Análise da Teoria Feminista em filmes contemporâneos

Gabriel Ribeiro Alfredo *

Introdução

No período que pode ser colocado entre os anos 1940 e 1960, a cinematografia que se destacou dentro do mercado mundial e que deu base para muitas das teorias cinematográficas que viriam a despontar na década seguinte, foi o chamado Cinema Clássico Americano. Textos sobre a sua historiografia, seus gêneros fílmicos, códigos e linguagens, assim como a questão da autoria, foram as principais fontes para o pensamento do cinema que antecede as décadas de 70 e 80. Ainda neste período, diversos acontecimentos desencadearam, no fim da década de 60, uma grande revolução cultural em que as mulheres, os negros, os gays e as outras “minorias” reivindicavam liberdade de expressão e uma voz dentro da sociedade, que até o momento era pautada dentro do conceito familiar patriarcal, religioso monoteísta, de direita política e capitalista.

Após este período revolucionário, que tem como ponto ápice o mês de Maio de 1968[1]l; o pensamento sobre cinema passou a mudar de rumo. Robert Stam, um dos grandes teóricos do cinema atual, diz que a teoria cinematográfica passou, após este período, a se pautar sobre a égide de três grandes pensadores (Althusser, Saussure e Lacan)[2], que contribuíram, cada qual, através de sua área de pesquisa (o Marxismo, a Semiótica e Significação, e a Psicanálise, respectivamente)  para o desenvolvimento das novas temáticas da teoria do cinema (STAM; 2003, pág.192) . Uma delas é o pensamento feminista empregado dentro do contexto cinematográfico. Segundo Stam; “A intenção feminista era investigar as articulações de poder e os mecanismos psicossociais na base da sociedade patriarcal, com objetivo último de transformar não apenas a teoria e crítica do cinema, mas também as relações sociais genericamente hierarquizadas em geral” (STAM; 2003, pág.193), ou seja, era uma vertente ativista que queria atuar não apenas dentro da teoria do cinema, mas dentro da sociedade como um todo. Porém, o pertinente aqui é o que elas deduziram de sua investigação.

Laura Mulvey, uma das muitas teóricas da segunda geração do pensamento feminista[3], se utilizou do pensamento de Lacan e Althusser (ambos não feministas) para criar um diagnostico sobre o machismo dentro do cinema hollywoodiano clássico. A teórica pautou-se na questão do sujeito e do olhar para argumentar sobre o espectador e sua tendência ao voyeurismo, intrínseco ao aparato do cinema, porém, seguindo o caminho em que, o homem é o observador e a mulher é a observada, ou seja, um objeto dos desejos e angústias do masculino. Neste sentido ainda comenta sobre a caracterização da significação dos gêneros dentro das narrativas dos filmes, onde o masculino é o ser ativo dominante e condutor da história e o feminino é o ser passivo, dependente e contemplativo dentro da narrativa clássica.

Tomando como base a teoria de Laura Mulvey, de outros teóricos que a criticaram, como David Rodowick e Robert Stam, e de teóricos de gênero, como Timothy Corrigan, Edward Buscombe, entre outros, este trabalho tem como objetivo demonstrar que muitos dos pontos colocados pela teoria feminista para o cinema foram desconstruídos na cinematografia contemporânea mundial, como por exemplo, a caracterização dos personagens masculinos, o ponto de vista feminino e a mulher como objeto de desejo. Como os exemplos são muitos e de grande variedade, escolhi três filmes: Priscilla, a Rainha do Deserto (The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, 1994), As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, 1999) e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, 2001), de diferentes nacionalidades, diferentes gêneros e produzidos dentro de um período de 20  anos, na tentativa de demonstrar a generalidade de meu argumento dentro da perspectiva de um pensamento teórico de cinema mundial, defendido por Lucia Nagib em sua palestra durante o evento do primeiro encontro regional paulista da SOCINE.

A desconstrução do sujeito masculino

Dentro de seu texto “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, Laura Mulvey delimita como uma constante do cinema clássico a colocação do  ponto de vista masculino como principal dentro das tramas. O Prazer de olhar e não ser observado (Voyerismo), tirado das teorias psicanalíticas de Freud e contextualizado para o cinema por Cristian Metz (STAM; 2003, pág.187), associado a um sujeito, caracterizado pelo olhar da câmera, são, na maioria das vezes, identificados como pertencentes à visão masculina.

