As Narrativas Do Gênero De Ilha Com Sintomas da Contemporaneidade: Atlântida, a Invenção de Morel e a Modernidade líquida em Lost

Francisco Beltrame Trento*

Os geógrafos dizem que existem dois tipos de ilhas. Isso é uma informação interessante para nosso imaginário porque confirma o que nossa imaginação já sabia. Não é o único caso em que a ciência faz a mitologia ser mais concreta, e a mitologia faz a ciência ser mais vívida. As ilhas continentais são acidentais e derivadas. Elas são separadas de um continente, nascidas da desarticulação, erosão, ruptura; elas sobrevivem à absorção daquilo que um dia esteve contido nelas. As ilhas oceânicas são originalmente, ilhas essenciais. Algumas são formadas por recifes de coral e são um organismo genuíno. Outras emergem de erupções suboceânicas, trazendo à luz do dia o movimento das maiores profundezas. Algumas emergem vagarosamente; algumas desaparecem e retornam, sem ao menos deixar tempo para serem catalogadas.

(Gilles Deleuze : L’Ìle Déserte) – Tradução livre.

RESUMO

A proposta deste artigo é fazer uma comparação e um estudo iconográfico entre duas obras que podem ser consideradas pertencentes (não exclusivamente) ao “gênero de ilha”: o seriado Lost e a obra de ficção científica A Invenção de Morel, do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, através do uso da definição de gênero como sintoma da contemporaneidade da obra da época em que foi escrita, apoiado nas teorias de Erwin Panofsky e Sarah Berry-Flint. As narrativas de ilha são constantes desde o início da cultura oral, na descrição do suposto território insular de Atlântida, por Platão, há quase três milênios. Entretanto, tais produtos sofrem hibridizações e mostram o espírito do tempo de suas feituras. Nos casos analisados, Lost pode ser uma alegoria ao mundo líquido e incerto proposto pelo sociólogo Zygmunt Bauman, descrevendo-o como a Modernidade Líquida. A Invenção de Morel, por sua vez, escrito cinco décadas antes da série norte-americana, é reflexo da passagem de uma sociedade escrita para um mundo dominado pelas imagens técnicas, perfeitamente conceituadas e descritas por Vilém Flusser.

ABSTRACT

This article proposes to make an iconographic and comparative study between two works: the TV series Lost and the book The Invention of Morel, written by Adolfo Bioy Casares. Both works can be considered parts of a narrative “island genre”. Using the definition of genre as a Zeitgeist contemporaneity symptom, with the help of studies and theories developed by Erwin Panofsky and Sarah Berry-Flint. Island narratives are a constant since the beginning of the oral culture – a example that can be used is Plato’s Atlantis. However, these cultural products suffer, in the time flow, hybridizations. They show the spirit of the time of the time they were developed. In the analyzed cases, Lost can be an allegory of the liquid and uncertain world described by Zygmunt Bauman as the Liquid Modernity. The Invention of Morel, written five decades before the plot of the north-american television series, is a reflex of the written society passage to a world dominated by the technical images, perfectly described and conceived by Vilém Flusser.


1. Introdução – o gênero de ilha e a demonstração do espírito do tempo

Presentes desde o início do desenvolvimento da cultura oral, escrita, e, posteriormente, imagéticas, audiovisuais, obras que representam ilhas, assim como a maioria das narrativas, segundo as perspectivas da iconografia panofskyiana, representam o estado de espírito e cultural do momento e lugar em que foram tecidas. Serão citadas diferentes narrativas de ilha de distintas épocas, para que possam ser introduzidos e analisados os produtos que constituem o escopo de análise desta pesquisa: o livro de ficção científica La Invención de Morel, suas posteriores adaptações cinematográficas e a série Lost, transmitida pela rede de TV norte-americana ABC, de 2004 a 2010.

A ideia de gênero pode ser desenvolvida a partir de muitos prismas. Um exemplo de visão é o multiculturalismo policêntrico, conceito definido por Robert Stam e Ella Shohat. Essa proposta pressupõe que, ao contrário da divisão feita a partir das categorias criadas pela cultura hegemônica (por exemplo, a ocidental) uma nova visão “pode ser abordada a partir de muitos centros culturais dinâmicos e muitas posições estratégicas possíveis” (SHOHAT; STAM, 2002, p 69 in RIBEIRO p. 112). Sarah Berry-Flint relembra que o provável registro primordial da ideia de gênero surge com a premissa desenvolvida por Aristóteles em Poética, que definiu o modo como o mundo ocidental categorizava suas expressões artísticas, “visto como ideal até o classicismo europeu do século XVIII” (BERRY-FLINT, 1999, p.26). Essa divisão rígida é, entretanto, desfigurada com o surgimento de movimentos como o Romantismo Alemão, e posteriormente no cinema a Nouvelle Vague francesa, que preferia impor as características autorais sobre à criticada categorização das obras audiovisuais, que auxiliam o mercado a lucrar com os rótulos: comédia, drama, ficção científica ou western, por exemplo. A conceituação de gênero, entretanto, não é única e se mostra aparentemente mais complexa. Citando Tom Ryall, a inglesa traz a proposição do entendimento dos gêneros cinematográficos como uma formação triangular, que envolve audiência, indústria e texto.

Uma definição travada de gênero não pode ser concebida. Sarah Berry-Flint não se atem a um conceito fechado, ela cita a reprodução dos mitos clássicos nas obras de arte e a iconografia como alternativas para a compreensão do que deve ser tratado como um gênero. A autora se refere às características figurativas e semânticas dos gêneros como formas sintomáticas do espírito do tempo (Zeitgeist) de um período da história, ou seja, seus hábitos, características psicológicas, sociais, econômicas e arquétipos consolidados, retomando as ideias iconográficas de Erwin Panofsky:

(…) deal with the work of art as a symptom of something else which expresses itself in a countless variety of other symptons, and… interpret its compositional and iconographical features as more particularized evidence of this “something else” (PANOFSKY, 1939, p. 08)[1]

Panofsky, conhecido principalmente pelo seu estudo das obras de Albrecht Dürer – pintor, matemático e teórico do século XVI – foi um dos maiores expoentes no campo dos estudos iconográficos no século XX. Retomando o conceito de Zeitgeist, termo em alemão que, como citado anteriormente, pode ser traduzido de forma livre como “espírito do tempo”, o teórico demonstra em Studies in Iconology, publicado em 1939, que há um relacionamento intrínseco entre uma obra artística e a situação temporal na qual seu produtor, assim como seus consumidores, estão inseridos. Nela estão presentes ícones, sejam eles personagens, traços estilísticos ou padrões narrativos. O autor distingue o entendimento dos textos em três níveis de compreensão: primário – o nível básico de entendimento de uma obra; o secundário (convencional) acontece quando o observador utiliza equações e conceitos iconográficos já conhecidos; e o terciário (significado intrínseco), que é um produto de um ambiente histórico. “O significado intrínseco é simplesmente apreendido identificando certas formas visíveis ou objetos conhecidos da experiência prática, e percebendo como a relação com eles muda em suas relações com certas ações e eventos” (PANOFKSY, 1939, p. 3).

2. Cronologia das narrativas de ilha como sintomas de períodos históricos

O historiador italiano Roberto Manzocco relata algumas características e títulos de histórias desenvolvidas em um território fictício insular; descritas e transmitidas desde o início do desenvolvimento de algumas das mais prósperas civilizações da Antiguidade. Exemplo disso é a própria narrativa, símbolo da sociedade judaico-cristã ocidental, que milênios antes da produção quase cinematográfica de J.J. Abrams, ou seja, Lost, já se identificava e consumia o “gênero de ilha”.

