O manguebeat cinematográfico de Amarelo Manga: energia e lama nas telas

Alexandre Figueirôa é doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Paris 3, Sorbonne Nouvelle; autor, entre outros, de Guel Arraes, um inventor no audiovisual brasileiro (CEPE, 2008), Cinema Novo: a onda do jovem cinema e sua recepção na França (Papirus, 2004), La vague du Cinema Novo em France fut-elle une invention de la critique? (Édittions L’Harmattan, 2001) e Cinema Pernambucano: uma história em ciclos (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000) É Professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco.

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O filme Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis, sintetiza em imagens algumas das premissas estéticas do manguebeat, movimento musical nascido no Recife, cujo início remonta ao ano de 1992. O movimento tem como ponto de partida o lançamento do manifesto “Caranguejos com Cérebro” e a explosão, em Pernambuco, das bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S.A., liderada por Fred Zeroquatro, um dos autores do manifesto junto com o jornalista Renato Lins (hoje alçado ao cargo de secretário de cultura do Recife, pelo novo prefeito João da Costa, do PT). Nos dez anos seguintes, uma série de manifestações musicais e de outras áreas culturais, no Recife, recebeu influências diretas ou indiretas das idéias estabelecidas pelo manifesto, cuja motivação central era injetar energia na lama, ou seja, preconizava para a cena cultural da cidade o reflexo da caótica realidade das ruas em constante mutação. Na manguetown [1], a beleza dos rios e das pontes deveria compor um cenário mais amplo, incluindo os becos sujos, bandidos, musas de biquíni, ônibus velhos e catadores de lixo. O manguebeat com sua parabólica fincada na lama enterrou os tempos pós-tropicalistas das ladeiras de Olinda (cujo símbolo era o compositor e cantor, Alceu Valença) e estabeleceu uma oposição à cultura armorial[2] (do “mestre” Ariano Suassuna), para dar espaço aos desajustados em festas em antigos bordéis e botecos de subúrbio, buscando as sonoridades do maracatu, do coco e da ciranda e mesclando-os ao punk e ao hip-hop.

Cláudio Assis acompanhou o movimento desde o seu nascedouro. Fez clipes para bandas de punk rock do Alto José do Pinho – uma área entre os inúmeros morros do populoso bairro de Casa Amarela e um dos ícones alçados à condição de Olimpo multicultural pela visibilidade midiática no refluxo da cena pós-mangue -; fez vídeos com artistas improvisados das ruas e incorporou um olhar singular sobre a cidade do Recife, por ele adotada, como espaço para viver, desde que largou Caruaru, localizada no agreste pernambucano. Para ver de olhos bem abertos Amarelo Manga é preciso conhecer profundamente a gênese deste Recife da tela, uma cidade mergulhada em contradições econômicas e sociais, apodrecendo em golfadas de provincianismo, arroubos de metrópole e sofrendo lentamente a deterioração de um desordenamento paisagístico e intestinal. Os “pitorescos” mocambos das narrativas do século passado, as paradisíacas águas cruzando a cidade, que adotou o emblemático título de Veneza Brasileira, foram transformados em uma mistura explosiva de miséria e lama que, aos poucos, foram devorando as entranhas de seus moradores: uns indiferentes e cegos ao mal que engendram sob os próprios pés; outros vítimas e cúmplices da desordem institucionalizada.

Apesar deste sentimento quase esquizofrênico que perpassa o seu caráter, os que vivem no Recife, todavia, tem um gosto estranho, uma maneira de encarar a existência que ainda não foi totalmente equacionado. Das teses sociológicas de Gilberto Freyre[3] ao experimentalismo do cinema superoitista de Jomard Muniz de Britto[4], entre outros, não faltaram tentativas de diagnosticar o que se passa entre os habitantes das várzeas aterradas do Capibaribe e do Beberibe ou que se escoram pelos morros dos subúrbios. Cláudio Assis, seguindo os passos do pessoal do mangue, aqui literalmente aplicado em dois sentidos – os que apanham o caranguejo para matar a fome e os que fundiram rock e funk com maracatu para fugir da pasmaceira cultural – é mais um a tentar elucidar os descaminhos dessa espécie – o recifense – que revela um certo fascínio pelo desmantelo, por uma conduta sexual cujos códigos de comportamento surpreendem visitantes mais atentos e afoitos, e por uma ambigüidade quase compulsiva nos seus gostos e desejos que nem mesmo uma maciça importação de atitudes colonizadoras, elitistas desde os tempos da Colônia e, hoje, globalizadas, não consegue abafar.