“Na medida em que o espectador se identifica com o principal protagonista masculino, ele projeta o seu olhar no do seu semelhante, o seu substituto na tela, de forma que o poder do protagonista masculino, ao controlar os eventos, coincida com o poder ativo do olhar erótico, os dois criando uma sensação satisfatória de onipotência.” (MULVEY; 1983, pág. 445-446)

Isso decorre do fato análogo à fase do espelho de Lacan[4] onde criamos imagens a partir de nossos desejos. Em uma projeção cinematográfica, essas imagens são canalizadas pelos personagens devido a seu aspecto antropomórfico e por suas qualidades e defeitos. O homem sendo o agente ativo dentro do desenvolvimento narrativo do filme, e possuindo maior complexidade dentro da trama do que a mulher, tem uma tendência maior de ser alvo da projeção dos desejos do espectador masculino e feminino. À mulher é reservado o papel na qual ela possa se tornar um objeto de desejo fetichista masculino e/ou de alienação feminina.

Desde o fim da década de 60, o sujeito masculino representado nos filmes vem se deteriorando com o passar do tempo. A predominância do homem potente, certo de si mesmo e que tem como único desafio vencer os obstáculos que o separa de seu objetivo final, vem sendo trocado pela figura do homem em crise, em busca de uma identificação pessoal e que, por vezes, deixa de possuir as características que classificam seu gênero sexual dentro de um conceito social e cultural, neste caso a apresentação da figura do homossexual como personagem principal.

O filme australiano Pricilla, a Rainha do Deserto, dirigido por Stephan Elliott, em 1994, demonstra de maneira quase que extrema a desestruturação da figura masculina no cinema, como ela era entendida dentro do cinema clássico hollywoodiano, através da história de Mitzi, Felicia e Bernardete, um trio de drag queens que viaja pelo deserto australiano para fazer uma apresentação de dança e dublagem de musicas pop, em um resort na remota cidade de Alice Springs. Classificado dentro dos gêneros de comédia, musical e drama, o filme pode ser colocado, também, dentro de outro gênero chamado de Road Movie. Timothy Corrigan em seu texto “Genre, Gender and Hysteria: the road movie in outer space” disserta sobre este gênero cinematográfico que considera hibrido dentro de uma concepção da junção de diversos outros gêneros intrinsecamente ligados a historiografia clássica do cinema americano, como os travellogues e os westerns, chamados por ele de gêneros puros (CORRIGAN; 1991, pág. 143). Corrigan coloca o road movie como a representação de como o cinema contemporâneo, na tentativa de representar seu momento histórico, cria então uma crise dentro dos gêneros puros, que estão ligados a um momento histórico passado, dai a dificuldade de se classificar especificamente Pricilla. Contudo o mais importante é como Corrigan classifica o gênero.

Usando os conceitos empregados por Edward Buscombe para caracterização dos gêneros, Corrigan coloca que o road movie possui elementos externos como a estrada, o automóvel e os indivíduos, e  elementos internos (narrativa de viagem, na maioria das vezes de um homem em crise em busca de auto conhecimento ou uma alternativa a sociedade patriarcal capitalista). No caso, o filme de Stephan Elliot possui todas estas características. Pricilla é o nome do ônibus que Felicia (ou Adam, seu nome verdadeiro) conseguiu para que o trio viajasse, ele irá ser o palco de muitas ações importantes para o desenvolvimento da trama, como os conflitos gerados pelas grandes diferenças de personalidade das três, somadas ao confinamento da viagem pelo deserto. Cada um dos indivíduos possui uma crise pessoal a qual o motiva a sair em viagem: Mitzi (ou Anthony) vai ao encontro de sua mulher, dona do resort em que vão se apresentar, e de seu filho Benjamim, o qual nunca tinha visto antes, e que lhe traz duvidas sobre a sua sexualidade; Felicia (ou Adam) parte para o interior em busca de realizar um suposto sonho de subir o Cânion do Rei (famosa paisagem do Outback australiano) vestido como uma Drag Queen em um vestido de lantejoulas, salto alto e tiara, entretanto, no decorrer do filme percebemos que o que o motiva é o sentimento de revolta pela sociedade em que vive, principalmente em relação aos homens, já que, quando criança, sofrera uma tentativa de abuso sexual; já Bernardet, a mais velha e centrada das três Drags, após a morte de seu companheiro Trumpet, busca uma fuga do ambiente onde vive e aceita o convite de Mitzi de acompanhá-lo na viagem para um novo show.

