Audiovisual, arte mestiça

Discussões antigas e ainda não superadas são a principal matéria de diversos ensaios e artigos que circulam pela teoria do audiovisual. É crendo que estas discussões estão sempre intimamente ligadas à roda da arte e da criação, que este artigo intenta introduzir mais uma questão importante ao modo de enxergar a arte audiovisual, que tem a ver diretamente com sua natureza íntima de objeto mestiço. Para tanto, esta investigação faz uso da teoria da mestiçagem, estudada, entre outros, pelo grupo de Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem, coordenado pelo professor Amálio Pinheiro na PUC-SP.

Mas o que a arte audiovisual tem de objeto mestiço? A teoria da mestiçagem tem uma longa história de intentar imprimir novos olhares a eventos aos quais as velhas teorias não dão mais cabo. Antes, devemos dizer que esta busca por novos olhares faz parte da própria história humana e colaboram conosco nesta mesma linha, por exemplo: a pansemiótica de Charles S. Peirce; o conceito de semiosfera da semiótica russa; a geometria fractal ou geometria não-Euclidiana dos objetos; a noosfera de Chardin e a teoria da complexidade e religação dos saberes de Edgar Morin, entre muitos outros. Meio de expressão rico em modos-de-usar, de funcionais à artísticos, o meio audiovisual impregna a arte audiovisual de uma poética particular, onde emergem tensões do que tomamos por objeto mestiço. Tratando daquilo o que a mestiçagem tem de tensão do híbrido, do despaternalizado, do multiautoral; daquilo que vai além das heterogeneidades simples para, no pensamento mestiço complexo, enxergar não o que a identidade tem de unitário, mas o que tem de desejo criador; naquilo o que tem de “processo contínuo de redefinir-se e de inventar e reinventar sua própria história” (Bauman, 2006, p. 13).

No contexto audiovisual, só nos é possível pensar em identidade como desejo, como busca, como aquilo o que Janina Bauman (1988) chamou de “o sonho de pertencer”, o sonho por regozijo que intenta transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e operar na tradução dos elementos de fronteiras que compõem a tensão do mestiço. A identidade nestes termos está exato em “tentar alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos; separados, mas inseparáveis; independentes, mas unidos” (Bauman, 2006, p. 16). No que esses elementos tem, não de panaceia; mas de “combates jamais ganhos e sempre recomeçados” (Grizinsky, 2001, p. 320). É neste sentido que a teoria da mestiçagem vai além do cruzamento de raças e leva o conceito para a cultura, onde termos como “fusão” e “diversidade” são descartados, por acabar incorrendo em equívocos como 1) pensar que a fusão seria capaz de apagar as diferenças; 2) fazer crer exato o contrário, que operar na diversidade seja isolar e encher de brilho os elementos de diferença – isto é isto, aquilo é aquilo.

A mestiçagem de que trata Pinheiro e seus colaboradores em O meio é a mestiçagem (2009) vê na ação de mestiçar uma ação confluente, criadora e natural de alimentar-se do outro, de pôr para dentro do corpo, incorporar, a partir do “bote canibalizante no alheio, em vaivém e ziguezague, suas linguagens e civilizações”. O mestiço tem a qualidade de criar espaços múltiplos e complexos de instabilidade e de combate, tensões com as quais o processo de criação, já tenso, múltiplo e complexo em si, se complexifica ainda mais. Por isso analisar essas questões no audiovisual é também incluir nela seu processo complexo entre mídias, criadores e linguagens.

O audiovisual nasceu fazendo uso pródigo de tudo o que veio antes dele. Quando o cinema ganhou a fala em 1930, logo requisitou o serviço de escritores. Com o sucesso da cor, arregimentou pintores. Recorreu a músicos e arquitetos e cada um contribuiu com sua visão e forma de expressar-se. Mas a verdade é que o audiovisual se formou, e permanece a formar-se hoje ainda, antes de mais nada, de si mesmo. Ele inventou a si e imediatamente se copiou, se reinventou, e se reinventa. Inventou até mesmo funções ainda desconhecidas: operador de câmera; diretor; montador; engenheiro de som; diretor de arte, e todos, gradualmente, desenvolvem e aperfeiçoam seus instrumentos de trabalho, com cada grande cineasta enriquecendo o vasto e invisível dicionário móvel da criação audiovisual que todos nós consultamos. Uma linguagem que continua em mutação semana a semana, dia a dia, como um reflexo veloz das relações obscuras, multifacetadas, complexas e contraditórias que constituem o singular tecido conjuntivo das sociedades humanas da qual o audiovisual é parte (Carrière, 2006: p. 22-23).