Quella dell’isola misteriosa non è di certo un’invenzione degli autori di Lost; anzi, non è neppure un tema contemporaneo, visto che risale piú o meno all’alba dell’uomo. Sarà il caso allora di dare un’ochhiata a quella che potremmo chiamare la “genealogia” ideale della nostra specifica isola; si tratterà di un excursos molto utile, in quanto ci mostrerà i debiti culturali di Abrams e colleghi e ci offrirá possibili spiegazioni sulla natura dello strano luogo su cui è caduto il volo Oceanic 815. (MANZOCCO, 2010, p. 19)[2]

Uma das possíveis primeiras narrativas centralizadas em um território insular data de mais de 2000 anos. É a descrição feita por Platão, por volta de 360 a.C., acerca de Atlântida, também conhecida como a Ilha de Atlas. Ainda assim, há contestação sobre a veracidade da data de tal mito, visto que muitos historiadores afirmam que o grego se inspirou em fatos históricos e mitos anteriores à sua obra. Portanto, é impossível definir que a descrição publicada em Timeu-Crítias (uma descrição do diálogo entre Timeu, Sócrates, Platão e Crítias) foi a originária do que estou propondo nomear “gênero de ilha”. Histórias semelhantes já datavam anteriormente do surgimento da cultura escrita. De qualquer forma, a proposta deste item do artigo é somente organizar um breve histórico das publicações, cujo tema e estrutura são semelhantes aos objetos de análise final: A Invenção de Morel e Lost. Um estudo mais apurado necessitaria de maiores aprofundamentos historiográficos.

Em suma, Atlântida pode ter sido uma idealização de uma organização social utópica construída no interior de uma ilha. Ainda que exista muita discussão sobre a veracidade de um continente que poderia ter afundado após uma devastadora erupção de um vulcão, fica clara a transposição das características da sociedade grega, de certa forma “melhoradas” e adequadas às regras impostas pela sociedade ateniense de três séculos antes de Cristo, dando indícios de ser fruto de seu tempo e das influências sociais de pessoas que viviam em um meio com características únicas.

A ilha produzia tudo em abundância, e, no que respeita aos animais, alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens, incluindo a raça dos elefantes que nela existia em grande número. No entanto, havia também pastagens para os outros seres-vivos, tanto os que viviam nos pântanos, nos lagos e nos rios, quanto os que pastavam nas montanhas e nas planícies – havia em abundância para todos eles, e também na mesma medida para este animal, que era por natureza o maior e o mais voraz. Além disto, criava também diversos aromas, que actualmente a terra tem aqui e ali, de raízes, folhagens, madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos – isto produzia e criava a ilha em abundância. Mais ainda: frutos cultivados, secos e tudo quanto usamos na alimentação e de que aproveitamos o grão – chamamos leguminosas a todas as suas variedades –, os frutos das árvores que nos fornecem bebida, comida e óleo, os frutos que crescem em ramos altos, os quais são difíceis de armazenar e que usamos apenas por prazer e divertimento, e tudo quanto oferecemos como estimulante desejável depois da ceia a quem sofre por estar cheio – naquela altura, a extraordinária ilha, que então estava sob o Sol, fornecia todas estas coisas belas e admiráveis em quantidade ilimitada. (PLATÃO, 2011, p. 113)

As narrativas insulares de séculos posteriores à descrição do diálogo relatado por Platão mantiveram um grande reconhecimento e presença na literatura mundial; , alterando, entretanto, referências estilísticas, estéticas e ideológicas. Tais produtos deixam sangrar e transparecer sintomas de problemas, indagações e características intrínsecas ao mundo no qual foram concebidas. Como forma de protesto, no fim do século XVIII, o irlandês Jonathan Swift publicou Travels into Several Remote Nations of the World, in Four Parts. By Lemuel Gulliver, First a Surgeon, and then a Captain of several Ships, traduzido para a Língua Portuguesa como As Viagens de Gulliver, tal sátira repete o padrão de um incidente com uma embarcação navegando e naufragando em praias então não-conhecidas. Se Atlântida é uma sociedade perfeita, tal qual as idéias platônicas de diferenciação entre a realidade e o mundo das ideias, sem defeitos e etérea, a ilha Liliput pode vista como seu oposto: uma crítica ao mau funcionamento das sociedades inglesa e francesa – seus nativos eram pequenos[3], de modo que o navegador fosse considerado um gigante por eles, provocando guerras por motivos aparentemente tolos.

Antes de iniciar a análise entre os expoentes deste trabalho, convém fazer uma breve descrição de outra produção cuja história acontece em ilhas ou arquipélagos. O semiólogo e literato Umberto Eco, por exemplo, publicou, em 1994, L’a isola del giorno prima (A Ilha do Dia Anterior). No livro, Roberto Pozzo de San Patrizio tem seu navio submergido em uma missão secreta sendo que sua sobrevivência dependeu do fato de o italiano ter se agarrado a outro barco naufragado, cheio de objetos curiosos e, através dele, passa a refletir sobre histórias que descortinam a cultura, como o fato de uma das ilhas em questão ser a famosa (na época) ilha onde “encontrava-se a linha imaginária sobre a exata mudança de tempo (fuso horário), pois acreditava-se ser plano, e não uma esfera o planeta Terra), a filosofia e a sociedade do século XVII.”[4]

3. A Invenção de Morel – O deslubramento perante à ‘imagem-técnica’

Em 1940 o escritor argentino Adolfo Bioy Casares, um dos principais nomes da literatura fantástica argentina escreveu La Invención de Morel. O romance, carregado de experiências metafísicas, descreve a angústia de um náufrago condenado por crimes na Venezuela, que, ao se deparar com um leque inexistente de possibilidades de sucesso e felicidade na sociedade em que vivia, foge em uma embarcação marítima em busca de redenção e reconstrução psicológica e pessoal. A figura sem nome acaba por se encontrar perdido em uma ilha com habitantes – de acordo com seu diário – portadores de sentimentos como frieza e indiferença perante sua presença, com vidas excessivamente regradas e focadas na rotina.Todos  os rituais eram sempre os mesmos depois de um determinado looping temporal. Aparte de seu isolamento da civilização, a ilha parece ter sido dominada por uma áurea que manipula e reproduz as atitudes daqueles que “habitam” lá. O termo ‘reproduzir’ é adequado para a descrição de tal local, pois, assim como marionetes, pareciam ser manipulados sempre da mesma forma por um ventríloquo.

El aislamiento en el espacio se acompaña de un tiempo también distinto al convencional. La isla evoca un tiempo circular diferente del tiempo lineal de la historia previa del fugitivo. Las repeticiones cíclicas de las mareas, la consignación detallada de las actividades que se reinician, idénticas o con mínimas variaciones, una y otra vez, la reiteración ad infinitum de la semana de imágenes grabadas, generan una rutina en que la memoria se vuelve un instrumento innecesario. (MONTOYA JUARÉZ, 2010, p. 163)[5]

Com a passagem dos dias, o homem, interpretado por Giulio Brogi em L’Invenzione Di Morel (Direção de Emidio Greco, 1974), observa as repetições de um grupo de personagens, aparentemente abastados financeiramente, por seus trajes e costumes. Uma música toca em um determinado dia da semana e é repetida. Ao som, um grupo de pessoas dança com trajes tipicamente europeus. O cientista Morel, que conduz o experimento do qual em uma determinada data todos foram cobaias, caminha e discute a relação com uma bela mulher. , sendo também questionado sobre as consequências éticas que tal pesquisa poderia provocar. O foco psicológico e afetivo do náufrago, entretanto, é voltado para Faustine.[6]

O personagem sem nome “come” a imagem da mulher misteriosa. A repetição dos atos da jovem não traz nada mais que o fetiche criado pelo looping de uma narrativa holográfica. A “indiferença” da mulher, interpretada por Anna Karina na adaptação cinematográfica italiana, só aumenta o desejo do “olho devorador de mundo” (TIBURI, 2011, p. 72) do náufrago; o instinto de possuir a imagem técnica feminina, clara alegoria ao fascínio exercido pelas então recentemente democratizadas maneiras de distribuição e cópia da realidade sob a forma de reproduções imagéticas e sonoras (como por exemplo os filmes em película, fotografias, gravações sonoras em rolos magnéticos e discos).

Vilém Flusser desenvolve em uma gama de publicações suas teses sobre a presença das imagens técnicas na sociedade contemporânea. A realidade, como podemos conceber através da limitação de nossos sentidos, vem sido confrontada com a “imagem pós-escrita, feita de pontos, grânulos e pixels, não mais de planos ou superfícies” (MENEZES, 2010, p. 28)

, produzida 8 anos antes. Ambas estão fora de circulação comercial até o presente momento.”]