É interessante sinalizar que Corrigan também classificava que o road movie surgiu em um período no qual – após duas guerras mundiais, a revolução cultural e a liberação sexual feminina e dos gays – a juventude masculina se encontrou, sem a mesma base da figura masculina da lei, através da pessoa do pai (como coloca Freud em sua teoria Edipiana);  a geração anterior teve, portanto, muito de seus personagens homens  guiados apenas pela perspectiva de encontrar o prazer representados como parias da sociedade, vagabundos, bandidos, drogados etc. No caso de Pricilla, os personagens principais estão fora do que é convencional na sociedade pois são drag queens. Atualmente, a comunidade homossexual conseguiu muitos direitos e reconhecimento dentro da sociedade “tradicional”, contudo, como travestis, performers exibicionistas, as personagens se colocam como marginais, por estarem a margem da sociedade.

Mesmo que a figura da travesti tenha perdido um pouco de sua conotação negativa, com personalidades populares como a performer brasileira Vera Verão, seu visual escandaloso ainda gera revolta pela parte mais conservadora da sociedade. No filme, isso é sinalizado no constante preconceito que atinge as personagens durante a viagem, desde uma situação extrema de violência homofóbica, quando Adam apanha de um grupo de caminhoneiros ao sair travestido em uma das cidades em que o grupo para, até  a simples falta de aceitação da maioria dos públicos os quais o grupo se apresenta. Aliás, o fato de o grupo ser performista e de haver cenas com platéia acarreta um efeito metafórico interessante no filme.

Em Pricila, a figura masculina não é apenas desestruturada por suas crises, mas também busca uma transformação na qual a figura projetada deixa de ser a masculina e passa a ser outra. Caso as personagens principais fossem travestis que mudassem de sexo em busca da perfeita mudança para a figura feminina, talvez não houvesse tanto choque em relação ao olhar do sujeito masculino acompanhado tanto diegeticamente pela platéia, como o não diegético que é o olhar da câmera, logo o do espectador.

“(…) a figura masculina não pode suportar o peso da objetificação sexual. O homem hesita em olhar para seu semelhante exibicionista.” (MULVEY; 1983, pág. 445)

Contudo o fato de elas serem drag queens, há uma deformação no gênero masculino e feminino, pois não são nem homens, nem mulheres. Esse hibridismo, associado ao caráter radical da imagem projetada por suas roupas coloridas e com plumas, lantejoulas e outro acessórios, juntamente com a presença indissociável do falo do pênis masculino, gera duas respostas: primeiro a da repulsa, por parte de uma camada da sociedade, a mais conservadora e tradicional, que corresponde à grande maioria das platéias e nós, espectadores, em um primeiro momento, e a outra é a do deslumbramento devido ao exotismo da figura. Isso pode ter uma conotação negativa ou positiva, no filme é mostrado de forma positiva, através da performance do trio com a musica I Will Survive, da cantora Gloria Gaynor, para um grupo de aborígines no meio do deserto australianos. Os aborígines, por estarem isentos do preconceito que carrega o olhar da maioria das pessoas da sociedade civilizada, conseguem admirar o espetáculo proporcionado pelas drags usando como referência apenas a animação proporcionada pela música e pela irreverência de seu vestuário e coreografia. Nós, por outro lado, só passamos a simpatizar com as personagens, não através do reconhecimento (ou sim em determinados casos), porém, particularmente, após as personagens passarem por situações dramáticas as quais as humanizam, dando significado a emotividade intrínseca a performance que realizam.

Novas representações femininas

Ainda dentro do texto de Laura Mulvey, ela disserta, utilizando da psicanálise e de suas próprias impressões, sobre quais seriam as representações femininas dentro da cultura machista.