Enquanto elaboração imagética, Amarelo Manga inegavelmente conseguiu matizar em cenários, cores e sons um conjunto de sensações como as que o movimento manguebeat sugeriu para a música. Esses elementos já haviam sido largamente explorados nos primeiros videoclipes das bandas germinais desse ciclo cultural. Os do disco Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi, por exemplo, concretizavam visualmente um ambiente de influência pop na paisagem do Recife, metamorfoseando símbolos da cultura popular num vai-e-vem entre o tradicional e o cosmopolita. A proposição de mixagem, nascida nos versos das letras das músicas da banda, atravessou parte da produção audiovisual pernambucana do período e chegou a mostrar alguns traços no longa-metragem Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, embora o filme tivesse como motivo o cangaço na década de 30; no documentário O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (1999), de Paulo Caldas, Marcelo Luna e Fred Jordão, aqui com mais força pela contemporaneidade do tema estreitamente ligado a problemática da violência na periferia do Recife; e no curta-metragem Texas Hotel (1999), do próprio Cláudio Assis, espécie de filme-laboratório cujos cenários e alguns personagens são retomados em Amarelo Manga. Assim, não é só a trilha sonora de Lúcio Maia e Jorge Du Peixe ou a participação, mesmo simbólica de Fred Zeroquatro numa das cenas de Amarelo Manga, que evidenciam a referência ao manguebeat. O filme de Assis é, a seu modo, a transcrição para a moldura da tela de cinema do projeto estético que o movimento deflagrado dez anos antes havia proposto. Há, por um lado, desordem na articulação dos planos (alguns deles explorando enquadramentos inesperados para ações não menos inusitadas dos protagonistas), e por outro, harmonia nos recursos fotográficos na câmera de Walter Carvalho. Existe também uma boa dose de hibridismo – mistura proposital de elementos ficcionais com tratamento peculiar da linguagem documental -, emprestando ao filme uma impressão visual que o torna, ao mesmo tempo, sujo e sofisticado, melódico e atonal, e que, por conseqüência, encanta e desconcerta. Como produto audiovisual, sem dúvidas, vai de encontro às regras do mercado, repetindo sob certo aspecto, o mesmo que aconteceu com a cena musical pernambucana: originalidade na mixagem de elementos que à primeira vista não se combinariam, gerando boa repercussão crítica nos que procuram na expressão artística mais do que mera repetição de procedimentos convencionais, porém, uma relativa dificuldade de impor-se enquanto algo palatável ao consumo massivo, o que por si só não é nenhum demérito.

