O Eros de Antonioni: Análise da última obra de um grande diretor.

Régis Orlando Rasia *

RESUMO

O filme Eros (2004) compreende três pequenas histórias de renomados diretores. A intenção destas três histórias é de empreender uma viajem ao mundo do erotismo. Damos destaque ao último filme de Michelangelo Antonioni “The dangerous thread of things”.  Neste artigo o nosso interesse será dar vazão teórica e analítica para esta concepção de erotismo, dialogando com a obra de Antonioni.

O Eros de Antonioni

Eros (2004) compreende três pequenas histórias de renomados diretores. Com aproximadamente 20 minutos, cada uma traz nas suas tramas o olhar sobre o erótico. A primeira história é a de Antonioni intitulada “The dangerous thread of things” <O perigoso fio das coisas>; a segunda, de Steven Soderbergh: “Equilibrium” e a última história, de Wong Kar-Wai, “The Hand” <A mão>. Já na abertura de cada um dos filmes, nós encontramos tramas de relações com as pinturas eróticas ao som da música de Caetano Veloso intitulada “Michelangelo Antonioni”. A intenção destas três histórias é de empreender uma viagem ao mundo do erotismo, tendo em destaque o último filme do grande diretor Michelangelo Antonioni.

Neste artigo, o nosso interesse será dar vazão teórica e analítica para esta concepção de erotismo, dialogando fundamentalmente com a obra de Antonioni. Nada nos impede de falar dos três filmes como um todo, pois em cada um deles nos vem à tona histórias ligadas ao erotismo contadas de forma muito peculiar. Todas as três histórias mereceriam serem analisadas, pois tratam o erótico com uma referencialidade apurada, porém nos ateremos mais ao filme de Antonioni. Vale apontar que Eros, principalmente o filme de Antonioni, foi objeto de críticas bastante negativas, já que se tratava de um filme no final da carreira do diretor, um filme que ele havia feito bastante doente. Ao que nos parece, as críticas, em sua maioria jornalísticas, prenunciam uma resistência em tratar de temas ligados ao erotismo, chamando-o de um filme de mau gosto. No entanto com uma abordagem mais acadêmica e analítica, perceberemos a grandiosidade da última obra de um grande diretor.

O primeiro filme é o de Antonioni, na seqüência temos o de Steven Soderbergh.  “Equilibrium” conta a história de um publicitário em busca de respostas aos seus sonhos que insistem em se repetir. Os sonhos se desenrolam através do desejo e com alto teor erótico, nos quais a figura de uma mulher aparentemente desconhecida revela-se a ele. Levado por esta indefinição, o publicitário procura um psiquiatra com atos muito incomuns. A fotografia do filme em preto e branco e com tons de cor azul alterna e fazem discernir sonho e realidade. O que fica proposto na trama é a relação despreocupada entre paciente e psicanalista, durante a sessão ambos estão buscando resolver questões pessoais. Aspectos como voyeurismo, com uma grande pitada de humor sobressaem-se na narrativa. O filme é muito peculiar, pois mostra a ação dos dois protagonistas em cena, muitas vezes é difícil prestar atenção na fala do publicitário e ao mesmo tempo na gestualidade do psicanalista. No filme, fica sugerido assistí-lo em dois momentos distintos, acompanhando as ações distintas entre paciente e psicanalista.

Já o filme de Wong Kar-Wai trata de uma trama mais fechada com uma narrativa linear, e talvez para a crítica, a mais intrigante e comovente das três histórias. “The Hand” conta à história de uma prostituta de luxo, que logo no primeiro encontro, para cativar um aprendiz de alfaiate a fazer-lhe roupas bonitas, masturba-o ganhando um particular afeto que seria transformado em empenho na manufatura das suas roupas. Este ato leva o alfaiate a ser fiel e acompanhar a vida desta prostituta até a sua decadência. Próximo do momento da sua morte, ela repete o ato que culminou em seu encontro. O drama do filme deixa claro que o personagem se torna cativo à mulher por tal carinho, afirmando que este momento do passado é o responsável por ele se tornar um alfaiate. Assim resumindo as três histórias, para Antonioni, Eros é poema; para Soderbergh, Eros é um sonho; e na concepção do cineasta chinês Wong Kar-Wai, amor é tato.

Eros, personagem de uma das mais belas histórias da Mitologia, tendo Psiquê como a sua amada, refere-se ao amor personificado. Eros, na figura do cupido, faz acepção ao “desejar ardentemente”, e também ao “desejo dos sentidos”. O mito que dá nome ao filme, e dá origem a palavra “erotismo”, encontra-se com Bataille (1988:18). Segundo ele o “erotismo implica uma dissolução das formas constituídas, ou seja, das formas da vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos”.