“ Para o sistema, já existe uma idéia de mulher como eterna vítima: é sua carência que produz o falo como presença simbólica; seu desejo é compensar a falta que ele significa. (…) A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado.” (MULVEY; 1983, pág.439)

Ou seja, a mulher está caracterizada como uma figura frágil, dependente, submissa e que serve como objeto de satisfação de desejos masculinos, sejam eles sexuais ou não. Tudo isso por uma suposta superioridade colocada sobre o homem pela presença do falo. Psicologicamente, a ausência do falo criaria estas características na garota devido a sua dissociação com a figura do pai e identificação com a figura da mãe.

No cinema, através da Voyerismo e da nossa tendência de criação de imagens que proporcionam a identificação do ego nas imagens antropomórficas projetadas na tela, a figura masculina é predominante dentro do olhar subjetivo criado pelas personagens e pela câmera. Entretanto Mulvey coloca que mesmo assim a figura feminina é quase unânime dentro do cinema clássico.

“A presença da mulher é um elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento da história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica.” (MULVEY; 1983, pág.444)

A mulher, segundo Mulvey, além de ser um elemento dependente do personagem masculino dentro da narrativa, é uma ferramenta de parada do desenvolvimento da história para a “contemplação erótica”.

David Rodowick, como diz Robert Stam em seu texto “A Intervenção Feminista”, comentou, em uma edição especial da revista Câmera Obscura (1989), que a teoria de Mulvey era determinista, eliminava o espaço da variabilidade histórica e era “(…) insensível às várias formas pelas quais as mulheres subvertem, redirecionam ou sabotam o olhar masculino.” (STAM; 2003, pág.197). Esta crítica possui certa lógica ao observarmos diversas modalidades de representação feminina por meio da história do cinema, e sua atuação dentro da narrativa apresentada. A personagem de Janet Gaynor no filme Aurora (Sunrise, 1927), de F.W. Murnau, representa a figura frágil e indefesa da donzela que remete as novelas cavalheirísticas e românticas (principais inspirações do cinema expressionista o qual este filme tem grandes referências), ela percorre de maneira não passiva por meio da narrativa, porém é dependente da figura do marido psicopata, interpretado por George O’Brien. Já a personagem “Sugar”, Kane Kowalczyk, interpretada por Marilyn Monroe em Quanto mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959), de Billy Wilder, representa um símbolo sexual, um objeto de desejo tanto dos personagens masculinos do filme, como para o próprio espectador, através da colocação dos planos e da montagem da narrativa; porém ela possui certa autonomia das figuras masculinas no filme, possuindo seu próprio poder sobre elas. Outras teóricas, como Pam Cook e Claire Johnson, entretanto, vão sinalizar que a presença de personagens femininas como protagonistas, ou com grande importância dentro da trama, podem possuir uma força mais aparente do que real (MULVEY; 1983, pág.445). Ou seja, elas podem ter o foco da narrativa centrado nelas, porém a força que desenvolve a narrativa é um narrador (masculino), seja ele em terceira pessoa com uma voz over ou como uma instância narrativa, através do sujeito, do olhar da câmera, representação da visão do diretor.

Nesse sentido, coloco, como exemplo, o filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, do francês Jean-Pierre Jeunet, para minha argumentação que, em muitos casos, dentro do cinema contemporâneo, existem protagonistas mulheres com uma força dentro da narrativa maior do que como era apresentado anteriormente. Claro que existem alguns poréns: O filme não é norte-americano e nem é construído dentro dos mesmos códigos que o caracterizam; o filme foi escrito e dirigido por homens e possui uma narração masculina em terceira pessoa. Contudo, ainda podemos falar que ela (a protagonista) é a principal responsável pelo desenvolvimento da história e a principal figura de reconhecimento colocado na tela.

O narrador de Amélie é onisciente e tem sua onisciência denunciada pela inventiva forma como relata fatos completamente desligados com as ações da trama principal, mas que ocorrem simultaneamente na cidade de Paris, onde se passa a história. Nos primeiros 20 minutos do filme, ele apresenta a trama principal da história e todos os personagens que irão colaborar com ela e com as outras que virão. A história começa com uma grande apresentação da vida Amélie e todas as pessoas que fazem parte dela, desde sua infância até os seus 28 anos, quando um fato surpreendente muda sua vida. Após receber a notícia de que Lady Diana morreu, em agosto de 1997, a personagem descobre um tesouro escondido dentro do banheiro de seu apartamento. Uma caixinha cheia de pertences de um garoto que teria vivido naquele local há 40 anos atrás. Coloca, então, como seu objetivo, tentar encontrar o dono da caixinha, caso conseguisse achá-lo e fazê-lo feliz por isso, passaria a ter como principal objetivo em sua vida, arrumar os pequenos, porém importantes, problemas na vida dos outros. A partir daí uma série de fatos vão se desenrolando para que o primeiro conflito seja solucionado, o dono da caixinha ser encontrado, para que desta forma outros possam se desenvolver, como por exemplo, o surgimento de um rapaz na vida de Amélie por quem ela vai se apaixonar.

