Sin City – Análise comparativa: versão Quadrinhos e versão Cinema

Eduardo Rodrigues *


RESUMO

 

O objetivo deste artigo será  analisar a adaptação para o cinema da Graphic Novel  “Sin City – O Assassino Amarelo”¹ escrita e desenhada por  Frank Miller em 1996 e  transformada em filme por Robert Rodriguez em 2005. A escolha da adaptação em questão tem como objetivo compreender o grau de fidelidade da obra cinematográfica em relação à identidade visual da obra original e também apreender as soluções criativas presentes na transposição para o cinema. Para o desenvolvimento deste estudo, referências foram pesquisadas nos conceitos básicos da narrativa dos quadrinhos, compilados por Will Eisner, e de pesquisadores como Ismail Xavier, Umberto Eco e E.M.Foster sobre aspectos importantes no processo de adaptação.

Introdução:

A Graphic Novel Sin City  foi criada pelo roteirista e desenhista Frank Miller no início dos anos 90 e representa uma nova fase do autor, saturado de produzir histórias relacionadas a super-heróis. Ele buscou uma renovação do seu estilo narrativo e começou a mesclar sua tradicional crueldade presente nos roteiros com um visual com marcas “noir”², numa clara referência aos filmes policiais dos anos 30 e 40. Miller criou a mitológica cidade chamada “Basin City”, apelidada por seus habitantes como “Sin City” – título para destacar claramente a decadência dessa pequena metrópole mostrada como corrupta e violenta em todos os níveis sociais.

No longa-metragem de Rodriguez foram adaptadas três histórias de Sin City, mas neste artigo será analisado somente o álbum O Assassino Amarelo; comparando-se as duas versões ( cinematográfica e Graphic Novel ), a fim de identificar as mudanças inevitáveis que uma adaptação desse nível exige, bem como destacar as afinidades existentes. A trama de O Assassino Amarelo conta a história de Hartigan, policial veterano obcecado por fazer justiça na “cidade do pecado”,  a despeito de seus colegas policiais omissos e de outras autoridades corruptas. Ele é movido a uma verdadeira caçada contra um marginal pedófilo e assassino, chamado Roark Jr., filho de um importante senador. Em virtude da influência de seu pai,  Roark Jr. nunca é preso pela polícia desonesta de Sin City. Hartigan, à revelia dessa situação, salva a última vítima de Roark Jr, uma frágil garotinha chamada Nancy, de 11 anos  de idade. Neste resgate o velho policial acaba jogando toda sua fúria e revolta contra o promíscuo filho do Senador Roark, mutilando-o de várias formas, para que ele nunca mais ataque sexualmente outras crianças. Hartigan, além de ser preso, é acusado de ser o responsável pelos crimes contra as crianças vítimas de Roark Jr. e preso por muitos anos numa prisão claustrofóbica.

A única personagem justa com Hartigan é a menina Nancy. Ainda no hospital ela demonstra gratidão e carinho a seu salvador, diante de tantas injustiças. Algumas novas reviravoltas surgem na narrativa até que, finalmente, oito anos depois, Hartigan sai da prisão. Em liberdade, ele encontra Nancy,  agora com 19 anos, que se mostra como uma lindíssima stripper. Nesse momento, o personagem que dá o título à história surge de forma definitiva, representado pelo misterioso homem de pele amarelada.

A história culmina com a surpresa sobre a identidade do homem amarelo, seguida por seu confronto contra Hartigan e, finalmente, com o resgate da bela Nancy das forças antagônicas da história. No aspecto de construção de personagens, é importante lembrar a repetição de idéias que Miller faz ao criar o personagem Hartigan, pois ele é idêntico ao personagem Bruce Wayne, de outra Graphic Novel de grande importância na história dos quadrinhos:  “O retorno do Cavaleiro das Trevas” ( Miller, 1986 )³.

“O Retorno do Cavaleiro das Trevas”, 1986
“Sin City – The Yellow Bastard”, 1996

Além da semelhança física entre os dois personagens, eles demonstram temperamentos similares. Ambos têm uma personalidade impulsiva e cruel, buscam a proteção de inocentes, mesmo que isso ponha em risco sua própria vida, possuem problemas de saúde que são agravados nas vésperas de uma batalha, estão acima dos 50 anos e, por fim, têm opiniões contrárias aos valores da sociedade. Em suas respectivas jornadas, ambos lutam contra um sistema social corrupto. Jornadas que parecem estar associadas ao “caminho de provas”, definido pelo pesquisador de mitologias Joseph Campbell.

“(…)  Tendo cruzado o limiar, o heroi caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosioamente fluidas e ambíguas na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas . Esta é a fase favorita do mito-aventura.” (CAMPBELL, 1949, p. 102)

Estes personagens são complexos, imperfeitos e, muitas vezes, dúbios. Segundo o autor E. M. Foster, personagens com aspectos bons e ruins  e considerados imprevisíveis são chamados de “personagens redondos”.

