Fronteiras e relações intersubjetivas no documentário contemporâneo

Andréa França é doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ. Professora da graduação e do Programa de Pós-graduação do Departamento de Comunicação da PUC/RJ. Autora de Cinema em Azul, Branco e Vermelho – a trilogia de Kieslowski (Sette Letras, 1996), de Terras e fronteiras no Cinema político contemporâneo (Faperj, 2003) e organizadora, junto com Denilson Lopes (ECO/UFRJ), do livro Cinema, globalização e interculturalidade (ed. Argos, no prelo). É Vice-presidente da SOCINE – Sociedade brasileira de Estudos de cinema e audiovisual.

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A partir da década de 90, é freqüente no nosso cinema a presença do elemento estrangeiro como uma das formas de enunciação de identidade e alteridade: Os matadores (Beto Brant, 1994) e Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995); Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1997), em que existe a presença do americano e da filha presos em casa pelos garotos da favela; O que é isso companheiro? (Bruno Barreto, 1997), no qual o embaixador americano é seqüestrado pelos jovens revolucionários; A grande arte (Walter Salles, 1992), em que um fotógrafo americano, decidido a se vingar de bandidos, inicia uma trajetória que começa no Rio de Janeiro e segue até os altiplanos bolivianos; Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), no qual o libanês se junta ao bando de Lampião para documentar um pouco do seu cotidiano; Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1997), em que a cabeleireira paulista, moradora do bairro da Mooca, economiza durante anos para ir morar em Miami, sonhando em estudar e mudar de vida.

Nestes filmes, o elemento estrangeiro está frequentemente encarnado seja em um personagem, seja em um lugar distante, seja em uma cultura ou língua estranhas, tornando-se, assim, altamente desejado ou, muito pelo contrário, vilipendiado e repudiado. É que a fronteira nessas narrativas é o traço que separa a imagem de si e a imagem do outro, permitindo o auto-reconhecimento e a construção do sentimento daquilo que é comum e daquilo que não o é. O jornalista libanês, em Baile Perfumado, se integra ao bando de Lampião e Maria Bonita movido não só pela sobrevivência econômica (intuição da fama e do dinheiro que as imagens dos cangaceiros poderiam render), mas também pela curiosidade e pela sedução da diferença (da língua, dos hábitos, dos valores, das vestimentas). Em Como nascem os anjos, a tensão e a violência inerentes à situação de seqüestro dos americanos (pai e filha) pelos garotos da favela são atravessadas ao mesmo tempo pelo fascínio de Branquinha pela estrangeira – o cabelo louro, os olhos azuis, o corpo de Barbie – de modo a demarcar nitidamente o lugar de pertencimento de cada um.

Neste artigo gostaria de analisar brevemente os momentos, dentro do cinema documentário, em que podemos perceber o abandono de uma perspectiva mais representativa das contradições do povo na sua relação com o outro, presente nos filmes citados, para uma outra dimensão, mais ambígua, onde o que é da ordem do singular, dos pequenos acontecimentos, se destaca porque no centro dessas representações passam a estar em cena as relações intersubjetivas (entre diretor, ator e personagem). E é no campo do documentário, a meu ver, que essas transformações são mais evidentes.

Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2002), Do outro Lado do rio (Lucas Bambozzi, 2004), Serras da Desordem (Andreas Tonacci, 2006), Preto e Branco (Carlos Nader, 2004), para citar alguns, são filmes que têm uma contribuição a dar a essa discussão pois suas imagens partem de outros referenciais para pensar o tema da fronteira. Seus personagens não suscitam piedade ou compaixão (identidade) e nem o sentimento do extravagante ou do “fantástico” (alteridade); pelo contrário, são construídos a partir de enfrentamentos, imprevisibilidade, negociação, já que no centro dessas representações existem seres singulares, relações intersubjetivas, que implicam lacunas e vazios. Como se o documentário recente buscasse, ao contrário das grandes sínteses ou das análises conjunturais (procedimentos tão caros à produção televisiva e ao cinema nas suas formas dominantes), as singularidades e a experiência do homem ordinário que pode ser um indígena na sua relação com o branco (Serras da Desordem), uma brasileira que deseja a qualquer custo casar com um francês de olhos azuis (Do Outro lado do rio), ou ainda uma dançarina brasileira que foi para Holanda viver com um nativo (Preto e Branco).