Mergulhando mais fundo no universo que o filme tenta retratar, ou seja, o painel humano no qual ele pretende ser uma espécie de voz dos excluídos de várias esferas, também observamos na estruturação narrativa de Amarelo Manga a mesma estratégia protagonizada pelo manguebeat: a de deixar claro que exclusões existem em vários sentidos e não seriam apenas uma questão de classes sociais. Seguindo esta premissa, observamos em Amarelo Manga traços da idéia de que adotar uma posição paternalista – como é comum vermos nas manifestações folclóricas em que artistas oriundos de outro extrato social dão um verniz erudito nas raízes populares e apropriam-se das mesmas – ou tentar explicar comportamentos a partir de uma ótica pré-estabelecida pode ser sinal de um imiscuir danoso.  É verdade que o intuito de não esclarecer quase nada desta sua gênese, dá ao filme a impressão de se estar diante de uma colagem desordenada de situações, um quase desfile de seres à margem, cujas ações não conseguem ir além de um rascunho de figuras que não revelam suas idiossincrasias. Alguns apontaram isto como uma forma naturalista de cinema ou mesmo uma incapacidade na construção dos personagens. Contudo, conhecendo bem o que se passa no Recife, cujo centro de ruas estreitas abriga um mundo de emoções não facilmente decifráveis e em cujos bairros periféricos a luta pela sobrevivência – seja para encher a barriga de comida ou proporcionar aos órgãos sexuais o mínimo de gozo – forja comportamentos e sentimentos em que as atitudes são, às vezes, radicais e, por outras, camaleônicas, sustentamos que existe no filme uma poesia, para o bem ou para o mal, e que ela deve emergir da forma como foi concebida: em cores cruas e incompreensíveis. E se há interferência externa ela precisa ficar evidente, algo que acreditamos o roteiro de Hilton Lacerda soube estabelecer. Como o manguebeat, Amarelo Manga não almeja um coco-de-roda sinfônico e nem é a redenção dos fracos e dos oprimidos. É imperfeito e talvez resida nisto sua mais comovente revelação. É como um rap desajeitado, mas de cuja letra pressente-se uma força latente que se impõe gostemos ou não desse tipo de música. “É a realidade, mano”, frase banal, testemunho determinista dita por um jovem morador do subúrbio após ver o filme. Um rapaz que não terminou o ensino fundamental; que se vira como pode para descolar uma grana e não dispensa “uma cerveja gelada antes do almoço pra se sentir melhor”[5], mesmo com a família evangélica dizendo-lhe que isto é coisa do diabo. A citação não tem nada de acadêmica e é desprovida de qualquer rigor científico, mas ao nosso ver é quem melhor ilustra o que estamos pretendendo demonstrar.

É a partir desse entrechoque de sentimentos claros e diretos que as letras e performances do mangueboy Chico Science penetraram em todas as camadas sociais do Recife e conseguiram encontrar sua identidade. Amarelo Manga, fiel a esta trilha não podia, portanto, comungar com um cinema bem comportado. Tinha que tentar a todo custo ao menos refletir a caótica urbanidade de onde brotou, colocar de lado julgamentos morais, culpas, correção política e partir para um tratamento de choque sem pudor com os exageros, assumindo sua irreverência incômoda mesclada com ingenuidade para deixar ao espectador decidir decifrá-lo ou devorá-lo. O radicalismo é uma estratégia de sobrevivência, é uma aposta difícil, mas que, às vezes, deve ser empreendida.

Poder-se-ia aqui elaborar uma avaliação do filme em torno de representações sociais, anexando-o a elucubrações que o integraria num circuito de cosmopolitismos periféricos, como têm feito alguns acadêmicos que se pautam por uma filiação aos estudos sobre a pós-modernidade; ou mesmo buscar identificar na sua narrativa uma vizinhança estética com o documental por causa das figuras que entremeiam a trama ficcional, como foi aventado em algumas análises em jornais, revistas e sites quando o filme foi lançado; ou ainda esboçar uma interpretação psicanalítica que pudesse explicar as pulsões de amor e morte constantemente convocadas pelos personagens. Seria também pertinente apropriar-se de um olhar que visasse atender imperativos perfeitamente legítimos de compreender a inserção da obra enquanto produto audiovisual contextualizado numa situação comunicacional que pudesse abarcar suas relações de realização e de recepção – as habituais discussões em torno de produções de baixo orçamento e de sua inserção no mercado cinematográfico. Todas essas possibilidades não são, de forma alguma, desprovidas de sentido. Contudo, talvez o mais difícil em análise de filmes seja escapar dos cânones interpretativos convencionados e articulados de maneira pré-estabelecida para mergulhar em sua poética sensitiva. Ou seja, enveredar, por leituras adjacentes, estas que permitem transformar a análise em um novo ou, inesperado ao menos, exercício de associação de idéias que, sem perder de vista a fonte de inspiração original, extrapole sistematizações e traga mais inquietações do que respostas.