Ao final da saga, o homem descobre sua solidão perante um universo holográfico, e, fazendo testes, observa que a máquina, cujo alcance é indefinido, comporta toda a extensão da ilha. Ele decide submergir em tal mundo mais real, ideal e perfeito do que a distopia da qual fazia parte. Entretanto, ainda que morto, ele eterniza-se, e faz com que exista a possibilidade de “conviver” com sua amada imagem técnica.

Arlindo Machado deixa clara a concepção de imagem técnica desenvolvida por Flusser ao longo de suas obras no artigo Repensando Flusser e as imagens técnicas.

En Filosofia de Caja Preta, Flusser dirige sus reflexiones hacia las llamadas imágenes técnicas, o sea, hacia aquellas imágenes que son producidas de una manera más o menos automática, o mejor dicho, de una manera programática, por medio de aparatos de codificación. A menudo, Flusser se refiere a la imagen fotográfica, por considerarla el primer modelo, el modelo más simple y al mismo tiempo el más transparente de la imagen técnica, pero su análisis se aplica con facilidad a cualquier tipo de imagen producida con mediación técnica, incluso a las imagenes digitales, que parecen ser el motivo más urgente e inconfeso de esas reflexiones. La característica más importante de las imágenes técnicas, según Flusser, es su calidad inherente de materializar determinados conceptos con respecto al mundo, precisamente los conceptos que orientaran la construción de los aparatos que les dan forma. De esa manera, la fotografía, en lugar de registrar automáticamente impresiones del mundo físico, transmuta determinadas teorías científicas en imagen, o para utilizar las palabras del proprio Flusser, “transforma conceptos en escenas” (p.45). Las fotografías en blanco y negro, que interpretan lo visible en términos de tonos de gris, demuenstran con precisión cómo las teorías de la óptica y de la fotoquímica están en su orígen. Pero también en las fotografias de colores, el color puede ser tan “teórico”o abstracto como las imágenes en blanco y negro. De acuerdo con Flusser, el verde del árbol fotografiado es una imágene del concepto de “verde”, tal como una determinada teoría química lo elaboró. (MACHADO, 2000a, p. 3)[8]

Ao colocar algumas frutas diante da exposição dos raios emitidos pela máquina, o personagem central percebe que elas apodrecem e morrem. As imagens delas, entretanto, ficaram eternizadas e passaram a fazer parte do universo da ilha, assim como no primeiro experimento do Doutor Morel, causador da morte dos indivíduos cobaias (os mesmos que dançavam todas as semanas e depois só eram parte de um looping). Ao expor sua mão, o náufrago sente o início de um processo de necrose.

Figura 3: O náufrago utiliza o aparato criado pelo Dr. Morel, que transforma a “realidade” em uma espécie de holografia tátil permanentemente em looping, apesar de não ter conhecimento de seu mecanismo de funcionamento. Em Lost, o personagem Desmond também lida com uma máquina na qual só conhece sua a função e seu fim: foi instruído a ficar confinado em uma escotilha subterrânea e apertar uma sequência numérica a cada 108 minutos em um computador de interface semelhante ao sistema operacional MS-DOS – 4, 8, 15, 16, 23, 42. A consequência de não fazer isso seria o “fim do mundo”, como dito por Kelvin, antigo funcionário do local. As duas situações são metáforas para a Filosofia da Caixa Preta de Vilém Flusser: sabemos o resultado do uso das máquinas, mas não como elas processam as informações, sejam elas fotográficas ou de qualquer aspecto. Vemos o mundo por um prisma criado por algo que não controlamos: os motores técnicos de produção e os resultados automáticos deles.

Como já citado, a escolha do náufrago foi submeter-se à morte física para a imortalidade imagética – tal qual sua amada Faustine. De certa forma, pode-se dizer que o homem da narrativa não sabe qual motores, engrenagens ou experimentos quânticos possibilitam o funcionamento da máquina de “holografia quase tátil” de Doutor Morel. Por ter uma interface amigável, ele consegue determinar o que ela faz, mas não como faz: morte do corpo e eternização da imagem tornando-se, metaforicamente, um funcionário, nos termos da filosofia flusseriana.

Al usuario que trabaja con esas máquinas y que extrae de ellas las imágenes técnicas, Flusser le da el nombre de funcionario. Para el funcionario, las máquinas semióticas son cajas negras cuyo funcionamento y cuyo mecanismo generador de imágenes se le escapan parcial o totalmente. El funcionario lidia solamente con el canal productivo, pero no con el proceso codificador interno. Eso sin embargo no le molesta, porque tales cajas se le manifestan de una manera amigable (user-friendly), o sea, ellas pueden funcionar y poner en operación su programa generador de imágines incluso cuando el funcionario que las manipula desconoce lo que pasa en su vísceras, un poco como el motorista puede conducir un coche sin preocuparse por el funcionamento del motor. El funcionario domina sólo el input y el output de las cajas negras. (MACHADO, 2000a, p. 4-5)[9]

Apesar de este estudo iconográfico representar o envolvimento presente em uma determinada época entre homens, máquinas, seus produtos, e o espírito de tal tempo, a descrição de Flusser do relacionamento humano com as obras passíveis de reprodutibilidade (e neste momento, digitais e interativas) ainda soa nítida e válida para os moldes da sociedade atual. Muitos elementos presentes nessas teorias ainda estão presentes no consumo desenfreado de imagens. Não é preciso ver como heresia hibridizações e transformações dos conceitos flusserianos para um mundo em que narrativas transmidiáticas fluem por inúmeras plataformas – em que a velocidade das mudanças e a obsolescência (seja ela afetiva, tecnológica, moral, política ou social) só tende a crescer exponencialmente.

4. Lost : A Modernidade Líquida e a fragilidade dos laços afetivos

Em 22 de setembro de 2004, foi transmitido pela rede de televisão norte-americana ABC o primeiro episódio do seriado Lost. O enredo gira em torno de 48 sobreviventes do voo 815 da companha aérea Oceanic Airlines, cujo itinerário era Sydney-Los Angeles. Após uma queda, que rachou a aeronave em dois pedaços, acabaram encurralados em uma ilha de propriedades únicas. Algum tempo depois esses indivíduos compreenderam que o resgate era incerto e improvável, e desenvolveram novas rotinas e regras de convivência. O que parecia ser um paraíso tropical insular se transformou, aos poucos, em uma espécie de purgatório na trajetória das vítimas: fantasmas emocionais do passado ainda estavam presentes, somados às incertezas do caráter de seus novos “vizinhos” e a insegurança perante o desconhecido: – logo na primeira temporada os personagens se depararam com um urso polar (improvável nas áreas de clima tropical) e um monstro de fumaça negra.

É importante destacar que dentre as influências declaradas como inspirações para o desenvolvimento do roteiro do seriado estão muitas obras literárias, que foram sendo referenciadas em situações que fazem parte da diegese da obra. Exemplo disso é o grande número de livros que dá nome a episódios ou simplesmente são apresentados como objetos cenográficos da mise-en-scène do programa de TV. O personagem Sawyer, homem cuja vida foi destruída psicologicamente após uma tentativa de vingança frustrada e o assassinato de um alvo errado, cria o seu próprio “clube do livro”, ao ler as brochuras deixadas por outros passageiros que morreram na queda do avião. Dentre elas, está A Invenção de Morel[10], que, não coincidentemente, possui um enredo de gênero de ilha que lembra muito a série de TV norte-americana, obviamente atualizada, trazendo traços da contemporaneidade. Para uma melhor compreensão do leitor, precedendo a explicação que se segue, é recomendado consultar o glossário de personagens, presente nos anexos na página 23.