Se olharmos a história do documentário moderno brasileiro do ponto de vista das representações da fronteira, veremos que alguns filmes à margem da produção mais corrente, entre o final dos anos 60 e o início dos 70, já são marcados por um desejo de renovação de linguagem, pela recusa do que seria “representativo” em prol de propostas mais desconstrutivas e experimentais: Câncer (Glauber Rocha, 1972), que dilui as fronteiras entre a favela e o asfalto, Congo (Arthur Omar, 1972), que explode com os discursos sobre cultura popular e erudita, Di/Glauber (Glauber Rocha, 1977), os filmes de Andrea Tonacci junto aos índios. Obras que combinam procedimentos híbridos, vindos da ficção, da fabulação, do campo documental e, nas quais a intervenção explícita do cineasta na relação com os objetos é crucial. Como se esses cineastas descobrissem que não são os “objetos” propriamente que importam (o favelado, o folclore popular, o enterro do artista), mas a relação entre eles, isto é, a montagem concebida como intervenção, atração e provocação.

Alguns documentários recentes ao trabalharem com imagens de desterritorialização e de fronteiras, têm resgatado certas continuidades na relação com o cinema dos anos 70 na ênfase que dão à fragilidade da ponte com o mundo do outro, à precariedade do que se pretende “representativo”, à exposição das condições de produção e do que está em jogo com suas imagens. Serras da Desordem, por exemplo, é um filme que traz muitas questões pertinentes ao tema tratado aqui.

Andrea Tonacci reencena, refaz, reconstitui a trajetória errante de um índio chamado Carapiru, sobrevivente de um massacre de fazendeiros que aniquilou toda sua aldeia em 1978, no interior do estado do Maranhão. O índio escapa e passa a perambular pelo Brasil adentro até ser acolhido, dez anos depois, por uma família de camponeses no interior da Bahia, a uma distância de mais de dois mil quilômetros da aldeia incendiada. Tempos depois, o sertanista Sydnei Possuelo fica a par da situação e faz as primeiras tentativas de aproximação com o índio. Levado finalmente a Brasília, é identificado como um remanescente da tribo Guajá. Essa confirmação é feita por um jovem índio intérprete, da mesma etnia, resgatado também há mais de dez anos pela FUNAI. No encontro dos dois, a surpresa: eles se reconhecem como pai e filho, que ambos julgavam assassinados durante o massacre da aldeia.

Se essa história fosse inventada por um roteirista, seja de cinema ou de televisão, diríamos que seria excessivamente melodramática e pouco provável. De fato, na época em que se promoveu o encontro de Carapiru com o jovem índio intérprete, o programa Globo Repórter da Rede Globo de Televisão registrou a cena, relatando em cadeia nacional o ocorrido e destacando especialmente sua dimensão fantástica e inusitada: a longa, solitária errância do índio e o reencontro inesperado com o filho dez anos depois, a “volta” para a aldeia como o final do périplo. Serras da Desordem, porém, se interessa menos pelo reencontro em si, embora o mesmo esteja lá presente nestas imagens de arquivo de 1988, e mais pelo que ocorreu longe das câmeras televisivas, discreta e silenciosamente, antes e depois do encontro.