Amarelo Manga – não é muito difícil perceber – foi concebido com a finalidade de tentar estabelecer uma distância das convenções. Assim, nos permitimos aqui, seguindo a trilha proposta por Jacques Aumont para analisar uma obra de imagem, colocar enquanto questões: “de que fala esta obra?” e “quais convenções que autorizam sua palavra?”, observando-o, portanto, sob este prisma de suas ligações com o pensamento que norteou o manguebeat. O filme, na nossa interpretação, é fruto de uma organização que tem a pretensão de explorar paradoxos, de modo a conjugar gêneros cinematográficos que exploram caminhos bizarros (um modelo, se desejarmos evocar um, poderia ser o da obra cinematográfica de Bigas Luna) com a expressão determinista do estrato social por sobre o qual ele vagueia. Alia, assim, tal expressão a um certo desregramento do que ele conta para o grotesco, o escatológico e a histeria ressoarem como sublimes manifestações de quem vive à margem – ou seja, seus personagens e, por tabela, os próprios idealizadores da obra fílmica.

Voltando ao manguebeat, não podemos esquecer o quanto certas composições musicais do início do movimento estabeleciam a mesma co-relação de sentidos (“mas, como já dizia um velho casca ‘a merda dos trabalhadores é sua alma inútil'”[6]). O disco Samba Esquema Noise, da banda Mundo Livre S.A. mesclava anarquia com tecnologia e classificava Recife como “esgoto esquecido da civilização pós-industrial”, falava de filhos inchando nos buchos das mães e assumia o registro das músicas num estúdio com sistema analógico de vinte e quatro canais, algo que, inevitavelmente, colocava os protagonistas do processo – os personagens das canções e os músicos – como candidatos determinados a permanecerem à margem das corporações de entretenimento.

Estas estratégias não deixam de ser desnorteadoras e desestruturantes para um olhar que não leve em consideração a tênue linha das complicadas fronteiras em que estas manifestações tipicamente recifenses vêm à tona. Qual o sentido desta poesia? Elas não se encaixam no formato tradicional da denúncia contra o establishment – como é facilmente verificável nas letras dos raps dos grupos da periferia – nem revelam a possibilidade de uma identificação integral. Também não são portadoras de uma visão apenas cínica da realidade. Aonde as letras das canções do movimento mangue e as imagens dos corredores do Texas Hotel querem nos conduzir? Que mediação elas procuram estabelecer com seus interlocutores, ouvintes/espectadores? Um quebra-cabeça polifônico para divertir ou um mero jogo de sedução e rejeição para soarem provocativas de modo a fazerem emergir um estado de perplexidade que nunca chega realmente a ferir, mas é apenas um arranhão epidérmico que não deixa cicatrizes?  Ambas as opções são verdadeiras. No Recife contemporâneo esta condição existencial é uma estratégia de sobrevivência válida para quem está na base da pirâmide social e dos que deles se condoem. Nisto personagens e idealizadores de Amarelo Manga são pródigos. Enredam-se numa vivência melodramática de atitudes que extraem dos clichês amorosos (à beira de singelas reminiscências de um passado provinciano que insiste em não ter fim) e dos gestos espalhafatosos (nosense de efeito claramente duvidoso) uma série de possibilidades de solução para suas carências emocionais. Feridas sentimentais aplacadas por reviravoltas que nunca serão totais por mais que os protagonistas (diante e por trás das câmeras) esbravejem o contrário. E não podem ser, pois se vive na capital do Estado de Pernambuco, eternamente mergulhado na contradição. Os fantasmas das baronesas do Leão do Norte[7] não partiram. São assombrações que se fantasiam de pierrôs e colombinas em blocos líricos para defenderem seus territórios no projeto cosmopolita de reordenação urbana do bairro do Recife Antigo, enquanto caboclos arrastam os solados grossos de seus pés descalços no asfalto quente e gorduroso da avenida Guararapes e Dantas Barreto, local onde se ergue, altaneiro, o monstrengo arquitetônico denominado “camelódromo”[8].