Alguns dos fatos que desenrolam a narrativa são colocados no roteiro como acasos, verdadeiros Deus ex Machina que serão importantes para o desenvolvimento da história. Porém as principais decisões a serem tomadas, para que haja a ação e a narrativa progrida, devem partir da personagem principal. Dois momentos que exemplificam essas situações são: quando Amélie, após visitar uma série de pessoas que possuíam o mesmo nome do antigo morador de seu apartamento, pensa em desistir da busca ao topar com um deles morto. Porém, como que em um milagre, o vizinho de condomínio de Amélie, Sr. Dufayel, o homem de vidro, passa para ela o nome correto do antigo morador possibilitando-a, assim, de encontrá-lo. No final do filme, quando Amélie, sofrendo por pensar que tinha perdido seu amado, recebe sua visita. Após um momento de hesitação e desencontro, ela volta a correr atrás dele encontrando-o na soleira de sua porta. Pode parecer que o desfecho da história se dá por meio de uma atitude do rapaz, que também está interessado na protagonista, porém, a decisão final de ir perseguir sua paixão e então terminar com o famoso “felizes para sempre” cabe a personagem feminina e não a masculina.

Outra questão digna de nota é que um dos motivos desta pró atividade feminina dentro do filme é que a personagem de Amélie não é um personagem feminino raso, como a maioria dos seus exemplares dentro do cinema clássico, como diria Laura Mulvey, mas sim uma personagem com maior profundidade, complexidade e particularidades. Isso pode ser observado durante toda sua apresentação, na qual são apresentados os prazeres da protagonista. Cada um mais incomum que o outro para que qualquer generalização fosse quebrada, Amélie Poulain é uma personagem única e, portanto, possui força para produzir crises e ações de relevância para o desenvolvimento da história. É importante também dizer que a protagonista não é colocada como um objeto de desejo sexual masculino, não em um primeiro momento. Mesmo apresentando-a como uma mulher que já praticou sexo, ela é colocada durante a maior parte do filme como uma pessoa “dessexualizada”, feminina, porém sem conotação erótica. Fato que no filme é ironizado pelas diversas citações ao erótico que são colocadas em situações independentes do desenvolvimento da trama, como por exemplo, a contagem de casais que estão tendo orgasmo no mesmo instante feita por Amélie como se fosse um jogo infantil, ou então o fato de que um dos empregos do pretendente de Amélie é de vendedor em uma loja de sexshop onde ele convive com mulheres muito mais atraentes sexualmente do que a própria Amélie e isso não parece sortir qualquer tipo de efeito nele.

Essa assexualidade dos dois personagem só se interrompe no final do filme, quando o casal consuma o inicio do relacionamento com o ato sexual. Devemos lembrar, porém que este se trata de um filme romântico e fantástico.

Minhas argumentações até o momento, tem se pautado em exemplos de filmes fora da produção estadunidense. Se observarmos o mercado norte americano atual, as produções hollywoodianas continuam a ser filmes dentro de gêneros, buscando, na maioria das vezes, apenas a resposta de mercado. Possuem, ainda hoje, em sua grande maioria, uma visão masculina predominante, tanto dentro da narrativa, como por parte do sujeito observador da instância narrativa. Um exemplo contemporâneo interessante são os filme da saga Crepúsculo. O primeiro filme da série foi uma produção independente, que teve distribuição da jovem produtora e distribuidora, a Summit Entretainment, que foi aberta por uma das antigas sócias do grupo Universal Pictures[5]. Para o filme, foi contratada a diretora Catherine Hardwicke, conhecida pelos filmes Aos Treze (Thirteen, 2003) e Os Reis de Dogtown (Lords of Dogtown, 2005), ambos pertencentes ao chamado cinema alternativo independente americano. Como Laura Mulvey coloca em seu texto:

“Não Importa o quanto irônico e autoconsciente seja o cinema de Hollywood, pois sempre se restringirá a uma mise-en-scène formal que reflete uma concepção ideológica dominante do cinema. O cinema alternativo por outro lado cria um espaço para o aparecimento de um outro cinema, radical, tanto num sentido político quanto estético e que desafia os preconceitos básicos do cinema dominante”  (MULVEY;1983, pág.439)

Crepúsculo não possui nenhum elemento radical tanto político quanto estético, porém toma liberdade de contar a história de um romance fantástico entre uma garota e um vampiro, através de uma perspectiva essencialmente feminina; tanto por parte da narração que, no caso, é em primeira pessoa da personagem principal, quanto pelo fato da câmera apenas parar de acompanhar a protagonista quando ela se encontra semi-inconsciente em uma das seqüências finais do filme.

Entretanto mesmo que o ponto de vista seja predominante feminino em Crepúsculo (já que o filme foi escrito e dirigido por mulheres, inspirado em uma obra literária escrita por uma mulher), a trama como um todo e a construção das personagens está baseada em diversos conceitos que podem ser chamados de machistas. O maior objeto de desejo erotizado no filme não é a personagem principal Isabella Swan, mas sim o vampiro Edward Cullen, tendo ele no inicio da história uma ambigüidade fetichista entre o vilão e o herói, porém colocado definitivamente como herói no final da narrativa. A partir do momento em que ele se assume como um vampiro e o casal passa  a ater um relacionamento, quase todas as atitudes da protagonistas são pautadas em relação ao domínio do outro personagem. Não há mais vontade própria, amor próprio ou senso de individualidade, todo o universo da personagem passa a girar em torno da figura maior de desejo que é o vampiro. Acabando, assim, com o ideal de quebra de paradigmas dominantes, no caso os machistas, no filme de Catherine Hardwicke. E isso só piora nas sequências da saga, que após ter faturado mais de 350 milhões de dólares em lucros, foi assumida de vez pela Summit, porém, agora seguindo os moldes hollywoodianos de produção. Contratando novos profissionais – homens – para produção em série e com orçamentos astronômicos de uma saga que virou uma febre e criou um subgênero dentro do mercado.

Contudo, o cinema americano consegue sim sair desta visão predominantemente masculina em seus filmes. E os exemplos se encontram de maneira mais expressiva no cinema independente, de circuito alternativo. O filme As Virgens Suicidas é um belo exemplo disso. Dirigido por Sofia Coppola, filha do consagrado cineasta Francis Ford Coppola, o filme teve produção de cunho independente, coordenado principalmente pelo pai da cineasta. O filme conta a história das irmãs Lisbon (Cecília, Lux, Bonnie, Therese e Mary), que moram no subúrbio da cidade de Grosse Point, na Michigan de 1974. Os pais das garotas são autoritários e super-protetores, acabando por isolá-las do convívio social. Quando a mais nova das irmãs, Cecília, tenta cometer suicídio, os pais se preocupam e por indicação dos médicos psiquiatras tentam, de maneira desajeitada, trazer mais pessoas, principalmente garotos, para dentro de sua casa. Dessa forma começa a obsessão dos garotos do bairro pelas irmãs. Tragicamente durante uma festa, e a única dada pela família Lisbon, na tentativa de reanimar Cecília, a presença daquelas pessoas desconhecidas, e a falsa tentativa de readaptação social imposta pelos pais, acaba afetando tanto a garotinha que ela tenta novamente o suicídio, desta vez conseguindo-o. A partir dai, o senhor e a senhora Lisbon acabam se fechando ainda mais dentro de sua própria casa, devido ao assédio por parte dos vizinhos e da impressa.  Entretanto após a volta as aulas, a vida das garotas vai mudando de maneira drástica ao se verem cada vez mais presas a super-proteção dos pais. Lux em um ato de rebeldia, começa um namoro escondido com um bad boy da escola, que após transar com ela em um baile do colégio, a deixa sem maiores explicações. A mãe, revoltada com a situação após descobrir o fato, as tira da escola e as trancafia dentro de casa. As garotas, então, tem como única fuga de dentro da sua clausura a comunicação com os garotos do bairro por meio de sinais de luz e músicas que compartilham por um telefone, mostrando suas emoções. Obcecados por elas, os garotos, em uma certa noite, após se comunicarem com as irmãs, decidem ir resgatá-las de dentro da casa. Ao conseguirem entrar, acabam encontrando os corpos de todas as irmãs mortas, um suicídio conjunto após um possível pacto realizado por elas depois de meses de confinamento. O roteiro escrito por Sofia, em adaptação ao romance literário de Jeffrey Eugenides, possui tanta delicadeza e sutileza na apresentação de seus temas, que a crítica ácida a uma sociedade patriarcal conservadora, contida nele, acaba quase passando despercebida.             O filme possui duas forças de ação as quais agem sobre as personagens das garotas Lisbon. A primeira é a influência causada pelos pais, mais especificamente pela mãe das garotas, ao serem super-protetores. As garotas por conta de sua incrível beleza são facilmente colocadas como símbolos de desejo por parte da comunidade masculina, portanto eles, os pais, exigem o comedimento das garotas, como na cena em que o senhor Lisbon convida um garoto da escola a jantar em sua casa e a senhora  Lisbon pede a Lux que se vista mais apropriadamente à mesa, ou seja, com roupas que cubram mais seu corpo. Essa atitude é a principal causadora de toda a rebeldia por parte da personagem Lux, que dentre as irmãs é a que mais tenta sair destas restrições colocadas pelos pais, sendo exibicionista e cheia de luxuria (como sugere seu nome). Características estas que acabam afetando sua vida negativamente como no caso de seu namorado secreto.