“A verdade das proibições é a chave da nossa atitude humana, pois que devemos e podemos saber exatamente que as proibições não nos são impostas de fora. Eis o que surge claramente na angústia, isto é, no momento em que ela ainda intervém, mas em que, não obstante, cedemos ao impulso a que ela se opunha. Se observarmos a proibição, se nos submetermos a ela, não teremos consciência disso, mas no momento da transgressão, e só nesse momento conhecemos a angústia sem a qual a proibição não existiria: é a experiência do pecado. A experiência leva à transgressão concluída, à transgressão bem sucedida, que, mantendo a proibição, a mantém para a desfrutar. A experiência interior do erotismo exige daquele que a faz uma sensibilidade à angústia que fundamenta a proibição, tão grande quanto ao desejo que teve de a infringir.” (BATAILLE, 1988:32)

O termo erotismo dá vazão a um conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo, desejo, prazer, sensualidade entre outros temas ligados. O erótico, quando mediado por uma câmera, que é onde buscamos nos centrar, insere-se no plano representação/expressão, e podemos encontrar o imaginário pessoal e cultural cristalizado. O erotismo ainda nesta concepção de imaginário cultural e pessoal traça relações entre infração das regras e das proibições, geralmente ligado aos valores éticos e morais, mas tomemos como base as noções do teórico Bataille para o entendimento das relações da performance do ator e do diretor, na abertura da fruição de um espectador através da mediação da câmera

A mediação da câmera, que é a práxis do cinema, vem cunhar o objeto de obra no texto fílmico. Vemos que o erotismo no cinema não se dá por acaso, ele tem em si uma finalidade, com questões que vão além do desnudamento e exposição dos corpos, ele quer fazer expressar. O cinema e a representação para nós sempre foi uma potência artística, e no plano do erótico encontramos inúmeros traços entre elas a resistência conforme a citação abaixo.

“Não somente foi ampliado o domínio do próprio desejo. Não somente foi ampliado o domínio do que se podia dizer sobre o sexo e foram obrigados os homens a estendê-lo cada vez mais; mas, sobretudo, focalizou-se o discurso no sexo, através de um dispositivo completo e de efeitos variados que não se pode esgotar na simples relação com uma lei de interdição.” (FOUCAULT 1999:26)

Propomos a inflexão do pensamento sob as concepções de Alienação para a compreensão do filme Eros, tanto no plano de expressão do diretor, como no plano de conteúdo com os agenciamentos da narrativa. The dangerous thread of things transparece no erótico o dissabor da alienação. Não por menos, Antonioni remonta as questões do neo-realismo italiano que tiveram sua fonte de inspiração nas idéias marxistas e na psicanálise freudiana, bem como inspirariam a e acompanhariam diversas obras de muitos diretores do. Entender o filme Eros, é colocar o sobre-código de leitura da alienação nos corpos nos filmes de Antonioni.

O cinema como função artística, é sinônimo de resistência, trazendo em si o processo de criação e a expressão como potência. Para Deleuze, a arte e a ciência compõem, com a filosofia, as três grandes formas de pensamento. Todas elas têm em comum a força criadora e a capacidade de realizar deslocamentos no pensamento. Deleuze fez incursões no cinema baseando-se na idéia de intercessor: o intercessor é qualquer encontro que faz o pensamento sair de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento. O cinema foi e sempre será elemento da força criadora, grande responsável por tirar o pensamento da imobilidade, criando para si linhas de fugas, dimensionando o mundo do discurso e por vezes se opondo ao poder vigente, na idéia da transgressão, quebra de tabus, mudança de perspectiva entre outros.

O cinema é responsável também por, literalmente, colocar o erótico em cena. Segundo Foucault (1999:27), “deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito”. O cinema em sua razão ser artística prova que o erotismo pode encontrar liberdade para a sua discussão nas diferentes formas de expressão por vezes difíceis de serem interpretadas no plano científico ou mesmo moral, ainda conforme Bataille (1988:8) “o erotismo tem para os homens um sentido que a atitude científica não pode captar. O erotismo só pode ser encarado se, ao encará-lo estivermos a encarar o homem”, sendo assim um tema que chama a atenção, porque coloca o ser humano de frente com o que o aterroriza. Entendemos melhor com a citação abaixo:

“Penso que o homem não tem possibilidade de esclarecer-se melhor, se não dominar o que o aterroriza. Não quero dizer com isto que o homem deva esperar um mundo em que não haja razão de terror, em que o erotismo e a morte se encadeiem como peças de um mesmo instrumento, mas sim que o homem pode ultrapassar o que o aterra, poder olhá-lo de frente.” (BATAILLE, 1988:7)

O tema do erótico sempre demonstrou ser palco de tabus, repressão e medo. Na história da cinematografia brasileira, tentou-se apagar, erroneamente, o papel que desempenhou a pornochanchada, no período dos anos 70 e começo dos anos 80. É interessante o fato de que temos em nossa produção audiovisual do período mais de 600 filmes, alguns deles se configuram ainda como as maiores bilheterias do cinema nacional. As exibições em horários avançados de filmes do gênero pela Record, Manchete, entre outras, foram responsáveis pela educação sexual de muitos brasileiros, o fato curioso é que a permanência do Canal Brasil deu-se graças a esta faixa de horário, na qual se encontrava o maior número de audiência da emissora. A pornochanchada, fenômeno que se explica com a ditadura militar, calca o nosso cinema no erótico, e para além demonstra que existiram e ainda existem demandas de públicos. (CALIL, 2009).