Por isso, talvez, a câmera dirigida por Assis saia em busca de seres reais, querendo trazê-los para um mundo que a princípio não lhes diz respeito. A tentativa, por mais inútil que possa parecer, faz sentido na lógica que a geração produtora de Amarelo Manga e do movimento manguebeat elegeu para exercer sua rebeldia: ela é uma síntese, ingênua, talvez, mas legítima, de uma geração que oscila entre flertes neo-populistas e evoluções narcísicas transmitidas por ondas luminosas e eletromagnéticas. Flertes que nunca se resolvem e estão em constante transmigração, pois nascem na negação dos projetos estéticos oficializados – uns, nascidos como manifestação autêntica de movimentos contra-culturais; outros, herdados das tradições folclóricas reificadas após a benção erudita dos feudos acadêmicos – mas, que são constantemente incorporados nas ações sócio-culturais dos grupos que se alternam e que se mesclam no poder político local. Na esfera contemporânea a designação “multicultural” é o apanágio desta lógica e cuja semente foi plantada exatamente pelo movimento manguebeat.

Para escapar às dicotomias simplificadoras e sustentar a atualização de um lugar potencialmente original que possa afirmar um certo universo cultural imaginado como espelho de uma realidade disforme e caótica por natureza (como preconizou o manguebeat), o filme se força, assim, a enveredar por uma miscigenação de olhares. Recicla formatos, mescla gêneros e aposta numa estrutura que o permita distanciar-se de rotulações que uniformizem proposições e interpretações a seu respeito. Acompanhando a linha de ação central convencional em que o enredo se desenvolve, há no filme, dessa forma, um entrelaçamento de banalidades e de excessos. Eles se concretizam por meio de imagens que, sem cerimônias, resvalam para o clichê folhetinesco e para o abjeto; que, por meio de deslocamentos narrativos, costuram o eixo central da trama com figuras secundárias de um mundo silencioso e de grande força expressiva; e ainda pela utilização de diálogos ou solilóquios, cujo objetivo é claramente proferir aforismos de sentido ambíguo, espécie de subtexto desestabilizador de possíveis certezas em construção na mente do espectador. Há em toda esta recorrência uma intenção de não deixar emergir a possibilidade de uma apreciação que se valha preferencialmente de referências regionalistas e aspectos pitorescos, mas afirme a obra como um objeto complexo que ultrapasse os estereótipos habituais do cinema nordestino. No Recife esta batalha é constante e um dos méritos do manguebeat, processo encampado pelos realizadores de Amarelo Manga, foi forjar esta área virtual onde se pode transitar e driblar os esquemas impostos por modelos fechados. Tais espaços permitem uma flexibilidade das discussões em torno das manifestações artísticas e um intercâmbio que contamina os blocos ideológicos arcaicizantes que insistem em se manter como paradigmas inquestionáveis da produção cultural e, por extensão, no pensamento cinematográfico.

O filme, mesmo sem o externar abertamente, retoma o espírito de inquietação que foi protagonizado nos anos 70 no Recife e Olinda, por bandas como Ave Sangria, cujas melodias mesclavam rock progressivo com acordes de inspiração regionalista; pelo grupo teatral Vivencial Diversiones, com seus espetáculos iconoclastas, mesclando travestis e crítica política, num teatro de madeira erguido próximo a uma favela de palafitas; manifestações cuja repercussão atingiu os filmes super 8 de Amin Stepple, Paulo Bruscky, Geneton Moraes Neto, Paulo Cunha e Jomard Muniz de Britto, criadores que, de certa forma, eram também protagonistas e circulavam nestes espaços de expressão artística.  A analogia do manguebeat com esta movimentação precedente é, portanto, incontornável. A cena cultural contemporânea, da mesma maneira, repercute manifestações de outras áreas e com elas dialoga e interage, fortalecendo novos conceitos e discursos, embora eles não sejam evidentes para quem não conhece de dentro a movimentação que estes dois períodos registram e que são muito pouco explorados além do contexto cultural local, e mesmo pelos observadores que se debruçam a estudar estas fases. Cláudio Assis emerge – assim como Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Marcelo Gomes e outros realizadores pernambucanos – na transição dos anos 80 e 90 e tiveram contato com estes artistas, renovando apenas com outros dispositivos a imersão no que Jomard Muniz de Britto ironicamente denominava “a terceira margem do rio”, isto é, os locais que não estavam ocupados pelos feudos culturais hegemônicos pernambucanos.

