado na imagem. No entanto ainda representa a busca de Candinho pela figura de Jesus e sua esperança de redenção, tendo, portanto empatia com o personagem. Conforme a situação de Candinho vai ficando mais e mais complicada, a força da ironia vai aumentando. Já na seqüência final Candinho resolve se divorciar do seu sonho e rasga a imagem de Jesus, e neste momento a música cessa e põe fim à sua participação no filme.

Antes disso, no retorno de Candinho à fazenda e próximo ao seu esperado encontro com Jesus, ouvimos o trecho da cantata de Bach que em português teria o título de Jesus alegria dos homens, e cujos primeiros versos poderiam ser traduzidos da seguinte maneira:

Jesus continua sendo minha alegria,
o conforto e a seiva do meu coração
Jesus refreia a minha tristeza,
Ele é a força da minha vida

Assim como no início da moda de viola, a introdução desta música demonstra empatia com a estória contada, levando o espectador através da antecipação a acreditar que uma mudança positiva estaria por vir, trazendo um sentido de celestial e paradisíaco. A música segue e quando Candinho sai da mata e entra na casa, no momento em que um movimento de câmera revela Jesus ao lado do Fazendeiro que expulsara a família de Candinho, a música é subitamente interrompida por um ruído similar a um arranhão no disco, ou de som tocado em reverso, alertando o espectador de que a expectativa criada não se cumprirá. Novamente como na moda de viola, Candinho custa mais a compreender o engodo, e a música continua, em empatia com o personagem, que abraça e beija a mão de Cristo. Novamente a música é interrompida, desta vez para dar lugar à voz do Fazendeiro, que ordena “com a licença” de Jesus a expulsão de Candinho. Neste momento entra em primeiro plano mais um comentário musical da moda de viola, que enquanto Candinho é carregado relutante canta no ápice de sua ironia “sua ajuda nunca falha / pra qualquer que é sofredor”. A cantata de Bach prossegue em volume reduzido, assumindo também o registro da ironia, sobre a imagem de Jesus e o Fazendeiro tomando café juntos.

A cantata vai se dissolvendo e dando lugar, já sobre a imagem de Candinho sozinho do lado de fora, novamente à moda de viola. Candinho retira a imagem de Jesus do bolso, olha com olhar desconfiado, e quando o verso “sua ajuda nunca falha / pra qualquer que é sofredor” se repete, ele tem seu momento de revelação e rasga o retrato, interrompendo de uma vez por todas a música com o som da foto se rasgando. Com exceção do som de passos no princípio do filme, e dos grunhidos incompreensíveis emitidos ao longo de toda a estória, este é o único e talvez mais significativo ruído emitido por Candinho ao longo de seu trajeto. Significativo porque marca a transformação da personagem, a mudança de sua trajetória, ainda que em algo que o filme não nos revela. Mas o som de tiros junto aos pássaros na cena de reencontro com a Boliviana faz crer que dali em diante ambos exercerão papel mais ativo. Talvez em atitude semelhante à de Cândido de Voltaire, Candinho passe a crer que “é preciso cuidar do nosso jardim”, abandonando a máxima de que “vivemos no melhor dos mundos”.

O som, no contrato audiovisual promovido com a imagem, é, portanto parte fundamental, tanto na construção do espaço da diegese quanto da própria narrativa em si, situando e guiando o espectador através do universo varseano e devassado escolhido para o filme.

Bibliografia:

CHION, Michel. 1994. Audio-vision: sound on screen. New York: Columbia University Press

MACHADO JR., Rubens. 2008. Uma São Paulo de revestrés: Sobre a cosmologia varziana de Candeias. In: Significação – Revista Brasileira de Semiótica. Julho de 2008. São Paulo: CEPPI – CTR – ECA – USP

SCHAFER, R. Murray. 2001. A AFINAÇÃO DO MUNDO. Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora UNESP

UCHÔA, Fabio Raddi. 2006. A deambulação em O Candinho, de Ozualdo Candeias. In: MACHADO JR., Rubens; SOARES, Rosana de Lima; ARAÚJO, Luciana Corrêa de; (org.) Estudos de Cinema – Socine, VII. São Paulo: Annablume; Socine, p. 183-189.

VOLTAIRE, François Marie Arouet. 1994. Cândido ou o Otimismo. São Paulo: Editora Scipione

Kira Pereira é mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA-USP)

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    ELEN

    Gostei muito das análises feitas por Kira Pereira e gostaria de entrar em contato com a autora e seu trabalho completo.
    Obrigada

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