Para Foucault, o século XVII: seria o início de uma época de repressão própria das sociedades chamadas burguesas e da qual talvez ainda não estivéssemos completamente liberados. Denominar o sexo seria, a partir desse momento, mais difícil e custoso. Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de maneira demasiado sensível. Durante muito tempo se associou o sexo à culpa, ao pecado, e à vergonha. Tendo o viés da sexualidade como ato e atitude condenável. (FOUCAULT 1999:14)

“Desde o século XVIII o sexo não cessou de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado. E tais discursos sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e como meio para seu exercício; criaram-se em todo canto incitações a falar em toda parte, dispositivos para ouvir e registrar, procedimentos para observar, interrogar e formular.” (FOUCAULT 1999:34)

Na cena final do filme de Antonioni, em uma típica performance das personagens através dos seus corpos desnudos, que se põem a dançar na praia, trazem a tenacidade poética da ação. O enredo do filme como um todo nos suscita inúmeras questões, mas essa atuação/performance das personagens não poderia passar alheia sem ser questionada em duas questões que orbitaram este ensaio: Que significado traz o nu para quem representa a performance? De acordo com Bataille, “no plano da sexualidade, basta pensar na aberração do nudismo, negação da proibição sexual, negação da transgressão que gera necessariamente a proibição” (1988:232). A trama do filme ainda nos provoca outra questão, qual a razão da presença do corpo feminino? Novamente em Bataille (1988:114) “uma bonita mulher nua é, muitas vezes, a imagem do erotismo. O objeto do desejo é diferente do erotismo, não é o erotismo total, mas o erotismo passa por ele”. As duas citações do teórico ainda são primais para resolução das questões, mas nos permitem enxergar o plano de apreensão deste ensaio.

Responder por que não estamos nus é ao mesmo tempo perguntar por que estamos cobertos? Os nossos corpos são objetos de consumo. O ser humano quando optou por cobrir seu corpo não apenas para se proteger do frio, descobriu também o seu movimento de status quo com a sociedade, então para que ficar nu? Conforme cita o teórico abaixo.

“Ademais, a escolha e o uso das roupas são, a um tempo, altamente significativos dos costumes, dos rituais, das cerimônias e do grau de narcisismo do indivíduo que as veste. Estar “bem vestido”, estar “vestido”, estar “nu” são vividos de maneiras muito diferentes segundo as sociedades, as situações e os indivíduos. A nudez é, em qualquer ocorrência, uma dessocialização, sentida da maneira positiva ou negativa em relação ao peso dos estatutos, como despojamento ou liberação.” (MAISONNEUVE, 1977:128)

Na figura bíblica de Adão e Eva, o ato de cobrir seus corpos se deu através do sentimento de culpa e de vergonha logo posterior ao pecado original, e como grande responsável por esta transgressão, encontramos a figura da mulher. Notemos que logo que o casal comeu a maçã, o que eles sentiram foi vergonha de estar nu, não foi dada ordem divina para que eles se cobrissem, mas sim o sentimento de vergonha que acompanhou da nudez/inocência ao sentimento de vestir-se/culpa e transgressão. “Compreendendo que era mortal e passando da sexualidade inocente à sexualidade envergonhada, donde o erotismo brotou” (BATAILLE, 1988:26). Ainda nesta relação de vergonha e moralidade diante da nudez temos.

“Falamos de erotismo de todas as vezes que um ser humano se comporta de modo a apresentar um flagrante contraste com os comportamentos e juízos habituais. O erotismo deixa transparecer o avesso duma fachada, cuja correta aparência nunca é desmentida: nesse avesso se revelam os sentimentos, partes do corpo e modos de ser de que vulgarmente temos vergonha.” (BATAILLE, 1988:95)

Colocar o sexo em discurso é trazer a tona o plano do nu e trazer para cena o que é obsceno, o objeto tido como vergonha é o centro da discussão em nosso filme. O nu depende de um corpo que exponha órgãos tidos como obscenos, corpos ao mesmo tempo que denotam proibições. Nesta concepção “a significativa humanidade da proibição é transgredida no erotismo”. (BATAILLE, 1988:127). O corpo que sofre a ação, logo se torna um corpo em expressão. Mas o nu seria a expressão do que? A condição do artista em ter algo como objeto de expressão, é a acepção da expressão para um espectador. O filme de Antonioni e a performance do nu na praia não se dão por acaso. A nudez como vemos nas duas personagens do filme de Antonioni, buscam questionar cânones de uma sociedade, ou ato/gesto de libertação dos seus corpos.

Logo no inicio do filme é evidente a relação de um casal em crise. Cloe fala com Christopher para aceitar que a relação de ambos não funciona. O desgaste é evidente na relação do casal, ambos se questionam sobre a culpa da relação estar “fria”. Cloe ainda questiona o fato de seu companheiro esperar que os seus desejos se tornem realidade em contraponto aos próprios desejos dela. O desejo aqui já começa a conduzir a trama do filme, a repressão do desejo e, naturalmente, a falta de erotismo entre estes dois corpos. Cloe e Christopher evidenciam a repressão e sublimação dos seus desejos. “O desejo, aqui, consiste também num movimento contínuo de desencantamento, no qual, ao surgirem novos afetos, efeitos de novos encontros, certas máscaras tornam-se obsoletas. Movimento de quebra de feitiço. Afetos que já não existem e máscaras que já perderam o sentido”. (ROLNIK, 1989, p.33).

Para Bataille em seu livro O erotismo (1988) existe três formas de erotismo: o dos corpos, o erotismo dos corações e, o erotismo sagrado. O teórico fala que o que está sempre em questão é a substituição do isolamento do ser, da sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. As relações de passagem do contínuo para o descontínuo e vice-versa, é na verdade possível porque “somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que tem a nostalgia da continuidade perdida” (BATAILLE, 1988:12-14). O filme deixa isso muito claro quando mostrando um casal que anseia sob o individualismo dos seus corpos, não suportando um abismo de descontinuidade entre eles. As referências nostálgicas aos afetos, as relações, vem na tentativa de diminuir um abismo visível no casal do filme, existe uma distância que o diretor consegue imprimir inclusive plasticamente entre estes dois personagens que na trama representam um casal.