E como capturar acontecimentos trágicos que foram desencarnados do corpo e silenciados da fala? Tonacci inventa procedimentos e estratégias técnicas e estéticas para dar conta dessa experiência traumática: mistura indistintamente reconstituição, observação, reencenação, fabulação, interação, como se a junção destes diferentes procedimentos fílmicos buscasse suprir a opacidade do corpo e da voz do indígena. Porque Carapiru fala com a equipe e com os personagens ao longo do filme, mas não entendemos uma só palavra do que ele diz. Como se vidas “residuais” só pudessem ser representadas sob a condição de instalarem um vazio central, uma lacuna, que o retorno pela imagem do cinema deve exibir. Afinal, o que significa um índio sem aldeia, sem fala, sem memória? Onde estou no olhar deste indígena? Quais são os possíveis procedimentos de linguagem e abordagens para além dos pares dicotômicos “nós” (brancos) e “eles” (índios)?

Questões que são propostas de diferentes modos em filmes como Terra Vermelha (Marco Bechis, 2008), 500 Almas (Joel Pizzini, 2004), e o Projeto da Ong Vídeo nas Aldeias. Filmes que misturam o documental e o ficcional para falar de povos em ruína, de exploração econômica e sexual, da relação complexa e ambígua entre o “branco” e o “índio”. Em Serras da Desordem, assim como Terra Vermelha, temos índios errantes, sem memória, sem voz, sem aldeia, no qual o suicídio entre os jovens aparece como uma prática comum (Terra Vermelha); em 500 Almas, temos o imaginário da aldeia, as vozes, a memória, mas não existe o índio. A defasagem entre o “indígena” e a “aldeia”, nestes filmes, reitera a tensão entre presente e passado, imagem e mundo. Um Projeto como Vídeo nas Aldeias, coordenado por Vincent Carelli e Mari Corrêa, já busca fazer do vídeo um instrumento de reconfiguração de forças e de produção de sentido para os próprios indígenas, visto que seu objetivo é formar gerações de realizadores a partir de uma espécie de auto-etnografia ou auto-representação.

“A gente fala hoje dos índios porque eles sobreviveram, mas na verdade qualquer encontro como este, entre culturas que nunca se viram, nunca se tocaram, tem um processo de reconhecimento – ou desconhecimento – do outro, de mútua e imediata interferência de um no outro. Esse me parece ser um movimento básico, quase embrionário, espasmódico, celular, da humanidade, e não apenas uma característica da nossa expansão cultural tecnológica em relação aos índios. Um índio pode ter a mesma coisa em relação a outro índio, como também pode ter em relação a nós. Quando existe um contato que não é na marra, que não é pela força, esse contato eventualmente também pode ser um desejo do outro, e não só nosso em encontrá-lo” (Tonacci em Caetano, 2008:97).

Tal é a fatalidade do cinema documentário, diz Tonacci, fazer do mundo uma cena onde nada possa ser verdadeiramente indiferente a nós. Documental, o cinema se deixa levar pela sua inclinação em transformar o que é naquilo que deve ser. Documental, o cinema não consegue suportar por um longo tempo a idéia da indiferença, de uma situação e de um ser indiferentes. Como coloca Tonacci, é necessário ao cinema documentário que um olhar tenha uma direção, um sentido; que dois olhares não somente se procurem, mas que se cruzem e se desejem; intensidade, implicação no mundo, inscrever e jogar com o desejo do outro, de ambos os lados da câmera.

O início de Serras da Desordem mostra um índio sozinho na floresta preparando uma fogueira. O tempo da cena é longo, pois se trata de mostrar uma operação lenta, silenciosa, um saber erigido e conservado ao longo do tempo. Nos trinta minutos iniciais vemos a aldeia, os índios nas redes, as crianças brincando e outras atividades que se desenrolam “independentes” da câmera; a mise-en-scène revela a cumplicidade do cineasta com o grupo, o não constrangimento em participar do jogo teatral que é proposto, a dimensão lúdica e desejante da encenação coletiva. Cinema de observação e mise-en-scène que remete imediatamente à “origem” do documentário com o clássico Nanook, o esquimó, filme de Robert Flaherty (1922).