O bizarro e o inesperado são elementos constantemente referenciados na série. Os sobreviventes da queda do voo 815 não são os únicos que habitaram o lugar, haja vista que, no interior da ilha, havia uma vila, morada dos “Outros”. Considerados por muito tempo os vilões, eles sequestraram, mataram e fizeram experimentos científicos e psicológicos. Na terceira temporada, os passageiros e o público se surpreenderam ao constatar que eles, na verdade, não eram os antagonistas da história, e sim peças de um jogo de interesses de maiores proporções. A quarta temporada mostra como as pessoas que deixaram a vida seguiram suas vidas, mas como, por algum motivo aparentemente transcendental, são chamados a voltar ao arquipélago. Também é mostrado o resgate de seis personagens: Jack, Sayid, Kate, Aaron, Sun e Hurley – lembrando que Frank Lapidus e Desmond também conseguem a libertação do continente insular em um helicóptero proveniente de um cargueiro. No ano seguinte, a trama desenvolve contornos considerados mais clichês na ficção científica: os losties viajam no tempo e um grupo deles passa a trabalhar na Dharma Inititiave, empresa que desenvolveu pesquisas científicas na ilha, no ano de 1974 – discussões filósoficas (com o uso de física quântica) são desenvolvidas pelos personagens. Outro avião, que leva os Oceanic Six de volta à ilha Outros retornaram à ilha  – alguns vão para a década de 1970 e outros para o então tempo presente (2007). Uns dizem que é possível evitar o futuro trágico detonando uma bomba nuclear presente na ilha desde a década de 1950. Daniel Faraday, o físico teórico, afirma isso, “Whatever Happened, Happened” – o que aconteceu, aconteceu, não é possível mudar o futuro – mas reconsidera suas teorias e induz Jack a organizar um grupo que tente detonar o artefato.

Na última temporada, uma quebra da construção dos episódios foi realizada pelos produtores. Se nos cinco primeiros anos a maioria dos capítulos se dividia entre o que acontecia no mundo “atual” da ilha e inserções de histórias que mostram os momentos posteriores ou anteriores ao acidente, em 2010 um dos maiores fatores que intrigavam os fãs eram os flash-sideaways, ou seja, cenas de uma (possível) realidade alternativa à realidade proposta no início do programa – um mundo em que o avião não caiu na ilha. Tom Slootweg descreve esse mundo transcendente, ao visto aceitado como “real” pelo espectador, e como seu encaixe foi feito em Lost.

Its use in the last season is remarkable, since it brings back into mind the forking-path/puzzle/multiple draft debate in cinema. The somewhat more experimental and structurally less stringent fifth ‘time travel’ season is replaced by one that is retaining its form more consistently across episodes like the first three seasons. With the exclusion of two episodes which deal with character-centered flashbacks – Richard’s epic arrival on the island in the 19th century sailing vessel, and the birth of, and growing antagonism between Jacob and the Man in Black – every episode contains a charactercentered flash-sideway cluster. The fifth season’s finale ushered in two narrative situations that are juxtaposed throughout the sixth season: (1) the aftermath of an attempt to destroy the island, which evidently did not come to pass, since the remaining characters are back on the Island in their original time-frame; and (2) a seemingly parallel universe where the destruction of the island did happen and Oceanic flight 815 safely arrives at LAX airport in Los Angeles in 2003. The character-centered flash-sideways together convey story information of a significantly different 2003 world after their arrival on LAX. As the last season’s primary situation on the island progresses towards its end the parallel world also comes to a climax on a similar pace: like the other two temporal ordering devices, the flash-sideway clusters are intertwined with the primary situation and its plot development. (SLOOTWEG, 2011, p. 70-71).[11]

Aparte do recurso narrativo dos flash-sideaways, a constante incerteza (e transformação) do que é bom e ruim e da inconstância do caráter e das relações dos personagens, o último ano do programa demonstrou um sistema determinista. Todos esses eventos foram controlados por dois personagens presentes na ilha desde 23 d.C.: Jacob e seu irmão, o Homem de Preto. Ambos ganharam o poder de viver para sempre, mas o segundo foi condenado por seu irmão a ser transmutado em uma fumaça negra, após ser jogado na caverna que contem a “luz”, o eletromagnetismo que traz parte dos poderes transcendentais do território insular. É um conflito dualista, com ressalvas. Ambos são movidos por motivos psicológicos e traumas, e os dois aliciam os losties, que constantemente mudam de lado no objetivo de destruir a ilha ou conservá-la – principalmente Desmond, que é “especial”[12], e tem o poder de destruir ou não o local. Ao final da trama, o Homem de Preto, usando o corpo do falecido John Locke, é morto por Jack e Kate. Os personagens, com o auxílio do piloto Frank Lapidus, fazem o segundo avião funcionar e conseguem voltar às suas vidas externas. Na ilha, restam vivos Hurley – destinado por Jacob a cuidar da ilha –, Benjamin, seu ajudante, e Desmond. Jack morre na última cena e o cachorro Vincent deita ao seu lado, em uma alusão à primeira cena da série, na qual ele abre os olhos em um bambuzal, acordado pelo cão labrador – o looping se fecha.

O roteiro foi marcado por altas doses de intertextualidade. Referências a filmes, músicas e livros são feitas. Até mesmo questões filosóficas e religiosas, como a dúvida da existência do livre-arbítrio, são abordadas. Como visto nos parágrafos anteriores, a complexidade também se deve a dois outros fatores: narrativa e temporalidade não lineares, vários plots e sub-plots interligados e distribuição multimidiática. Os flashbacks que descreveram a rotina dos passageiros do voo 815 antes da queda, e os motivos que os levaram à viagem derradeira; e, em um segundo momento, os flash-forwards mostraram as desventuras das vidas futuras daqueles que deixaram a ilha, são formas de (des)organizar esse roteiro quebra-cabeça (que deve ser encaixado pelo espectador de infinitas formas).

Embora seja em sua essência uma obra feita para a TV, Lost desenrola sua narrativa em várias mídias e formatos. Tamanha é a complexidade de sua estrutura, que seus conteúdos, distribuídos em uma abundância de comunidades, incentivam debates com o suporte da inteligência coletiva (LÉVY, 1997, p. 23), para o desvendamento dos rumos dos plots. Os grupos de fãs “constituem uma identidade de ideais articulados, com relações definidas com o lado de fora” (JENKINS, 1992)[13] e ultrapassaram barreiras geográficas. A audiência discute o que é cânone na série também em ambientes virtuais e a consome em vários suportes.

Dentro da narrativa, todos os personagens têm objetivos[14] e buscam redenção. “As manifestações exatas do despedaçamento varia de personagem para personagem; uns são vistos como criminosos desavergonhados e outros são mascarados como heróis (MCCULLOUGH, 2011, p.3). Alguns querem sair da ilha, outros estão dispostos a perder tudo para ficar lá; outros só querem a satisfação de suas carências, excitados pela incerteza e o enclausuramento em território desconhecido. Para que esses desejos sejam realizados, alianças temporárias, amizades e relacionamentos afetivos surgem a todo momento, mas se desfazem com a mesma facilidade, quando deixam de ser convenientes aos interesses particulares.

A presença de múltiplas camadas narrativas e de personagens que, aparentemente, são unidos por ligações absurdas e frágeis não só pode ser vista como mais um exemplo da complexificação de produções audiovisuais seriadas, cujos conteúdos exigem cada vez mais atenção do espectador, mas também – se for utilizada uma abordagem iconográfica de análise – demonstrações do período de incertezas e de quebra de paradigmas, bem como da frustração perante à aparente falha de todos os dogmas e utopias financeiras e religiosas, bem conhecido e teorizado por uma gama de pesquisadores, como Pós-Modernidade.[15]

Se personagens e espectadores se sentem caminhando sobre placas de gelo que podem se quebrar a todo instante, sem confiança alguma na personalidade e no caráter, é possível divagar e relacionar tais comportamentos e características à sociedade líquido-moderna. A quantidade e a brevidade dos laços formados em uma narrativa que não possui antagonistas e protagonistas, mas personalidades e desejos que fluem com uma facilidade antes não vista, é mais um exemplo do reflexo da liquidez nas relações humanas do tempo no qual os personagens de Lost estão inseridos.