A temática que acompanhou a vida de Antonioni nos trás até o plano da alienação que foi o pano de fundo de várias de suas histórias e de personagens que marcam fortemente a trilogia do diretor em A aventura (1960), A noite (1961) e o Eclipse (1962), também Blow-up (1966). Antonioni constrói perfis de personagens que se repetem em suas tramas – o que não é diferente em The dangerous thread of things. Os personagens de Antonioni são geralmente ricos, bem sucedidos, mas ao mesmo tempo são vazios e aborrecidos com a vida. A dimensão do vazio nos seus personagens expõe figuras com traços fugazes e de tédio cotidiano. Outra coisa que se repete em seus filmes é a fotografia, que qualifica as belezas naturais geralmente da Itália, com longuíssimos planos, em cenários abertos, onde formas plásticas reivindicam outro sentido de ver o tempo. Na história de Antonioni no filme Eros, essas paisagens não entram em cena por acaso, muito menos os estados psicológicos de seus personagens.

No filme, a alienação vem ao primeiro plano, mostrando que o desejo dos corpos não depende única e exclusivamente de si mesmo, e sim de “um outro”. A alienação – podendo ser inclusive a mesma abordada pelo marxismo, quando se refere à burguesia – neste caso, vem como expressão da figura deste casal que detém posses, reside em uma bela casa, tem um belo carro, mas ainda é nítido que algo lhe falta, ao modo que transferem os seus desejos para outra pessoa quando senão, a um objeto em detrimento da sua individualidade.

Segundo Bataille (1988:25), “o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Se nos não damos conta disso, é porque o erotismo busca incessantemente fora dele um objeto de desejo. Esse objeto corresponde à interioridade do desejo”. O casal da trama, com belos corpos e aparência, demonstra uma falta, uma profunda necessidade conseqüentemente tida no escopo do desejo entre si mesmo e o outro.

O legado deste pensamento traduz, na concepção de que a mulher é o corpo da repressão, somado a todo o valor simbólico e de representação que a figura feminina historicamente enfrentou e com toda certeza ainda enfrenta. O corpo feminino que se põe nu não traz apenas consigo a ação, mas também todo o peso da repressão, a conjuntura porque a mulher ainda sofre em nossa sociedade, negando alguns objetos de repressão para assumir outros. A mulher como objeto, a mulher como “coisa” é o sentimento expresso de Cloe no filme de Antonioni, não apenas na relação com o seu parceiro, mas também na sua relação consigo mesma, e aqui a acepção da alienação na mais pura conotação, na qual o pensamento burguês do trabalho, sexo como mercadoria, e do ser como objeto sobressaem-se.

“Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação”. (BATAILLE, 1988:15). Podemos afirmar que a mulher é vítima da violência moral, e à ela bem como à dimensão do erótico, estão ligados inúmeros tabus, simbolizando as questões de repressão, dominação e submissão sob figura masculina.  A personagem Cloe, no filme, deixa transparecer claramente esta questão da violência, na qual Bataille freqüentemente fala não apenas na figura da violência física, mas a psíquica e emocional as quais a mulher está ligada. O contexto mudou, o tempo é outro, mas as personagens femininas de Antonioni têm sempre o mesmo traço e será sempre atual e por quê? O filme apresenta ambos os personagens masculino e feminino se resolvendo, porém, na performance final, encontramos exclusivamente o corpo mulher. Tentamos resolver ao mesmo tempo as duas perguntas: Porque o nu? E porque a mulher? O final culmina então na relação da descontinuidade do corpo em repressão, do corpo alienado em busca da sua continuidade, conforme cita Bataille.

“Só a violência pode pôr assim tudo em causa, a violência e a inominável perturbação a que está ligada. Sem uma violação do ser constituído – do ser que se constitui na descontinuidade -, não podemos imaginar a passagem dum estado para outro estado essencialmente distinto. Não apenas reencontramos nas perturbantes alterações dos animalículos em via de reprodução o fundo de violência que nos sufoca no erotismo dos corpos, como também são elas que nos revelam o sentido íntimo dessa violência. Qual o significado do erotismo dos corpos, senão o de uma violação do ser dos que nele participam? Violação que confina com a morte, violação que confina com o assassínio.” (BATAILLE, 1988:15

Acompanhando os personagens da trama, percebemos que os mundos que se criam e se desmancham, nessa incessante atividade do desejo, englobam sua existência em todas as dimensões: pré-individual, individual, grupal e/ou de massa. Entendemos que o desejo não corresponde a um suposto campo individual ou interindividual, o qual estaria numa relação de exterioridade ao campo social. A própria palavra “afetar” designa o efeito da ação de um corpo sobre outro, em seu encontro. Ao mesmo tempo em que compreendemos os afetos com base nos agenciamentos, conseguimos entender as conotações em que a performance do nu, como objeto de expressão passado pela representação, quer atingir a um outrem, aqui, o espectador. (ROLNIK, 1989, p.56)

Queremos transcender a dimensão do olhar, para ao espectador, no qual imaginariamente e inconscientemente, todo espectador usa o corpo do outro, em diferentes condições, seja encenado, representado ou mesmo figurado. Vampirismo e canibalismo distantes, in absentia, ou mesmo atos incorpóreos reconduzidos às formas do visível e do audível, a imagem do corpo do outro sempre avança até nós como o próprio corpo, e estamos ligados a esta imagem como misto confuso de semelhança e de alteridade. O nu sempre presente nas danças, nos sacrifícios, e para o nosso domínio, nas performances como palco ritualístico do filme de Antonioni, “The dangerous thread of things”, não atingem apenas quem pratica, mas também quem presencia e está fruindo. Estas representações trazem em si a dimensão do domínio e do gozo, na qual caímos diante desses corpos em atuação, postos em ação, através da imagem. O que era praticado, mas não explicitado no consumo ordinário das figurações do corpo humano, é agora explicitamente realizado como poder conferido ao telespectador.