Pode ser que daqui a alguns anos Amarelo Manga parecerá um filme de acabamento tosco, uma obra datada, mas inegavelmente ele não perderá a condição de ser um registro da alma suburbana provinciana de boa parte do recifense deste início de século 21 em que, apesar da explosão de luz tropical que invade a paisagem, no seu dia a dia, vive confinado emocionalmente na luminosidade abafada de quartos escuros, oprimidos pelos móveis entulhados de suas casas pequenas, situadas em ruelas enlameadas. E que não terá controle absoluto de seus sentimentos, podendo, de uma hora para outra, trocar um comportamento de fé e recato por uma conduta em que, para continuar vivo, o pudor deixará de ser norma – como o faz o personagem vivido por Dira Paes, que de evangélica recatada metamorfoseia-se em mulher do mundo. Será também um registro da alma de nossos músicos e cineastas, oscilando entre o deslumbramento de heróis fugazes e cultuados nacionalmente, mas que cansados da rebeldia e dos dias de contestação, abraçam cargos governamentais, dirigem fundações e aceitam, felizes, verbas ministeriais. Só quem não conhece de perto como vivem estas criaturas, achará inverossímeis mudanças tão bruscas.

Referências bibliográficas:

ASSIS, Cláudio. Um Olhar faca que cega, in: Cinemais, pp. 101-120. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.

AUMONT, Jacques. À Quoi Pensent les Films.  Paris : Séguier, 1996.

FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema Pernambucano: uma história em ciclos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000.

HILUEY, Amin Stepple. Amarelo Manga e o século XXI : cenas do cinema pernambucano, in : Arrecifes, pp.34-39. Recife: Conselho Municipal de Cultura, 2004.

VALENTE,Eduardo. Paralelas e Transversais,

in: www.contracampo.he.com.br/críticas/lisbela-manga.críticas

ZEROQUATRO, Fred e LINS, Renato.  Manguebeat: utopia revisitada, in: Arrecifes, pp.49-51. Recife: Conselho Municipal de Cultura, 2004.


[1] Denominação pela qual a cidade do Recife era, por vezes, identificada pelos seguidores do movimento.

[2] O Movimento Armorial é uma criação do paraibano radicado no Recife, Ariano Suassuna, e tem como princípio básico o resgate das raízes ibéricas das manifestações da cultura popular nordestina. Ariano, no período em que o movimento mangue ganhou fôlego, estava à frente da Secretaria de Cultura do Estado e não apoiava as iniciativas da geração manguebeat, que o criticou em diversas ocasiões.  Com a eleição de Eduardo Campos, para o governo estadual, em 200X, Ariano voltou ao cargo, mas tem se mostrado menos atuante que naquela ocasião. Seu cargo é quase figurativo e quem tem comandado as ações culturais é a Fundarpe, administrada por Luciana Azevedo.

[3] Gilberto Freyre é um dos ícones da cultura pernambucana e escreveu, além do clássico Casa Grande & Senzala, obras que perscrutam a formação social do Brasil e Pernambuco, a exemplo do livro Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano (1936).

[4] Jomard Muniz de Britto é professor universitário, escritor e cineasta. Nos anos 70 foi um dos mais profícuos realizadores de filmes em super 8, com os quais realizou uma intensa crítica cultural da produção artística do Recife, tendo como modelo o movimento tropicalista e as idéias do Cinema Novo.

[5] Citação da música A Praieira de Chico Science & Nação Zumbi, do disco Da Lama ao Caos.

[6] Citação extraída da composição A Bola do Jogo, da Mundo Livre S.A. no disco Samba Esquema Noise.

[7] Denominação que era dada ao Estado de Pernambuco.

[8] Espécie de mercado público construído pela Prefeitura da Cidade do Recife para abrigar os vendedores ambulantes, retirando-os das ruas e avenidas centrais da cidade.

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  1. Author Image
    thaianetto

    como e aonde encontro esse filme ?
    beijos

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