A sequência de eventos aparentemente absurdos e aleatórios que conectam todos que, de algum modo, foram tragados por esse pedaço de terra móvel[16] em um oceano desconhecido, parece fazer analogia às questões de Zygmunt Bauman sobre a mobilidade de nossas relações sociais, sejam elas de trabalho, amor, instintivas ou ideológicas. Tudo é moldado e transformado rapidamente. Esse pedaço de terra, referenciado como a principal entidade do seriado, possui características que são da sociedade extra-ilha, mas que são refletidos no confinamento insular, transformando-o em um microcosmo que espelha os costumes da sociedade da qual se originam seus novos (e também passageiros) habitantes. Também assimila costumes daqueles que escreveram e planejaram o roteiro do produto audiovisual, um exemplo de que a iconografia pode ser utilizada para confirmar o espelhamento ou traços estéticos e culturais transposicionados, ainda que muitas vezes inconscientes, para as obras culturais de uma determinada época e local.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman cunhou a definição de Modernidade Líquida como um termo mais adequado para definir a sensação de inquietude e incerteza, seja ela amorosa, sexual, social ou econômica na qual estamos inseridos. Em um primeiro momento, ele defende o uso do termo Pós-Modernidade, já conhecido duas décadas antes de sua produção O Mal-Estar na Pós-Modernidade – o título faz referência à conhecida obra de Sigmund Freud, O Mal-Estar na Cultura (anteriormente traduzido do alemão como O Mal-Estar na Civilização). Tal inspiração para a obra é descrita pelo autor por contrapor a opinião freudiana de que, quando produzidos os manuscritos do criador da psicanálise, de que até então era oferecido aos indivíduos “um pouco de segurança às custas de um pouco de liberdade” para o combate do mal-estar (BAUMAN, 1998, p.156). No mundo pós-moderno, as aflições são outras, e é oferecida “cada vez mais liberdade individual ao preço de cada vez menos segurança” (BAUMAN, 1998, p.156). Anos mais tarde, o polonês encontrou e criou um termo que, segundo ele, definia melhor o momento comportamental e sociológico de fluidez e mudanças excessivas, provocador de medos e ansiedades – a “modernidade líquida”.

(…)o palco para a ação é um recipiente cheio de amigos e inimigos, no qual se espera que coalizões flutuantes e inimizades à deriva se aglutinem por algum tempo, apenas para se dissolverem outra vez e abrirem espaço para outras e diferentes condensações. (BAUMAN, 2004, p. 51)

Tal citação pode ser facilmente associada ao mundo e a regras sociais existentes na deslocada ilha de Lost ( que, apesar de estar expurgada do mundo palpável e das regras físicas e temporais de tal), espelha suas incertezas: protagonistas mudam de traços psicológicos e de alianças afetivas, conforme aumentam ou diminuem as possibilidades de deixar (ou, para alguns) o desejo de ficar na ilha. John Locke, que inicia sua trajetória na série sendo curado pela ilha, passando a andar com as próprias pernas e a se livrar de uma cadeira de rodas na primeira temporada, passa a viver anos em um sistema quase simbiótico com a entidade representada pelo território (mais uma vez há a presença do metafísico, do misticismo, do improvável); ele termina sua jornada na quarta temporada, assassinado, sobrecarregado de incertezas, sem saídas. Sua fé em qualquer tipo de crença foi esfacelada e suas utopias, desconstruídas.

”]

O cruzamento de linhas, de funções sociais e o rompimento múltiplo, fácil e rápido das relações interpessoais dos personagens de Lost se assemelha à descrição e análise feita por Bauman sobre a série EastEnders, publicada no Brasil em Amor Líquido (2004). A fruição dos relacionamentos atinge seu pico em um curto período de tempo, e a inversão do propósito deles também acontece com a mesma frequência. Obviamente, não se tratam de conflitos surgidos e característicos apenas do século XXI; entretanto, o sociólogo atenta para a frequência e a rapidez pela qual se disseminam e foram absorvidos de forma quase automática pela população de diferentes sociedades. Voltando para as questões iconográficas, Bauman também faz uma observação que se assemelha às propostas de Panofsky. Se as características de nosso Zeitgeist estão presentes em Lost, o mesmo, segundo o cunhador da “modernidade líquida”, acontece na novela britânica EastEnders, exibida pela BBC desde 1985:

A parceria é somente uma coalizão de “interesses confluentes” e, no mundo fluido de EastEnders, as pessoas vêm e vão, as oportunidades batem à porta e desaparecem novamente logo após serem convidados a entrar, as fortunas aumentam e diminuem, e as coligações tendem a ser flutuantes, frágeis e flexíveis. As pessoas procuram parceiros e buscam “envolver-se em relacionamentos” a fim de escapar à aflição da fragilidade, só para descobrir que ela se torna ainda mais aflitiva e dolorosa do que antes. O que se propunha/ansiava/esperava ser um abrigo (talvez o abrigo) contra a fragilidade revela-se sempre como a sua estufa…(BAUMAN, 2004, p.20).

É excessivamente complicado para que os personagens, espelhados no atual multiculturalismo e rapidez das mudanças dos valores, consigam escapar da virulência e da pouca dureza das certezas nos relacionamentos. Assim como o conceito de liquidez é aplicado ao amor, ao medo e à política, o mesmo acontece ao modo como percebemos e usamos o tempo, estudado pela sociologia de Bauman. São “tempos líquidos”.

Os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurança digna de um amplo e contínuo investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de interesses individuais imediatos (ou Tempos líquidos do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indivíduo), se tornam cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários. (BAUMAN, 2007, p. 08-09).

Ainda assim, é possível entender que Lost, apesar de estar sendo analisada como um sintoma da sociedade líquido-moderna, deixa brechas para que os participantes dessa aventura na ilha desconhecida (e todo o sistema conspiratório e metafísico que a envolve) se recuperem e consigam fugir do aprisionamento de tal sistema e modo de vida. Muitas vezes, a redenção (mostrada em alguns casos de forma semelhante a filosofias religiosas) acontece, quando os personagens “deixam ir os problemas passados e suas obsessões individualistas, podendo então, passar a organizar uma comunidade justa” (MCCULLOUGH, 2011, p.3). Em determinadas situações, isso não é possível, e a morte é a única forma de escapismo para os losties[18].

Conclusão

O “gênero de ilha” não só continuará a existir para demonstrar a fuga da realidade distópica em que vivemos ou que pensamos estar prestes a viver, mas também por levar os personagens a lugares tão desagradáveis quanto a realidade. Tal gênero inclusive já está sendo incorporado há anos pelas novas mídias, narrativas transmidiáticas[19] e video-games (como Dead Island[20]). O diagrama a seguir é uma tentativa bem redutiva de resumir as principais características presentes nessa categoria de produção textual (seja ela literária, audiovisual, interativa ou transmidiática).

Figura 5: diagrama das similaridades entre Invenção de Morel e Lost (e da maioria das narrativas do “gênero-ilha).

É possível ver as narrativas de ilha como padrões estilísticos e narrativos que se repetem, mas são alterados de acordo com o tempo e o espaço em que foram produzidas, de acordo com a discussão iniciada nesse texto, ao citar a iconologia e a iconografia de Erwin Panofksy, através de Sarah Berry-Flint. Mais do que isso, é necessário deixar claro que tais traços estéticos e de construção não excluem a participação dessas características em outras categorias do gênero, visto que uma categorização muito específica não condiz com o processo de hibridização e com as heranças deixadas por produções anteriores; fenômeno quase sempre presente na criação artística humana – e ainda mais tangível com os aparatos tecnológicos de edição e produção de alcance mais próximo da época em que vivemos, –, “quanto mais avançamos na direção do futuro, mais o hibridismo se mostra como a própria condição estrutural dos produtos culturais” (MACHADO, 2000, p. 67-68).