O desejo, então, seria exatamente essa produção de artifício. E o movimento do desejo – ao mesmo tempo e indissociavelmente energético (produção de intensidades) e semiótico (produção de sentidos) – surge dos agenciamentos que fazem os corpos, em sua qualidade de vibráteis: o desejo só funciona em agenciamento. Em outras palavras, o processo de produção do desejo é de uma energética semiótica, agenciamento dos corpos, movimentos de intensidades tentando passar da criação de sentido para efetuar essa passagem – tudo isso acontecendo ao mesmo tempo.

Para entendermos a ação do nu, teremos que entender que uma série de agenciamentos de matérias de expressão formam, bem como a performance que temos como objeto de análise, tanto para quem assiste como quem pratica, uma espécie de cristalização existencial, uma configuração mais ou menos estável; repertório de jeitos, gestos, procedimentos, figuras que se repetem, como num ritual. Movimentos de atração e de repulsa que experimentam, e que conquistaram um espaço para se exercer o indivíduo, ao mesmo tempo um território. Um desenho ou uma ação do personagem pode se configurar no espírito das personagens e no próprio espectador. Nesta relação do corpo mediando câmera e espectador, segue a citação abaixo.

“Uma câmera o conduz. Você vê um homem e uma mulher se encontrando num lugar qualquer. Trocam olhares furtivos, se espreitam. Com o olho da câmera (extensão de seu olho nu) é só o que você vê, por enquanto. Mas atrás da câmera, você – teu corpo vibrátil – e tocado pelo invisível, e sabe: aciona-se, já, um primeiro movimento do desejo. No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se repelem. Dos movimentos de atração e repulsa geram-se efeitos: os corpos são tomados por uma mistura de afetos. Eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos… E teu corpo vibrátil vai mais longe: tais intensidades, no próprio momento em que surgem, já traçam um segundo movimento do desejo, tão imperceptível quanto o primeiro. Elas ficam ensaiando, mesmo que desajeitadamente, jeitos e trejeitos, gestos, expressões de rosto, palavras… É que, você sabe, intensidades buscam forma máscara para se apresentarem, se “simularem”; sua valorização depende de elas tomarem corpo em matérias de expressão. Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam.” (ROLNIK, 1989, p.25)

Quando Bataille faz associação do erotismo com a morte, propomos encontrar a morte na trama de “The dangerous thread of things”.  A união dos três amantes no filme é conseqüência da paixão ou mesmo da falta dela. A paixão invoca necessariamente a morte, o desejo de morte ou de suicídio ou, como no caso do filme, a morte do indivíduo: “o que designa a paixão é um halo de morte” (BATAILLE, 1988:19).

Sob esta violência – a que corresponde o sentimento da contínua violação das descontínuas individualidades –, começa o reino do hábito e do egoísmo a dois, ou seja, de novas formas de descontinuidade, como fica claro na condução do relacionamento de Cloe e Christopher. É apenas na violação – ao nível da morte –, do isolamento individual, que surge essa imagem do ser amado. Para o amante, o ser amado é a transparência do mundo. Apesar da promessa de felicidade que acompanha o erotismo dos corpos, a paixão começa por introduzir a perturbação e a desordem especificamente como acontece com o casal do filme.

“As possibilidades de sofrer são tanto mais vastas quanto só o sofrimento revela inteiramente a significação do ser amado. Se é verdade que a posse do ser amado não significa a morte, também o é que a morte está necessariamente envolvida na busca dele. Se aquele que ama não pode possuir o ser amado, pensa, por vezes, em matá-lo, em muitos casos prefere matá-lo a perdê-lo; noutros, deseja a sua própria morte.” (BATAILLE, 1988:19)

Voltando para a leitura do filme, Cloe e Christopher ao sairem para almoçar de carro, logo na saída da casa, encontram uma rua bifurcada, ao tomar um dos caminhos eles voltam atrás, tomando o outro caminho. Carregado da simbologia da decisão, expõe-se que o casal vai para algum lugar não-convencional. Este lugar não-convencional, leva-os a encontrar um cenário de cachoeira com mulheres nuas cantando, sendo esta uma cena fundamental para o entendimento do que o casal está passando. A cachoeira, bem como a água e seu fluxo, traz a representação do gozo, da satisfação; a água é simbolicamente representada como um objeto de purificação e lubrificação. Este conjunto de signos a trama desempenha um papel importante, pois mostra Cloe e Christopher distantes um do outro na tomada. Após um tempo de observação, Christopher questiona Cloe, porque eles não haviam vindo anteriormente até este local, Cloe balança a cabeça e afirma que foi a falta de curiosidade. Nesta cena da cachoeira, o casal notoriamente faz referência à nostalgia, deleite e prazer de observar a cachoeira. Com um plano referencial muito grande, esta cena traz uma clara sensação de gozo perdido, do desfrute da relação e conseqüentemente da intimidade do casal que já não existe. A fotografia da cena chama a atenção para um plano em contra-plongée, no qual os dois se encontram distantes na cena, apenas observando a cachoeira e as mulheres. Esta distância se repete em vários momentos no filme, identificando uma distância ao mesmo tempo física (plástica) e afetiva (emocional).