Em Nanook, também encontramos o interesse em captar a vida, os hábitos e as tradições primitivas, o embate com a natureza de onde se extrai um saber e um fazer e, ainda, o longo e intenso contato do cineasta com o grupo filmado. Mas em Flaherty, as cartelas explicativas situam o espectador logo nos primeiros minutos – a luta pela sobrevivência dos esquimós em meio ao frio – enquanto em Tonacci há o desconforto de não ser possível julgar o que se vê (reconstituição, observação, encenação?).

Serras da Desordem é um documentário que chacoalha o espectador do lugar habitual diante das imagens midiáticas cotidianas. Não lhe é possível julgar, saber mais, satisfazer seus desejos voyeuristas. O filme trava um embate com a produção audiovisual à medida que cada imagem sua ativa simultaneamente no espectador a dúvida e a crença, o distanciamento e a identificação, a impressão de realidade e a certeza do artifício. Afinal, por que o índio não aprendeu a falar português? Como foi possível viver durante dez anos errando solitário pelo interior do país? O que ele sentiu? E depois, como foi ser acolhido por uma família de camponeses? O que significou o reencontro com o filho para ele? E a volta para a aldeia, depois de tanto tempo vivendo com o homem branco, foi boa? Para nenhuma destas perguntas há respostas. O que existe é a experiência radical do silêncio, da voz que não comunica e da opacidade do corpo indígena. Não é à toa que nas imagens finais do documentário vemos a mesma cena inicial em que Carapiru prepara demoradamente o fogo, só que agora Andrea Tonacci e equipe aparecem dentro do quadro, orientando, construindo a mise-em-scène, dirigindo o índio.

Se o mundo das imagens midiáticas nos parece frequentemente factual, acabado, desprovido de ambigüidades, o mundo em Serras da Desordem se mostra como fruto de escolhas, articulações, reencenações, um mundo, portanto, de acontecimentos atualizáveis, possíveis, mesmo os mais terríveis. Tonacci instila mais dúvidas do que certezas. Afinal, não há legendas para as falas de Carapiru e, pior, todos que conviveram com ele (camponeses, indigenistas, jornalistas) o tratam de forma infantil, paternal, ingênua – e isso também nas reconstituições, também na segunda vez.

Regiões e indivíduos expoliados de suas imagens, “perdedores”, são aqueles que mais precisam de imagens restauradoras, jamais pensadas, outras. Mas como reivindicar isso e fazer dissidência depois da generalização do cinema (hoje todos podem fazer filmes no celular, no computador, etc.), onde tudo foi, é e será filmado? Mais difícil ainda é pensar o que quer dizer esse “tudo”, nos lembra Jean-Louis Comolli. Certamente designa o que já está sob o efeito do cinema, sob o efeito do espetáculo, um mundo que o cinema e a televisão inventam diariamente, mundo de diferenças culturais evidentes, factuais e inevitáveis. Inventar outras relações com as formas midiáticas dominantes é hoje um desafio estético e político. Significa explorar aquilo que está freqüentemente no interior do visível, mas que não podemos ver; aquilo que não é fato consumado (a tragédia acabada), mas o acontecimento enquanto possibilidade sempre presente. Sim, tudo é possível, a infantilização do indígena dá provas da diferença. Sim, tudo é possível, mesmo o horror, já nos ensinava Hanna Arendt.

Bibliografia:

CAETANO, Daniel (org.) Serras da Desordem. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2008.

COMOLLI, Jean Louis. Ver e poder – cinema, televisão, ficção, documentário. BH: editora UFMG, 2008.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: editora 34, 1997.

FRANÇA, Andréa. “O cinema, seu duplo e o tribunal”, em Revista Famecos: mí­dia, cultura e tecnologia n. 36, Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação Social da PUC-RS. Disponível em http://revcom.portcom.intercom.org.br/index.php/famecos/article/viewFile/5476/4974.

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