*Francisco Beltrame Trento é Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Mestrando do Programa de Pós Graduação em Imagem em Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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ANEXOS

1. Lista de Personagens

A Ilha: Apesar de não ser comprovadamente um ser vivo, a ilha parece ter vontades próprias e exerce poder sobre aqueles que estão sob seu domínio, seja tal propriedade vista por alguns personagens como uma manifestação natural do eletromagnetismo, e por outros de maneira espiritual e transcendental. Em a Filosofia de Lost, escrito por Simone Regazzoni, é feita a associação entre a ilha e o conceito psicanalítico desenvolvido por Sigmund Freud de sentimento ocêanico, segundo o qual, quando criança, “o lactante ainda não distingue o próprio Eu do mundo exterior como fonte das sensações que o abismam” (REGAZZONI, 2008, p. 103). Em outras palavras, John Locke, ao se deparar com o aspecto metafísico da ilha de Lost, no episódio da primeira temporada Exodus, Parte 2, afirma ter visto algo belo, e em várias ocasiões demonstra um sistema de simbiose com aquele pedaço de terra envolto por água, como se fosse impossível determinar o limiar entre o espírito do sobrevivente e do “lugar mágico” em que acabou preso.

Benjamin Linus (Michael Emerson): É visto por muitos como o personagem mais manipulador presente na ilha. Levado para lá, quando criança, por seu pai Roger Linus, que iria trabalhar na iniciativa Dharma, encontrou-se na década de 1970 com os losties, que haviam viajado no tempo; Sayid tentou, inevitavelmente mudar o curso da história, dando um tiro no peito do jovem Linus. Entretanto, esse incidente provocou a comoção de Kate, Jack e Juliet, que levaram Ben ao território dos outros – no momento, viviam em um acordo de paz com a Iniciativa Dharma. Richard Alpert diz que seria possível curar Benjamin Linus, mas o procedimento deixaria consequências – “ele perderá a inocência, nunca mais será a mesma pessoa”, afirmou Alpert, carregando o jovem ferido no colo. A profecia se concretizou. Nos anos 1990 Benjamin exterminou a Iniciativa Dharma com a liberação de um gás letal na ilha e tomou o controle das construções humanas do lugar – as estações de pesquisa e a vila. Após a queda do voo 815 teve um relacionamento conturbado com os passageiros. Nunca houve a certeza de que era um inimigo, um aliado, ou que sua ética variava de acordo com seus desejos e necessidades. Revoltado e incentivado, assassina Jacob, guardião da ilha, que de fato nunca havia contatado-o diretamente. Fora dela, mata John Locke enforcado. No final da trama, ele tem uma espécie de redenção. Hurley, determinado por Jack a ser o guardião do arquipélago, aceita que ele seja seu ajudante. Entre os que morreram e os que partiram, sobra a Benjamin a companhia de Hurley, Desmond e, posteriormente, Walt, personagem que havia deixado o local na segunda temporada, mas que volta à ilha no epílogo. “The New Man in Charge” – continuação de 12 minutos do episódio final lançada em DVD dois meses após o encerramento da série.

Charles Widmore (Alan Dale): É pai de Penelope Widmore, a amada quase inalcançavel de Desmond Hume. Foi o responsável pelo afastamento dos dois, e, consequentemente, a causa de Desmond ter buscado disputar uma maratona de barcos ao redor do mundo. Na juventude, foi um dos líderes do grupo dos “outros”. Por ter relações com uma mulher fora da ilha, foi expurgado por Benjamin Linus, que se tornaria seu principal rival. Também tem como filho o físico Daniel Faraday. Não coincidentemente, a mãe do rapaz tem o nome de Eloise Hawking (mesmo sobrenome do teórico de questões da física quântica como a existência e a possibilidade de viajar no tempo). Contrata um mercenário para matar a filha de Ben, e o faz. Como vingança, é assassinado em seu retorno à ilha pelo seu algoz.

Desmond David Hume (Henry Ian Cusick): Desmond é considerado por muitos pesquisadores como uma reconstrução do personagem Ulisses, da poesia épica grega Odisseia (Οδύσσεια). , sendo que ambos foram separados de uma mulher amada extremamente idealizada. Nas duas obras, tal musa se chama Penélope. As coincidências continuam ao observar-se que os personagens em questão velejam sozinhos e, por razões deterministas, naufragam em uma ilha. Desmond Hume também é referenciado como referência ao filósofo inglês David Hume.  Nascido na Escócia, Desmond é dotado de singularidades biológicas e psicológicas que permitiram com que a importância do personagem aumentasse consistentemente até a última temporada (na qual se tornou a chave para a solução de questões metafísicas da narrativa de ilha).

Charlie Pace (Dominic Monaghan): Ex-baixista de uma conhecida banda de rock britânico Driveshaft, era viciado em heroína (durante a queda do avião, o personagem estava consumindo um tablete do psicotrópico trancado no banheiro) e encontrou na ilha, com a ajuda de John Locke, um caminho para superar as crises de abstinência. Apaixona-se e tem um relacionamento amoroso por Claire; mas, apesar das tentativas de ser salvo por Desmond, seu destino (a morte) não consegue ser evitado no último episódio da terceira temporada.

Daniel Faraday (Jeremy Davies): Físico teórico quântico, seu nome faz referência a Michael Faraday, conhecido cientista que fazia estudos com as propriedades do magnetismo. É filho de Charles Widmore. Após sucessivas experiências com o uso de cargas eletromagnéticas de viagem da consciência humana através do tempo, acaba por adquirir um sério problema psiquiátrico de perda de memória. Apesar disso, sua inteligência e a habilidade de lidar com a lógica não são afetados. É recrutado por seu pai para voltar à ilha em 2004, por entender o funcionamento da lógica quântica e temporal de tal localidade. Viaja no tempo e, em 1977, é morto pela própria mãe na ilha, sendo confundido com um invasor.

Homem de Preto (Titus Welliver, Terry O’Quinn): Presente desde a primeira temporada, em seu primeiro capítulo é apresentado como um monstro ou uma entidade espiritual e bizarra capaz de matar animais e pessoas e derrubar árvores. Alguns episódios depois, sua imagem temporária é apresentada: uma fumaça negra capaz de adquirir a forma de pessoas que morreram. Utiliza o corpo do pai de Jack, que estava sendo carregado no voo 815, induzindo o médico a duvidar de seu ceticismo e seguir a imagem do falecido familiar.

Hugo Reyes (Jorge Garcia): Mais conhecido como Hurley, assim como todos os seus companheiros de queda na ilha, passou por situações trágicas no “mundo externo”. Chegou a ficar internado em um hospital psiquiátrico por um tempo; ganhou na loteria utilizando os mesmos números que se repetem em toda a narrativa da série – 4, 8, 15, 16, 23, 42. Entretanto, tal acontecimento só lhe trouxe uma cadeia de eventos considerado por ele como “malditos”, assim como tais números.

Jack Shepard (Matthew Fox): Destinado a morrer no primeiro episódio da primeira temporada, o cirugião espinal inicia sua trajetória como “homem de ciência” na ilha. Embarcou no voo 815 da Oceanic Airlines para levar o caixão de seu pai e foi o líder nato do grupo de losties, apesar de ter entrado por diversas vezes em crises existenciais. Junto com o cão labrador Vincent, são os primeiros e os últimos personagens a serem mostrados na série.

James Ford “Sawyer” (Josh Holloway): É um conman. Enganava mulheres para que se apaixonassem por ele e pudesse ficar com o dinheiro delas e assassinou o homem que pensava ter provocado a morte de seus pais. Uma vida difícil e problemática trouxe acidez à sua personalidade,  mas este sentimento foi sendo diluído durante as temporadas. Ao viajar no tempo, apaixona-se por Juliet, com quem vive por três anos na década de 1970 uma relação quase ideal. Também teve relacionamento com Kate na segunda temporada, criando rivalidade com Jack, e um affair com Ana Lucia (personagem da série morta no fim da segunda temporada).

Jacob (Mark Pellegrino): É guardião da fonte de luz/energia eletromagnética da ilha desde o primeiro século depois de Cristo. O barco que levava sua mãe, grávida de gêmeos, naufragou no ano de 23 d.C. (décimo quinto episódio da sexta temporada: Across The Sea). A mulher, de nome Claudia, e, provavelmente, de origem greco-romana (os primeiros diálogos do episódio são feitos em latim) foi assassinada por uma já habitante do local, considerada “louca” por seu outro filho, Jacob.