Outra cena que traz a supressão do desejo do casal, concomitante a uma frágil aparência com que eles vivem, é a após cena da cachoeira, quando o casal vai almoçar em um restaurante: Em um plano-seqüência em que a câmera acompanha o casal em silêncio, Christopher questiona-se se Cloe ainda se lembra das coisas belas, ironicamente ela pergunta então se ele havia se tornado uma pessoa romântica. Após uma discussão, Cloe aponta que faz de tudo para não viver ligada ao passado, sendo este um dever, uma obrigação; não se lembrando do dia nem do sol, mas sim das nuvens e de um estado contínuo de melancolia. Seu estado de ânimo fica claro quando ela afirma que não quer estar triste, e por isso sorri às vezes sem nenhuma razão. Christopher então a pede rispidamente que ria, Cloe de forma incitada e artificial põe-se a rir, logo eles entram no restaurante com a sensação falsa de felicidade. Seria a alienação como parte da artificialidade.

Dentro do restaurante, em um plano aberto, novamente o casal apresenta-se distante um do outro, e então, aparece a terceira pessoa da trama, Linda. Christopher acompanha esta figura feminina demonstrando interesse por ela, interesse que é percebido por Cloe. Logo após a saída de Linda do restaurante, Cloe deixa uma taça cair no chão intencionalmente, não a quebrando, mostrando a fragilidade da relação que estaria prestes a quebrar, em um claro contraponto de uma família ou grupo de amigos que estariam felizes e em um clima amistoso na mesa ao lado.

Na cena posterior, o casal caminha por um túnel formado árvores de baixa estatura, novamente com a câmera os acompanhando, o casal torna a discutir, mas o tema dessa vez é o sexo. Quando Christopher cita que eles não fazem mais nada senão brigar, Cloe questiona se o que ele quer é sexo, ele afirma que sim, que é o sexo que o faz feliz, e que este objeto para ele não seria uma ilusão. Cloe afirma que ele pensa demais sobre isso, toda esta discussão é dada em um tom alto de voz, em claro clima de embate entre valores e desejo. O sexo para este casal se torna objeto de discórdia, e já não se traduz nos corpos dos amantes categorizados por Bataille.

O encontro entre Linda e Christopher, é exatamente o oposto dos corpos de Cloe e Christopher, que já constituem-se em corpos de poucas relações afetivas, nas quais o desejo de um pelo outro não condiz. Os corpos dos amantes são aqueles que buscam constantemente fazer conexões, relações afetivas, que buscam fazer entre si vibrar as intensidades. São corpos que estão em constante mudança e metamorfose, buscando convergir os seus com os outros corpos, levantam e apreendem as convergências dos próprios desejos com outrem. Desejar o outro é a forma de suprir o próprio vazio que existe no ser individual e erótico, o outro se encaixa como objeto de completude, como forma de romper o abismo que encontramos entre dois seres, e aqui trazido na figura de Cloe e Christopher como corpos alienados que não trazem a relação de completude, mas de independência e conflito. Sobre as relações de continuidade e descontinuidade segue a citação.

“A essência da paixão é a substituição da persistente descontinuidade por uma maravilhosa continuidade entre dois seres. Essa continuidade é, no entanto, particularmente sensível na angústia, na medida em que é uma procura em impotência e em temor. Uma felicidade calma em que o sentimento de segurança é dominante só tem sentido quando vem apaziguar um longo sofrimento que a precedeu. Para todos os amantes, há mais possibilidades de gozar duma desesperada contemplação da íntima continuidade que os uniu do que poderem duradouramente encontrar-se.” (BATAILLE, 1988:18)

No encontro com Linda e Christopher, que é veloz em todos os sentidos do ponto de vista de que os desejos são rapidamente supridos. Linda questiona Christopher o que ele procura na torre em que mora a personagem, ele diz que se interessa por coisas velhas, Linda responde que ela é jovem, e assim Christopher responde que isto o agrada ainda mais. Jovialidade, desejo, neste constructo da velocidade surgem no primeiro plano. Quando Linda convida Christopher a entrar no farol, sua casa, ela pede para que ele não se importe com o caos, o que ela chama de caos total. O encontro dos amantes prediz o caos.  Linda, já dentro da casa, diz que logo tinha percebido que era observada por ele e sua mulher no restaurante, Christopher até suscita em trazer ela junto, o que é negado por Linda. Christopher diz que tudo poderia ser uma mensagem para duas pessoas que se encontram. Aqui existe um devir ser-desejo, um devir que se expressa através de um objeto que está em constante mudança e que produz mudanças ao ser ao mesmo tempo bem como vemos na figura do encontro dos dois.

Linda, diferentemente de Cloe, não expressa uma figura feminina alienada. Nela, percebe-se uma liberdade e uma busca pela satisfação de seus desejos sem necessariamente depender de outro corpo. Em uma cena que explica esta afirmação, temos Linda e Christopher em um jogo de conquistas quando os dois sobem em um ponto alto do farol, Linda deixa Christopher sozinho, descendo para seu quarto, nesse momento ela se deita na cama tira a sua roupa e toca o seu próprio corpo.

