Made in England

por Felipe Diniz*

Já disseram que o cinema britânico é o pior do mundo, bem como já afirmaram que não existe nada mais chato que um filme inglês, repleto de diálogos maçantes e piadas inteligíveis apenas para os conterrâneos de Elizabeth II. Quem nunca ouviu estas ou outras expressões talvez até mais depreciativas sobre o cinema da terra da Rainha? Pois bem, para desespero de alguns e felicidade de outros, em julho, o SESC São Carlos exibe quatro filmes made in England, alguns deles, por sinal, contradizendo o senso comum, são muito bons.

O Sonho de Cassandra, de Woody Allen; Control, de Anton Corbijn; Irina Palm, de Sam Garbaski; e Efeito Dominó de Roger Donaldson; estes são os títulos que o SESC exibe em julho, exatamente nesta ordem. O leitor mais atento certamente estará se perguntando: mas estes diretores são ingleses? Correto, eles não são propriamente o que se possa chamar de inglês. É preciso admitir que Woody Allen é completamente nova-iorquino, que Sam Garbaski é alemão, que Anton Corbijn nasceu nos Países Baixos e que Roger Donaldson é australiano. Ou seja, nenhum dos quatro é um baluarte da inglesidade tradicional (se é que ela ainda existe fora dos portões de Buckingham). Mas será mesmo que estes filmes não podem ser considerados filmes ingleses? Ou melhor, reformulando a pergunta, hoje em dia, o que é um filme inglês?

O Sonho de Cassandra narra a história de dois irmãos de classe média baixa, Ian (Ewan McGregor) e Terry Blaine (Colin Farrell), que têm ambições bastante diferentes. Enquanto Ian ajuda o pai (John Benfield) a contragosto no pequeno restaurante da família, juntando economias para tornar-se um investidor financeiro e ascender socialmente, Terry, um mecânico mais desligado da idéia de enriquecer, não pára de apostar em cachorros, cavalos e cartas, até acumular uma dívida de 90.000 libras. Em busca de ajuda financeira eles recorrem a um tio rico da família (Tom Wilkinson) que termina por revelar-se um chefão mafioso. O tio se dispõe a cobrir o prejuízo de Terry e ajudar financeiramente Ian, mas exige um favor em troca, que os sobrinhos matem um desafeto seu (Phil Davis).

Allen parece lidar muito bem com sua trajetória de desterritorialização e, abusando do sotaque britânico, o diretor filma pela primeira vez em Londres, com um elenco desprovido de atores norte-americanos. Cassandra´s Dream herda de Match Point o mesmo tom sombrio, o humor negro e o mote do alpinismo social, e apesar de não empolgar tanto quanto seu predecessor, o filme tem uma trama envolvente, com um tom muitas vezes sinistro e um interessante componente: o dilema moral de Terry. A atuação de Farrel, por sinal, surpreende pela sutileza das nuances psicológicas, bastantes diferentes dos trabalhos que o ator costuma realizar nos filmes de ação em que se envolve do outro lado do Atlântico. Os fãs acostumados ao humor de Allen podem estranhar a abordagem de Cassandra´s Dream, mas o toque sutil de tragédia grega que permeia a história, bem como o olhar aguçado de Allen para revelar a dinâmica social que o interessa, certamente não desapontam.

Control explora a vida de Ian Curtis, vocalista da extinta Joy Division que se sucidou há mais de 20 anos. O filme descarta o mito Curtis e a aura de ídolo do rock para focar-se no drama pessoal do músico e na ressaca do movimento punk. Com uma trilha musical marcada por canções como “Love will tear us apart”, “Atmosphere”, “She’s lost control” (que inspira o título do filme) e “Transmission”, Control não se pretende uma cine-biografia do rock e sim um filme sobre o sofrimento de Curtis, muito bem interpretado por Sam Riley.

