Uma mensagem, diversos retratos

Direção de uma cena

Allen Stewart Könisberg, mais conhecido como Woody Allen, é cineasta, roteirista, escritor, ator e músico americano. Pode-se inferir que seus filmes, a matéria de discussão aqui, de modo geral, são carregados de comportamentos neuróticos cotidianos analisados prioritariamente, em termos de roteiro, pelos intensos diálogos.

Neste ensaio, focamo-nos não só em seus filmes – aliás, um em particular – mas na sua atividade de direção neles, os quais também roteirizou. Em especial tomaremos de certos parâmetros de análise como enquadramentos, composição, ponto de vista, construção do espaço e do tempo, aspectos da fotografia (tom de iluminação) e do som, a marcação e escolha de certos atores, e o uso do diálogo.

O filme, ou ainda a cena escolhida para tal análise provém de uma obra mais recente e menos conhecida:  Igual a tudo na vida, que data de 2003.

Igual a tudo na vida (2003):

A cena em que nos debruçamos especificamente deste filme é a que mostra Jerry Falk (Jason Biggs), aspirante a escritor, em seu apartamento acompanhado inicialmente de seu amigo neurótico interpretado por Woody Allen (personagem e intérprete recorrentes em seus filmes). Este, na cena em questão, está ensinando ao protagonista a usar um rifle, o qual incentivou a compra juntamente com outros equipamentos de auto defesa. Neste momento, entra em cena a namorada do protagonista, Amanda (Christina Ricci), uma mulher problemática que juntamente com o personagem de Allen e a sua

Amanda (Christina Ricci) e Falk(Jason Biggs)
Amanda (Christina Ricci) e Falk(Jason Biggs)

mãe Paula ,a sogra do protagonista (Stochard Channing) , forma o triângulo de opressão sobre Falk. Uma discussão se inicia devido ao rifle dentro do apartamento. No meio da discussão, a sogra (que vale indicar estar de recente mudança ao pequeno apartamento já dividido pelos namorados) adentra e também entra ligeiramente na discussão contra o rifle. No entanto, o assunto a partir daí não se foca apenas no rifle; discute-se também onde colocar um piano que está no meio da sala. Juntamente a isso, o telefone toca: é o empresário de Falk (Denny DeVito) desejando marcar um encontro com o escritor. Por fim, a caótica cena termina um pouco depois do telefonema, com a tentativa de mudar o piano de lugar e a quebra de um abajur trazido pela sogra.

Esta unidade dramática como um todo é um retrato da opressão vivida por Jerry e comporta todos seus opressores principais (namorada, sogra e colega), além de outro, menos importante, mas presente indiretamente pelo telefonema. A mensagem de opressão cola-se ao caos e está impressa nos aspectos escolhidos da mise-en-scène, alguns deles foco deste ensaio.

Amanda (Christina Ricci), Paula (Stockard Channing), diretor Woody Allen no apartamento da cena
Amanda (Christina Ricci), Paula (Stockard Channing), diretor Woody Allen no apartamento da cena

Os enquadramentos de Allen seguem um estilo por quase todas suas obras, pode-se dizer que ele não é fã de planos muito fechados e recortados. A cena inteira é praticamente um plano-sequência, isso devido aos pouquíssimos cortes (entradas das personagens femininas, um corte para Allen quando tenta deixar o apartamento e outro quando quebra o abajour) em seus 5 minutos de duração. Assim, podemos dizer que os enquadramentos são em geral americanos, retratando as personagens da cintura pra cima e não frisando suas expressões faciais com close-ups, por exemplo.

A escolha desse tipo de enquadramento , o americano, relaciona-se com  a realização desse “quase” plano-sequência. Sendo assim, é necessário seguir as personagens e tentar manter a unidade de tempo e espaço. Essa unidade é importante no retrato do caos, o vai-e-vem da câmera colabora para a sensação de aprisionamento, opressão e de sentir-se perdido, vivida por Falk. Além disso, essa ida e vinda pode representar, em alguma instância, a falta de progressão do personagem – progressão que só terá ao se desvencilhar destes outros personagens e dessa situação. Vale lembrar que o vai-e-vem se intensifica até um certo clímax – a quebra do abajur – isso porque a cena vai se tornando exponencialmente mais dinâmica.

No entanto, apesar da escolha de um enquadramento mais aberto para a cena, o plano geral aqui não foi escolhido e é por uma razão óbvia: o conflito. A questão da opressão aqui resulta em muito dos personagens em discussão (ou discussões) e também do espaço, o apartamento. O enquadramento, assim, precisa mostrar suficientemente os atores sem vilipendiar o espaço, aqui vital na mensagem da cena por ser o centro do caos, por apertar as personagens espacialmente (namorada, sogra e protagonista) e por estar recebendo, também nesta lógica, a personagem opressora de Allen. É claro que aqui a opressão física metaforiza a mental.

Além dos enquadramentos, discutir as composições é uma importante forma de demonstrar como algumas das escolhas que foram feitas realçam a problemática e mensagem da cena. Assim, podemos reparar que as composições levam em conta obviamente o enquadramento, mas também o espaço do apartamento, sua palheta de cores juntamente com as das vestimentas, a iluminação da cena e o posicionamento dos atores.