Christopher nesta divisão dos corpos, neste processo de encontro e ruptura, permanece sozinho na torre pensando. Na torre, ou no ato/ação de subir em um lugar alto, tem-se valores referenciais interessantes, onde muitos interpretam que a intenção de Antonioni é mostrar a paisagem, no entanto o nosso entendimento transpassa essa concepção. As cenas com os atores em torres são muito comuns nos filmes do diretor, e subitamente são lugares de encontros, e ao mesmo tempo, de reflexão e de busca existencial. Christopher, naquele momento sozinho, está atrás de questões que avançam para o indivíduo, ali o personagem procura um momento íntimo e reflexivo consigo mesmo, o que o leva posteriormente a encontrar-se e ter com Linda um encontro íntimo muito descontraído e visivelmente despreocupado. Este momento de intimidade entre estes dois personagens do filme é o único.

Conduzindo então para a última e mais importante cena do filme, tomamos a citação de Bataille (1988:18) “o erotismo dos corpos tem sempre algo de pesado e de sinistro. Protege a descontinuidade individual e protege-a mais ou menos invariavelmente no sentido dum egoísmo cínico”. O nu na performance das personagens tem como finalidade não apenas a exposição do corpo, mas também a relação do indivíduo consigo mesmo, o que discutiremos a seguir.

“Mas esta oposição não é necessária. A aprovação da vida na própria morte é um desafio, tanto no erotismo dos corações como no dos corpos, é um desafio, por indiferença, à morte. A vida é o acesso ao ser: se a vida é mortal, a continuidade do ser não é. A aproximação da continuidade, a embriaguez da continuidade, dominam a consideração da morte. Em primeiro lugar, a perturbação erótica imediata dá-nos um sentimento que ultrapassa tudo, de tal forma que as sombrias perspectivas ligadas à situação do ser descontínuo caem no esquecimento. Depois, para lá da embriaguez aberta à vida juvenil, é-nos dado o poder de abordar a morte de frente e de ver nela finalmente a abertura para a inintingível e desconhecida continuidade que é segredo do erotismo e de que só o erotismo tem o segredo.” (BATAILLE, 1988:21)

Nas últimas cenas, Linda chega a praia sozinha, em seguida Cloe atende uma ligação de Christopher que diz que está na neve em Paris, a conversa por parte do homem, ganha tom de conciliação, já Cloe diz que vai deixá-lo dizendo que ela precisa buscar a sua essência. Logo após, Christopher diz que a neve costumava o acalmar, mas no momento ela o estaria irritando, Cloe diz que esta é a sua melhor companhia no momento.

O tom da conversa por parte de Cloe é de ruptura, ao que nos parece: o fim do relacionamento desse casal. Na próxima cena, Linda está completamente nua na praia e conduz uma performance de aproximadamente 20 segundos, sua expressão é de felicidade, liberdade e de satisfação, posteriormente ela deita-se na areia da praia como que se representasse um estado posterior ao gozo, um deleite ou descanso. Cloe chega à praia (as personagens não se encontram neste momento), ela abre seus braços respirando fundo, com a clara sensação de que havia se libertado de algo, ou tirado um peso de suas costas, logo em seguida ela repete uma performance nua na praia, com um tempo mais longo em relação a Linda, acompanhada com uma trilha musical, que é finalizada exatamente no momento em que Cloe percebe que não está sozinha, indo ao encontro de Linda que está e permanece deitada. Cloe se posta em pé, na cena com a câmera em plongeé, deixando a sua sombra projetar-se em Linda. O que nos dá a seguinte percepção, juntamente com a citação abaixo.

“A nudez, oposta ao estado normal, tem certamente o sentido duma negação. A mulher nua está perto do momento da fusão, que anuncia. Mas o objecto que a mulher é, ainda que sinal do seu contrário, sinal da negação do objecto, é ainda um objecto. É a nudez dum ser definido, mesmo que essa nudez anuncie o momento em que a sua altivez vai passar à confusão indistinta da convulsão erótica. Dessa nudez, o que inicialmente se revela é a beleza possível e o encanto individual; ou seja, e numa palavra, a diferença objectiva, o valor dum objecto comparável a outros comparável.” (BATAILLE, 1988:115)

O encontro das duas mulheres representa a aproximação e o comum estado de ânimo de ambas. O ápice da narrativa e o seu final abre-se a interpretação, mas o fato vem tornar claro tudo aquilo que discutíamos anteriormente neste ensaio acerca do que representa o ato de se colocar nua para estas personagens, e que constructo há nessa performance. Culmina em demonstrar o estado de libertação de algo que as reprime, no qual o indivíduo aqui toma parte de si. A performance no filme, é o encontro dos indivíduos; no caso Cloe, com o seu íntimo e ao mesmo tempo com Linda. A performance e o indivíduo que pratica só pode ser estabelecida por alguém que faz e não por alguém que apenas supostamente diz “O erotismo é, na consciência do homem o que o leva a pôr o seu ser em questão”. (BATAILLE, 1988:25).

A proximidade de Cloe com Linda é uma equivalência, no sentido de mostrar que os traços de ambas neste instante assemelham-se. Aqui, o abismo que existia entre elas, e seus estados psíquicos parece não existir mais. A situação de tensão durante todo o filme, faz a performance do nu uma espécie de libertação para Cloe, uma forma de expressão do seu estado de espírito, e entendida conforme Bataille (1988:81) que “sempre associada ao erotismo, a sexualidade física está para o erotismo como o cérebro para o pensamento”. Esta citação do teórico parece resumir a dimensão do corpo e mente em seus estados de ânimos na performance final.