A outra força que age é a da obsessão do olhar masculino dado pelos garotos do bairro, em modelo contrário ao do pai, o olhar deles é inferiorizado e as garotas são tidas como um mistério que eles nunca poderão resolver. Em um trecho icônico do filme, após conseguirem o diário de Cecília, pouco depois de seu suicídio, os garotos tentam desvendar o grande mistério e fascinação que as garotas representam para eles, demarcando bem o lugar deles em relação a elas através da fala:

“Então nós começamos a aprender sobre suas vidas… vindo a tornar em memórias coletivas de momentos que nunca vivemos. Sentimos o aprisionamento de ser uma garota, o jeito que isso fez de sua mente ativa, sonhadora, como quando ela aprendeu que as cores se combinam… nós sabíamos que as meninas eram na verdade, mulheres. Que entendiam o amor e até a morte. E o nosso trabalho era somente criar a impressão do que parecia fasciná-las. Nós soubemos que elas sabiam tudo sobre nós. E que de forma alguma conseguíamos as compreender.” (As Virgens Suicidas; 1999, 25:30-26:04)

Dessa forma, o filme empreende bem dois pensamentos feministas. Primeiro, a crítica a figura autoritária do pai e da mãe, levando em consideração seu apoio à ideologia rígida, conservadora e preconceituosa em que vivem. Segundo a colocação da figura feminina, não simplesmente como um objeto sexual de contemplação, mas um ser complexo a ser respeitado e admirado. É curioso o fato de colocarem como portadores desta visão os adolescentes. A justificativa psicanalítica de que o homem se impõem sobre a figura da mulher, como um superior, no intento de sanar um vestígio do medo da castração através da constatação de falta de falo da mãe, se emprega aqui de maneira diferenciada. Os garotos temem as garotas, mas por elas simbolizarem uma figura de mistério e admiração para eles, quase como a figura da mãe. No sentido semiótico, ou do sujeito, o espectador é impelido a acompanhar esta visão dos adolescentes do bairro, primeiro por conta da narração, segundo pela construção do ponto de vista a partir deles.

Logo, assim como os garotos, não conseguimos entender completamente o porquê das garotas terem cometido um suicídio. O que é colocado, após a leitura do diário, e a apresentação de outras situações, é que, em ultima instância, as garotas sabiam que, se não tinham o poder de decisão sobre as coisas que as cercavam, pelo menos possuíam o controle sobre seus corpos, tanto no ato sexual, como é apresentado por Lux, quanto no ato mórbido do suicídio, que é a fuga extrema do controle paternalista. Uma visão tanto estética quanto politicamente radical, que é expressa como uma característica do cinema alternativo.