No entanto, as composições são regidas primordialmente pelo diálogo e pelo conflito. A câmera acompanha a ação do personagem principal em geral, e é nele que reside na maioria das vezes o conflito da cena. Os diálogos são mostrados em pares e em estrutura de triângulo, predominantemente. Assim, de acordo com o conflito, discussão e os olhares dos atores, a câmera corrige seu enquadramento: ora para a dupla que discute, ora para um trio, ora para over the shoulder (este, mais raro), ora para a direção do olhar de algum personagem. As estruturas predominantes são de um personagem lado a lado em discussão e a estrutura triângular; ambas as composições voltadas para o retrato da câmera sem a aparência “fake“. Além disso, é importante dizer que o apartamento toma bastante espaço em tela – os objetos estão preenchendo o ambiente, sem deixar muito espaço, contribuindo para a sensação de sufocamento. É importante notar que a composição vai se tornando cada vez mais intensa, com mais objetos de cena e atores. Um exemplo é pensar que com a chegada da sogra temos o piano, o abajur, a preparação de um drink, o telefonema e os quatro atores interagindo, que antes eram três e que inicialmente na cena eram dois!

Mas de forma mais analítica e em partes, podemos pensar sobre a composição:

– A cozinha é apertada: Allen, Amanda e Falk se apertam ali num triângulo enquanto de fundo temos utensílios de cozinha pendurados na parede, tomando o quadro juntamente com os atores além dos móveis (geladeira, no caso).

– A sala é apertada. Mas este aperto é construído temporalmente com a chegada dos atores antes fora de cena, com as discussões e com os objetos (os da sala em si e os trazidos em foco com a entrada da sogra, como piano e abajur). A movimentação dos atores, juntamente com o piano e a estrutura antes dupla e posteriormente tripla dão um aspecto superlotado.

– As cores escolhidas tanto nos trajes das personagens como no espaço colaboram na composição e na construção gradual do caos, do conflito. Tudo se mescla no tom pastel: a iluminação ligeiramente amarelada, a sala pendendo totalmente para os tons de marrom, as vestimentas escuras… Em geral, a arte, iluminação e atores se fundem. Importante pensar que a fusão não é bem quista pelas personagens e nela também está o conflito.  A fusão, pois, é dada pictorialmente enquanto que o protagonista vive, na verdade, um conflito de gradual separação em vista das opressões mencionadas.

Assim, após nos debruçarmos nessas questões que pendem pro pensamento mais plástico,  podemos pensar nas interpretações, nas marcações de cena e na consequência desta juntamente com a voz, ou diálogos, sobre o espaço.

Sendo a cena um “quase” plano-sequência, imagina-se que a marcação dos atores deve ter sido um tanto rigorosa. Os atores são de fato orquestrados para que a discussão e as interações sejam bem exploradas pelo ponto de vista da câmera, aliás, um ponto de vista de certa forma objetivo que apesar de focar o protagonista não deixa de retratar ações paralelas às suas, tal como um narrador de fora, realmente. Este tipo de narrador também é comum nas obras de Allen. O que é necessário pensar, no entanto, é que havendo tão poucos cortes e tanta movimentação foi preciso que os atores não só tivessem trajetórias certas, mas também que suas movimentações e por consequência atuações fossem bem “medidas”, se assim podemos dizer. As atuações , já naturalistas, assim, não são tão gestuais (ou caricatas) e em muito dependem – aqui sendo um estilo do diretor –  do diálogo para externar suas questões.

Essa dependência do diálogo acaba por trazer mais um estilo recorrente de Woody Allen e que aqui tem um papel interessante: a construção do espaço off. Ou seja, há um limite (e escolha!) de retrato da câmera, é claro, e este pode ser usado criativamente para passar uma mensagem. Por vezes acontece de um ator sair e ainda estar discutindo com o ator que permaneceu em quadro. O espaço assim, fica sugestionado pela indicação de voz e, nesta cena, esse espaço contribui também para a imagem de opressão: são atores e vozes que de certa forma circundam Falk num espaço que não é demonstrado integralmente. Em suma, o aspecto sonoro mencionado na abertura deste ensaio constrói o espaço off. E este, repleto por vozes em discussão e obviamente adicionado aos outros fatores aqui analisados dá o sentimento de aperto vivenciado pelo protagonista.

De modo geral, o interessante e  notável da cena como um todo é como todos os departamentos estão em comunhão para a construção de uma atmosfera-mensagem importante para o entendimento do drama pelo espectador – e o vital pra este é a captação desta mensagem de modo orgânica e unida, ao invés de fragmentária. A atividade de direção , aqui, está exatamente na orquestração – da fotografia, da arte, do som, dos atores, dos planos (e etc!) – e união dos diversos tipos de retrato de uma mesma mensagem, nesta cena a opressão sobre Falk, em uma atmosfera única e palpável a quem assiste… Mesmo que de modo instintivo. A cena ilustra de modo inteligente o uso de todos esses recursos enquanto que a análise aqui presente visou demonstrar alguns caminhos que, em geral, um diretor narrativo (e cuidadoso) pensa ao realizar uma unidade “simples” do roteiro, uma cena.

Suzana Altero Bispo é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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