“Seu corpo, como qualquer outro, não pára de se conectar a novos agenciamentos, o que faz com que ele mergulhe numa nova lista de afetos e sentidos; e, dependendo do grau desse mergulho, ele pode virar ainda ‘outro’, um completo desconhecido”. (ROLNIK, 1989, p.105). Baseado na citação de Suely Rolncik, nota-se na performance erótica das personagens uma dimensão de transe, um estado pleno de gozo e fruição do ser e do indivíduo que está em transformação naquele instante. O erotismo expressa o desequilíbrio no qual o ser a si próprio põe-se em questão, atravessando um estado consciente/inconsciente. O ser perde-se objetivamente ao mesmo tempo em que o sujeito liberta-se do objeto que o prende. Assim, conseguimos entender a performance do nu e o seu valor no plano erótico, justamente onde o eu se perde, cuja a identidade é perdida. É possível afirmar que o encontro do erótico perpassa a ação de “perder-se”. O encontro com o ser no erótico e, conseqüentemente, na performance só vem posterior a descontinuidade do indivíduo, quando ele nega a sua continuidade.

Se colocar nu é, também, explicar a condição do erótico, segundo Bataille (1988:31) “a proibição só pode ser observada no temor que lhe confere a quota parte de desejo que é dela o sentido profundo”. Colocar-se nu como elemento de transgressão, rompendo com a formalidade que o mundo lhe dá. Para Cloe não lhe é proibido ficar nua, mas lhe é proibida a forma de expressar. O nu, como objeto de transgressão, incita o seu estado de ânimo e ao mesmo tempo lhe serve como catarse da sua violação intima.

É claro que no cerne do questionamento de quem se posta nu, e também na figura do espectador que está diante do corpo nas representações como performances e filmes, o corpo que atua nos traz a reflexão e nos incita como espectadores a entrar na dimensão cognitiva do corpo da performance na sua catarse como expressão, no seu engajamento como forma de expressão. Em primeiro plano, o corpo nu, em uma concepção artística, como a cinematográfica não é único e exclusivamente um objeto que quer chocar ou tencionar valores morais. O corpo nu é um corpo em forma de expressão, talvez por isso Antonioni seja um dos grandes cineastas do corpo. No plano das discussões sociais, podemos compreender que o corpo feminino é o corpo da repressão, logo o corpo nu da mulher é objeto de questionamento, reflexão, afeto e ação sob o próprio corpo.

“O que se deseja é a alienação; o corpo manipulado-manipulável; não o corpo como tal, mas o corpo alienado, o corpo submisso, o corpo despossuído de toda dignidade” (COMOLLI 2008:204). A performance final do filme, tendo como locação a praia denota claramente a libertação de um corpo anteriormente reprimido. A nudez de Linda e a de Cloe, quando colocadas em cena, demonstram os seus ânimos que agora se equiparam. O filme acaba com Linda resolvida consigo mesma e Cloe projetando a sua figura/sombra nela.

Neste ensaio, insistimos em avançar na discussão e afirmação de que o corpo feminino é o corpo da repressão, respondendo as duas questões inicialmente formuladas e trazendo-a novamente para o plano social, no qual evidenciamos que historicamente a mulher carrega esta “bagagem” simbólica para os dias de hoje. Sexo, desejo, erotismo, interdição e a imposição do pensamento burguês na alienação são temas abordados nas obras de Foucault, Bataille e Rolnick; permitindo-nos assim não traduzir, mas desdobrar estas concepções no filme de Antonioni. Em The dangerous thread of things de Eros a alienação gira em torno do erótico e não obrigatoriamente sob o sexo, sendo talvez este o grande tema condutor de boa parte das tramas de Antonioni. A sensação nos seus filmes é de pessoas rodeadas de bens e ao mesmo tempo com uma falta, um abismo existencial sem igual, o que resume uma falta de erotização dos corpos de nossa sociedade. Conforme Deleuze (2005:15) “as visões estéticas de Antonioni não podem ser separadas de uma crítica objetiva (nós estamos doentes de Eros, mas isto porque o próprio Eros está, objetivamente, doente)”.

* Régis Orlando Rasia é graduado em Publicidade e Propaganda pela UNIJUÍ, pós-graduado em Cultura e criação pelo SENAC Porto Alegre e Mestrando em Multimeios pela UNICAMP.

Referências Bibliográficas:

BATAILLE, Georges. O erotismo; Tradução João Bérnard da Costa. Lisboa: Ed. Antígona, 1988. 234p.

COMOLLI, Jean-Lous. Ver e poder a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte, Ed UFMG. 2008, 373p.

CALIL, Rircado. A pornochanchada toma Viagra. http://www.brasilcultura.com.br/perdidos/a-pornochanchada-toma-viagra/ acesso em 15/06/2010

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. 338 p.

FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque 13. ed. Rio de Janeiro EdGraal, 1999, 152p.

________________. Historia da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque 13. ed. Rio de Janeiro EdGraal, 1998, 232p.

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MAISONNEUVE, Jean. Introdução a psicossociologia. São Paulo. Ed. Nacional, 1977. 238p.

ROLNIK, Suely . Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, c1989. 304p.

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