A arte audiovisual é uma arte atravessada pelo entre: uma arte do entre formatos, uma arte do entre meios, uma arte do entre criadores, uma arte do entre linguagens. Assim, a única forma dos habitantes desse mundo de signos, objetos e interpretantes móveis e ilimitados se comunicarem e se entenderem é usando formas tradutórias que atravessem as fronteiras. São estas formas tradutórias o próprio cerne da natureza audiovisual, são a ponte, o barco, o recheio, o religare, a comunicação que só é capaz de ligar pontos aparentemente sem comunicação por meio da ambivalência natural (o bivolt) dos objetos mestiços. É exato esta ambivalência a responsável por religar real/imaginário, velado/revelado, maquínico/humano, como também por fazer se comunicarem entre si conhecimentos explícitos de outras artes ou por agregar-se a meios como a netmídia e o videogame. No entanto, devemos atentar para o fato de que esta mestiçagem não é um estado excepcional que geraria um caos temporário, mas sim uma condição permanente e determinante dessas relações.

É aqui que começa o mistério. Ao contrário da maior parte das invenções que se transformam em ferramentas e acabam arrumadas nos angares, o cinema escapa a este destino prosaico. O cinema é talvez a realidade, mas é também outra coisa, geradora de emoções e de sonhos. É o que nos asseguram todos os testemunhos: os espectadores constituem o próprio cinema, que não é nada sem eles. O cinema não é a realidade, uma vez que o dizemos. Se a sua irrealidade é ilusão, é evidente que essa ilusão é, apesar de tudo, a sua realidade. (Morin, 1997, p. 26-27)

Dos brinquedinhos ópticos das feiras de variedades ao videogame, dos espetáculos de fantasmagoria ao home theather, do cinema à TV passando pelo YouTube, não há como não dizer que a riqueza de usos e formatos do meio audiovisual não influencia diretamente o conceito da arte audiovisual e de como esta arte é recriada ao longo do tempo pelo homem, suas culturas e suas civilizações.

Não experimentamos no Brasil a concorrência de um marco originário, uma espécie primeira, um mito fundador, que já se confundiu com a ideia alheia de “descobrimento” e com a ideia, não menos equivocada, de um mito indígena; a mestiçagem é de fato um modo próprio nosso de enxergar as coisas para além dos seus marcos fundacionistas. As tomadas planetárias, globalizantes, amedrontam determinadas culturas hoje, enquanto à cultura brasileira e a outras também de passado colonial, onde os processos culturais decorreram longamente marcados pela experiência do estar e viver entre outros, o mestiço é tomado como o elemento tradutório entre os diferentes sistemas de códigos que intentam comunicar-se, a um só tempo, por exemplo, no audiovisual. Vendo por este lado, as teorias do audiovisual, em seu processo entre mídias, criadores e linguagens, torna-se um pouco mais aclarada com o olhar da teoria da mestiçagem, uma vez que das artes, o audiovisual é talvez a mais mestiça.

É assim que, o que na teoria do audiovisual desprezar esta tensão natural dos filhos mestiços, estará na verdade correndo para outra direção que não a da confluência tensiva e sustentadora desse diálogo criativo e tradutório das fronteiras semióticas que sustentam o sistema audiovisual. Foi assim que este artigo optou por tomar a arte audiovisual como uma arte essencialmente do entre, da tradução, do recheio, com todos as consequências que advêm disso, onde sabemos, cabem aí muitas outras elucubrações igualmente importantes.

Patrícia Dourado é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC-SP, onde desenvolve pesquisa em processo de criação audiovisual.


Referências

BAUMAN, Janina. A dream of belonging: my years in postwar poland. London: Virago Press, 1988.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade – Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Carrière, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Grizinsky, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia da Letras, 2001.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D’água Editores, 1997.

Pinheiro, Amálio (org). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação da Letras e Cores, 2009.

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