Control é o primeiro longa dirigido por Anton Corbijn, o fotógrafo que foi amigo pessoal de Ian Curtis, e, por isso mesmo, optou por uma abordagem que evita psicologizar seu personagem central, envolvendo-o numa aura de mistério. O filme não aponta para a criação de um mito e sim para o tormento que a vida do músico vai se tornando. Corbijn imprime na película o mesmo aspecto e textura que consegue na fotografia, enquadrando as ações de forma descentralizada, manifestando certo desinteresse pelo objeto do olhar, renegando-lhe o canto do quadro ou até mesmo o segundo plano para, justamente, inscrevê-lo numa realidade mais ampla. Talvez para resguardar-se, Corbijn evita se aproximar demais de Curtis, assim como foge das manifestações excessivas de afeto.

Irina Palm conta a história de Maggie (Marianne Faithful), uma cinqüentona viúva cujo hobby é jogar cartas com as amigas em uma pacata vila perto de Londres. Seu único neto, Ollie, é portador de uma doença rara e, para pagar o tratamento, ela sai desesperada atrás de emprego. Um dia descobre um clube londrino anunciando vaga para recepcionistas, o eufemismo do anúncio está claro no nome do clube: Sex World, cujo dono, o grego Miklos (Miki Manojlovic), acaba de trazer do Japão uma novidade: suas atendentes masturbam os clientes sem que eles as vejam, podendo, assim, soltar a imaginação. Maggie é contratada por causa de suas “mãos macias” e, em poucos dias, torna-se a famosa e requisitada Irina Palm, que segue pagando o tratamento do neto enquanto se desvencilha das amarras da tradicional moralidade inglesa.

Sam Garbaski realiza um trabalho e tanto ao dotar uma Marianne Faithfull, nem de longe parecida com o mulherão que namorou Mick Jagger nos anos 60, acima do peso e envelhecida de uma sensualidade sutil, delicada, a mesma delicadeza que ele parece adotar ao relacionar sexualidade e terceira idade, um tema muitas vezes espinhoso e até hoje tabu. Garbaski faz um filme interessante e oferece um olhar bastante inusitado sobre a tradicional sociedade inglesa ao transformar encontros para o chá da tarde em sessões de masturbação no clube Sex World.

Fotos incriminadoras de um membro da família real fazem agentes secretos britânicos financiarem um dos mais extraordinários roubos a banco da história da Inglaterra. Essa é a versão trazida em Efeito Dominó para o nunca solucionado “crime do walkie-talkie”, como ficou conhecido na Inglaterra dos anos 70. As fotos estão num cofre de banco que pertence a Michael X, um líder do movimento negro vinculado à prostituição e ao tráfico. O MI-5, serviço secreto britânico, não prevendo que os bandidos contratados para o roubo vão acabar vendo as fotos e resolvendo tirar algum proveito, prepara um falso assalto ao banco na Baker Street que, ironicamente, trará mais problemas que soluções.

Efeito Dominó devassa os backstages do poder inglês, seja ele oficial ou paralelo, mas talvez o filme explore pouco as possibilidades do conflito que aborda, principalmente as relações escusas entre a autoridade oficial e o mundo do crime, mas de certa forma o olhar de Donaldson parece focar-se no “efeito dominó” desencadeado pelas comprometedoras fotos de forma aguçada e, de certo modo, instigante.

Os filmes exibidos em julho no SESC São Carlos refletem a globalização da atividade cinematográfica; agora não apenas a exibição, mas também a produção está cada vez mais descentralizada, permitindo assim que diretores de diversas nacionalidades incluam suas obras sob a etiqueta made in England, mesmo que eles não o sejam. O trânsito de profissionais assim como as co-produções estrangeiras é muito comum hoje em dia, e estes processos parecem querer acelerar-se ainda mais. Talvez nunca mais seja possível assistir a um “legítimo filme inglês”, nem mesmo a um filme “100% brasileiro”, resta saber se esse processo será ou não benéfico e se redefinir as fronteiras da nacionalidade cinematográfica é uma ameaça ou um impulso para a diversidade das cinematografias nacionais.

*Felipe Diniz é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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