Jin (Daniel Dae-Kim) e Sun Kwon (Yunjin Kim) : Casal de coreanos que passou por profundas mudanças comportamentais e psicológicas no decorrer de seis anos de produção da série. No início, Jin é enviado à Austrália para entregar um relógio (ver episódio House of Rising Sun) aos mandos do pai de Sun.

John Locke (Terry O’Quinn): Frustração e fé determinam a jornada de John Locke durante o seriado. Após ser ludibriado por seu pai Anthony Cooper, que parecia se aproximar de forma afetiva dele, doou um de seus rins para o pai, que necessitava para não padecer de uma doença renal. Após isso, foi rejeitado por seu único familiar, sendo proibido até de visitá-lo. Depois de sofrer esse golpe, ainda procura o pai, que o joga por uma janela de um edifício, causando um quadro de paraplegia em Locke; , agora preso à uma cadeira de rodas.

Juliet Burke (Elizabeth Mitchell): Médica especialista em técnicas experimentais de fertilização, foi recrutada em 2001 para trabalhar na Mittelos Bioscience. Ao invés de ser contratada para um hospital, foi viver na ilha, buscando explicações para a morte de todos os bebês concebidos no  lugar. Teve um relacionamento amoroso com Jack, mas sua relação mais duradoura foi com Sawyer. Quando ambos voltaram no tempo, para o fim da década de 1970, viveu por três anos trabalhando para a Iniciativa Dharma, organização que fazia experiências científicas na ilha. Acabou morrendo na tentativa frustrada da explosão de uma bomba atômica, planejada pelo físico Daniel Faraday em busca de uma alteração nos fatos da linha do tempo.

Kate Austen (Evangeline Lilly): Criada por sua mãe e seu padrasto, após seu pai biológico ter morrido, era procurada pela justiça norte-americana por ter cometido assassinato ao homem com quem sua genitora havia casado pela segunda vez. Assumiu inúmeras identidades e cometeu alguns crimes para conseguir não ser presa pelo agente federal Edward Mars. Encontrada na Austrália, Mars e a jovem pegam o voo 815. Ela, algemada, iria ser presa ao desembarcar no aeroporto de Los Angeles (LAX). No acidente, consegue destravar a algema que a prendia ao policial – que morreria dias depois.

Os outros: Grupo originário por sobreviventes da embarcação que levou Jacob e seu irmão à ilha em 23 d.C. Controlaram a ilha por muito tempo, a todo momento tentando evitar os ataques do monstro de fumaça negra. Com a chegada do exército americano na década de 1950 e a Iniciativa Dharma pouco tempo depois, perderam a “soberania” na ilha, vivendo em um acordo de paz com os cientistas que habitavam-na concomitantemente. Alguns de seus líderes mais notáveis foram “O Homem de Preto”, Richard Alpert, Charles Widmore, Richard Alpert, Benjamin Linus e John Locke.

Richard Alpert (Nestor Carbonel) : É um conselheiro de Jacob, um elo entre o protetor da ilha e o chefe dos outros, Benjamin Linus. Na verdade, foi o primeiro dos “Outros”. Nascido nas Ilhas Tenerife no século XVIII, foi preso por ter matado acidentalmente um médico e transportado em um navio como escravo. Uma tempestade faz com que a embarcação vire e se choque com a estátua da deusa egípcia Taweret. Seus companheiros de viagem foram assassinados pelo “Homem de Preto”; entretanto, Richard recusa-se criar uma aliança com ele e se torna assistente de seu inimigo e irmão, Jacob.

Sayid Jarrah (Naveen Andrews): Lutou na guarda republicana iraquiana durante o regime de Saddam Hussein. Era torturador, mas se recusou a aplicar a condenação da morte a uma dissidente do regime vigente na época, Nadia, pois por ela havia se apaixonado. Após sair da ilha, continua seu trabalho de assassino profissional aos mandos de Benjamin Linus, que lhe deu a informação de que Nadia havia sido assassinada por capangas de Charles Widmore. De volta ao enclausuramento insular, Sayid é infectado por uma “doença” misteriosa, ao ressuscitar mergulhando em uma fonte de água contaminada – perde todos os sentimentos e passa a cooperar com o “Homem de Preto”. Destinado a disparar um revólver contra Desmond, que havia sido preso em um poço, Sayid recupera sua humanidade, deixando-o vivo e sacrificando sua vida detonando uma bomba no compartimento de um submarino, no qual os losties deixariam a ilha no episódio The Candidate.


[1] “(…) lidar com o trabalho artístico como sintoma de alguma coisa mais, que em si próprio expressa um número sem fim de variedade de outros sintomas, e… intrepretar as características composicionais e iconográficas como uma evidência mais particularizada de “algo mais” (Tradução livre do autor).

[2] “Essa ilha misteriosa (se referindo à locação de Lost) não é, certamente, uma invenção dos autores da série, e nem mesmo pode ser considerado somente um tema contemporâneo, visto que esse nos leva de volta às origens da espécie humana. Este será o caso de olharmos no que podemos chamar de “genealogia” de nossa ilha específica, que nos levará a um ponto de vista muito útil, que retoma as influências históricas presentes na criação de Abrams e seus colegas e nos dará algumas ideias de como observar e explicar a estranha natureza do lugar onde houve a queda do voo 815 da Oceanic Airlines.” (Tradução livre do autor).

[3] Deve-se ressaltar a presença da metafísica, do bizarro e do estranho, que permeia boa parte das produções do gênero de ilha. A estranheza familiar, descrita por Sigmund Freud como Unheimliche, no ensaio Das Unheimliche, de 1919, atrai o espectador. Twin Peaks, série produzida por David Lynch em 1990, apela para a bizarrice de seus personagens e a ausência de probabilidade dos acontecimentos da narrativa como forma de cativar o espectador, que, segundo o psicanalista austríaco, é puxado pela morbidez e pelas belas características estranhas do mundo. Ver FREUD, Sigmund. The ‘Uncanny’. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Volume XVII (1917-1919): An Infantile Neurosis and Other Works, 217-256. Disponível em http://www.arch.mcgill.ca/prof/bressani/arch653/winter2010/Freud_TheUncanny.pdf  (Obra em domínio público). Acesso em 5 de julho de 2011.

[4] Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/L’isola_del_giorno_prima. Acesso em 19 de julho de 2011.

[5] “O isolamento no espaço é acompanhado de um tempo também distinto do convencional. A ilha evoca um tempo circular diferente do tempo linear da história prévia do fugitivo. As repetições cíclicas das marés, a consignação detalhada das atividades que são reiniciadas de forma idêntica ou com variações mínimas uma ou outra vez, a reitação ad infinitum da semana de imagens gravadas geram uma rotina em que a memória se transforma em um instrumento desnecessário.” (Tradução livre do autor).

[6] Casares inspirou-se na atriz de cinema-mudo Louise Brooks (pela qual tinha fascinação) para o desenvolvimento da personagem – que fala Francês de modo impecável e cujo assunto predileto são as maravilhas do Canadá. Ver http://zorosko.blogspot.com/2010/03/adolfo-bioy-casares-last-eternity-at.html Acesso em 09 de julho de 2011.

[7] Uma amostra de nove minutos do filme pode ser vista em http://www.ina.fr/economie-et-societe/vie-sociale/video/CPF86658025/l-invention-de-morel.fr.html. Acesso em 12 de julho de 2011.