Conclusão

Através dos exemplos dos três filmes propostos e os apontamentos de trechos escolhidos de textos trabalhados em aula durante a matéria de Teoria do Audiovisual II, acredito que podemos observar que muitos dos pontos colocados por Laura Mulvey como indicadores da visão machista dentro do cinema clássico Hollywoodiano foram abandonados ou desestruturados dentro da cinematografia contemporânea mundial.

A desconstrução do sujeito masculino colocado em Pricilla, A Rainha do Deserto; o emprego de um novo tipo de figura feminina, ativa e predominante, dentro da narrativa fílmica de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain; e a construção de um outro olhar sobre a figura feminina, assim como a crítica a sociedade paternalista em As Virgens Suicidas servem para indicar que no cinema, que é tido como uma janela cultural da sociedade em que vivemos, atual podemos observar que alguns dos intentos da comunidade feminista surgida no fim da década de 60 estão sendo atingidos.

* Gabriel Ribeiro Alfredo é graduando em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos

Referências Bibliográficas

CORRIGAN, Timothy. “Genre, Gender and Hysteria: The Road Movie in Out Space” in Cinema without walls: movies and culture after Vietnam. Londres, Routledg, 1991, pp. 137-154.

MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo, Papirus, 2007, pp.43-55.

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in Xavier, Ismail(org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1983, pp. 435-453.

STAM, Robert. “A intervenção Feminista” e “Da lingüística à psicanálise” in Introdução à teoria do cinema. Campinas, Papirus, 2003, pp.192-201 e 183-19.

Referências Fílmicas

Aurora. Sunrise: A Song of Two Humans. F.W.Murnau. 1927. Fox Film Corporation.

Aos Trezes. Thirteen. Catherine Hardwicke. 2003. Jeffrey Levy-Hinte e Micheal London.

Crepúsculo. Twilight. Catherine Hardwicke. 2008. Mark Morgan e Greg Mooradian

O Fabuloso Destino de Amélie Paulin. Le fabuleux destin d’Amélie Poulain. Jean-Pierre Jeunet. 2001.  Jean- Marc Deschamp, Claude Ossard, Victoires Production, Tapioca Films.

Quanto Mais Quente Melhor. Some like it hot. Billy Wilder. 1959. Billy Wilder e United Artist Corporation.

Os Reis de Dogtown. Lords of Dogtown. Catherine Hardwicke. 2005. John Linson.

Pricilla, A Rainha do Deserto. The adventures of Pricilla, the queen of the desert. Stephan Elliot. 1994. Michael Hamlyn, Al Clark e Gramercy Pictures.

As Virgens Suicidas. The virgin suicides. Sofia Coppola. 1999. Francis Ford Coppola.


[1] quando diversas manifestações populares (ocorridas em várias partes do mundo, mas principalmente na França), de estudantes, intelectuais e artistas, mudaram a forma de se pensar a cultura ocidenta

[2] Louis Althusser foi um filósofo francês que ficou conhecido por sua teoria dos Aparelhos ideológicos do Estado, onde constrói um pensamento sobre a sociedade a partir do marxismo; Jacques Lacan foi um psicanalista francês que trabalhou, de maneira diferente, o conceito do inconsciente apresentado por Freud, construindo a celebre teoria da fase do espelho, entre outras, pautadas na significação. Ferdinand Saussure foi um filósofo Suíço, pai da linguística moderna baseada no conceito de significante e significado. Os três estão ligados através do movimento conhecido como Estruturalista.

[3] A segunda geração de teóricas do feminismo é composto por pensadoras como Laura Mulvey, Pam Cook, Rosalin Coward, Jaqueline Rose, Kaja Silverman, Mary ann Doane, Judith Mayne, Sandy Flitterman-Lewis, Elizabeth Cowie, Gertrud Koch, Teresa Laurents e muitas outras, que criticavam o primeiro feminismo que pautava suas questões dentro do conceito biológico de masculino e feminino, e não o social. (STAM; 2003, pág. 195)

[4] Quando, em nossa infância, percebemos que somos um ser diferenciado daqueles os quais observamos, e não um reflexo como de um espelho.

[5] Todas informações tiradas do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summit_Entertainment no dia 13/06/2011

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