[8] “Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser dirige suas reflexões na direção das chamadas imagens técnicas, ou seja, daquelas imagens que são produzidas de forma mais ou menos automática, ou melhor dizendo, de forma programática, através da mediação de aparelhos de codificação. Flusser se refere amiude à imagem fotográfica, por considerá-la o primeiro, o mais simples e ao mesmo tempo o mais transparente modelo de imagem técnica, mas a sua abordagem se aplica facilmente a qualquer espécie de imagem produzida através de mediação técnica, inclusive às imagens digitais, que parecem ser o motivo mais urgente e inconfessado dessas reflexões. A mais importante característica das imagens técnicas, segundo Flusser, é o fato delas materializarem determinados conceitos a respeito do mundo, justamente os conceitos que nortearam a construção dos aparelhos que lhes dão forma. Assim, a fotografia, muito ao contrário de registrar automaticamente impressões do mundo físico, transcodifica determinadas teorias científicas em imagem, ou para usar as palavras do próprio Flusser, “transforma conceitos em cenas” (1985b: 45). As fotografias em preto-e-branco, que interpretam o visível em termos de tons de cinza, demonstram bem como as teorias da óptica e da fotoquímica estão em seu origem. Mas também nas fotografias em cores, o colorido pode ser tão “teórico” ou abstrato quanto nas imagens em preto-e-branco. No dizer de Flusser, o verde do bosque fotografado é imagem do conceito de “verde”, tal como determinada teoria química o elaborou” (…).  (Texto original de Arlindo Machado em português disponível em <http://www.arteuna.com/CRITICA/flusser.htm> Acesso em 16 de julho de 2011.

[9] Ao usuário que lida com essas máquinas e que extrai delas as imagens técnicas, Flusser dá o nome de funcionário. Para o funcionário, as máquinas semióticas são caixas pretas cujo funcionamento e cujo mecanismo gerador de imagens lhe escapam parcial ou totalmente. O funcionário lida apenas com o canal produtivo, mas não com o processo codificador interno. Mas isso não importa, porque tais caixas aparecem a ele de forma amigável (user-friendly), ou seja, elas podem funcionar e colocar em operação o seu programa gerador de imagens técnicas mesmo quando o funcionário que as manipula desconhece o que se passa em suas entranhas, um pouco como o motorista pode dirigir um carro sem se preocupar com o funcionamento do motor. O funcionário domina apenas o input e o output das caixas pretas. (Texto original de Arlindo Machado em português disponível em <http://www.arteuna.com/CRITICA/flusser.htm> Acesso em 16 de julho de 2011.

[10] Sawyer é visto lendo esse livro no décimo-oitavo episódio da terceira temporada, de título Dave.

[11] “O uso (dos flash-sideaways) na última temporada é notável, visto que traz à tona na mente dos espectadores o debate sobre a bifurcação de caminhos e destinos, bem como os enredos em quebra-cabeça no cinema. A de algum modo menos bem estruturada rigorosamente quinta temporada sobre ‘viagem no tempo’ é substituída por uma tão retentora e consistente através de seus episódios, assim como ocorreu nos três primeiros anos da série. Excluindo os dois episódios que lidam com flashbacks centrados em determinados personagens – a épica chegada de Richard (Alpert) à ilha num navio que transportava escravos, e o nascimento e o crescimento do antagonismo entre Jacob e o Homem de Preto – cada episódio contem uma visão alternativa da vida de um personagem em uma realidade paralela. O final da quinta temporada deixou duas situações narrativas e possibilidades justapostas durante a sexta: (1) as consequências de uma tentativa frustrada de destruir a ilha, que trouxe os personagens reminiscentes de volta para o tempo ‘original’da série (alguns foram enviados para o ano de 1977 depois de um incidente eletromagnético) e (2) um aparente universo paralelo em que a destruição da ilha aconteceu, e consequentemente o Voo 815 da Oceanic Airlines aterriza de forma segura no aeroporto de Los Angeles. O “mundo alternativo” de 2003 é significantemente diferente, e enquanto no “mundo real” de Lost havia a progressão para um clímax, o mesmo acontecia no até então conhecido ‘universo paralelo’. Assim como as outras estratégias narrativas (referindo-se aos flashbacks e flashforwards), os flash-sideaways estão interligados com a situação principal e o desenvolvimento de seu plot.” (Tradução livre do autor).

[12] O físico teórico Daniel Faraday, preso na ilha e submetido a constantes viagens no tempo, encontra Desmond trancafiado na escotilha, em uma de suas viagens involuntárias ao passado. “Você é especial, e é o único que pode nos ajudar, pois as regras não se aplicam a você”, diz o cientista ao escocês na porta da escotilha. Anos depois, em 2007, tal memória vem à cabeça de Desmond em formato de sonho, e ele inicia sua jornada de repensar a promessa de “nunca voltar à ilha após ter saído de lá.”

[13] Henry Jenkins observa o trabalho em grupo para o entendimento de narrativas complexas analisando como os fãs da série Twin Peaks se agrupavam para descobrir quem era o assasino de Laura Palmer, personagem assassinada no primeiro episódio do programa. A descrição do pesquisador pode ser consultada em seu livro Textual Poachers: television fans and participatory culture, publicado em 1992.

[14] Ver anexo com a lista das características dos personagens compilada no final do artigo.

[15] Vale lembrar que o conceito de “pós-modernidade” é muito contestado academicamente. A sugestão de que já não estamos mais em tal período é constantemente usada, bem como não é possível aplicar um conceito tão amplo discutindo-se sobre um conjunto de sociedades em estágios de evolução diversificados – sem a sugestão de que tais estágios sejam superiores ou inferiores. Nada impede que uma determinada nação esteja passando por tempos pós-humanos e outras estejam vivendo o modo de produção feudal. Entretanto, tratando-se de uma análise iconográfica, é conveniente ater-se em observar as características do espírito do tempo do local de produção do objeto analisado (a série Lost) e o público consumidor de tal (ainda que, com a sociedade em rede e as possibilidades de download, o atingimento do produto tenha sido muito maior do que o esperado).

[16] A ilha mostrou ter propriedades únicas, podendo-se mover no espaço e no tempo, devido à alta concentração de eletromagnetismo concentrada em no coração da ilha – uma caverna descoberta no ano 23 AC. (Esse mistério foi desvendado no episódio Across The Sea, décimo quinto da sexta-temporada. Tal singularidade foi descoberta por uma mulher de origem latina, “Claudia”, que assassina a mãe de dois gêmeos: Jacob e “O Homem de Preto”. O último deles, tomado pela decepção de ter sido preterido por seu irmão para o posto de guardião da ilha, se alia a outros humanos que chegaram lá em sua embarcação, e constroi uma série de tubulações movidas a uma roda de madeira que é capaz de mover a ilha no tempo e espaço. Ver http://lostpedia.wikia.com/wiki/Time_travel (Acesso em 08 de Julho de 2011).

[17] Para a visualização de um infográfico que contemple mais personagens, consultar a página da Revista Wired. Disponível em http://www.wired.com/magazine/2010/04/ff_lost/all/1 (Acesso em 08 de Julho de 2011).

[18] Os produtores e fãs da série canonizaram esse termo como forma de denomominar os sobreviventes do incidente no vôo 815 da Oceanic Airlines. Ver Lost, Episódio 1: Pilot (2004).

[19] Henry Jenkins promoveu o conceito de transmídia para explicar conteúdos que são interdependentes de seus meios. Um seriado de TV como Lost, por exemplo, desenvolve sua narrativa de forma transmidiática, com pedaços de sua trama sendo distribuídos em diversas plataformas: televisão, internet, dispositivos móveis, livros e games.

[20] O plot central do game é desenvolvido na ilha fictícia de de Banoi, localizada nos arredores de Papua Nova-Guiné. O personagem principal, assim como a primeira cena de Lost, abre os olhos acordando em território desconhecido e selvagem, e suas únicas companhias foram transformadas em zumbis. Não é conveniente dar um caráter fixo às narrativas focadas em ilhas. Este exemplo de Dead Island, pode ser considerado uma forma de hibridização. Se existem constâncias nas características das narrativas de ilha, há também sangramentos de uma época – o gênero “terror de zumbi” (assim como vampiros) voltou a ser uma opção segura para as produções audiovisuais, e se dilui em diferentes estilos de narrativas. O ecossistema dos gêneros é um fluxo contínuo de transformações, onde surgem novas criaturas e outras sofrem transformações, de maneira semelhante à cadeia evolutiva biológica. No caso do vídeo, há de se contar as pressões mercadológicas – se o gênero vampiresco é quase garantia de sucesso de público, é conveniente às grandes produtoras diluí-lo em tipos distintos de filmes, visando a atração de espectadores e um maior atingimento. Consequentemente, mais renda é arrecadada.

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