“O teste para uma persgonagem redonda está nela ser capaz de supreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda. Possui a incalculabilidade da vida – a vida de dentro das páginas de um livro. E usando esta personagem, às vezes só e, mas frequentemente em combinação com outra espécie, o romancista  realiza sua tarefa de aclimitazação  e harmoniza a raça humana com outros aspectos de sua obra” (FOSTER, 1974, p. 61)

O clima “noir” no traço de Miller merece um destaque especial. Ele usa com bastante habilidade a idéia de “requadro” como recurso narrativo (EISNER, 1999). Eisner explica que a ausência ou o formato da moldura dos quadrinhos pode se tornar parte da narrativa da trama e esclarece que a fatla – ou mesmo mudança – da tradicional moldura encontrada nas histórias em quadrinhos podem colaborar com a dimensão do som representado na história e  favorecer uma melhor ilustração do clima emocional em que ocorre a ação,  definindo assim uma atmosfera na página como um todo; normalmente,  isso aumenta o envolvimento do leitor na narrativa. Miller adota também o conceito“Página como Metaquadrinho” (EISNER, 1999, p 63 ) de forma abundante nos álbuns de Sin City, ou seja, uma única ilustração ocupando uma página inteira, muitas vezes com ausência de texto, que exige do leitor um olhar mais demorado e contemplativo das cenas, principalmente para  instigar as pausas dramáticas.

A adaptação para o Cinema:

Similar aos álbuns de Sin City,  a montagem do filme também adotou uma narrativa não linear, como, por exemplo, personagens que morrem numa seqüência e voltam a aparecer  num arco dramático posterior, ou eventos que são vistos mais de uma vez,  porém de pontos de vista diferentes. A produção do longa-metragem, para ficar fiel a sua fonte, mostrou um resultado bastante surreal. Foi explorada uma luz dura, planos de câmera baixa e um visual que representa várias épocas. Embora a história não seja datada, ela tem marcas predominantemente “noir”, que remetem aos filmes de detetives e gângsteres dos anos trinta, quarenta e cinqüenta.

Alguns efeitos usados na Graphic Novel foram adotados também no filme, pelo diretor Robert Rodriguez, como a representação do sangue; ele trabalhou o sangue dos personagens como nos quadrinhos, ou seja, grandes borrados totalmente brancos, que tinham seus contornos valorizados em meio ao universo preto e branco. Entrentanto, a representação de ferimentos teve excessões, como, por exemplo, numa cena de tortura de Hartigan; nesta cena, o personagem tem todo o seu rosto manchado de sangue vermelho. Este caso foi uma adaptação livre do diretor em relação à Graphic Novel, escolha esta que trouxe maior dramaticidade à cena.

A manifestação da cor surge em outros momentos de forma sutil, mas nunca gratuita. Na cena do bar, a cor se manifesta como uma fonte que aquece o ambiente com sensualidade, tal sensualidade é reiterada por uma luz irradiada pelo palco sobre a bela Nancy, então adulta, a qual desperta os ânimos de todos a sua volta.

É interessante perceber como a linguagem cinematográfica trabalha as cores nesta cena, pois ela representa também o emocional dos personagens envolvidos: enquanto Hartigan fica surpreso e seduzido ao reencontrar Nancy no palco, ele vê o ambiente colorido e iluminado, entretante, quando Hartigan se vira para seu antagonista – representado pelo homem de pele amarelada -, sentado numa das mesas do bar,  a imagem parte rapidamente para o preto e branco e para a penumbra.

O retorno dos planos monocromáticos ocorre no momento que  Hartigan conclui que foi vítima de uma manipulação por parte dos vilões da trama. Essa transição das cores acompanha a mudança emocional do personagem, que se alterna da surpresa e do desejo para a lucidez e a preocupação. Enfim, tudo isso seria a transição da mudança psicológica de Hartigan, com cores quentes representando a emoção e o preto e branco representando a razão. A adaptação de canais midiáticos para o cinema sempre pôde favorecer ajustes  como esses, sendo alguns sutis e outros, mais evidentes. Tudo parece depender de quais recursos estão disponíveis para cada forma de manifestação artística, seja o cinema, quadrinhos ou mesmo literatura. Ismail Xavier explica sobre este ascpecto:

“(…) O escritor expressa a sua visão de mundo selecionando e combinando palavras num certo estilo; o cineasta, realizando as mesmas operações com imagens. E o estilo deste define-se pela maneira como trabalha o material plástico do cinema, conferindo unidade aos planos separados e agindo de modo claro sobre a consiciência do espectador: emocionalmente, pelo ritmo controlado das imagens e pela pulsação dos próprios episódios mostrados; ideologicamente, pela força conotativa de seus enquadramentos e pelo poder de inferência contido na sua montagem” (XAVIER, 1977, p. 43).

O cinema explora a narrativa constituída por imagens combinadas dentro de montagens específicas. O uso desses recursos pode justificar mudanças em uma adaptação vinda da literatura ou mesmo dos quadrinhos.

Umberto Eco lembra, por exemplo, das diferenças na montagem e continuidade entre o cinema e os quadrinhos:

“(…) o apelo ao cinema não nos pode fazer esquecer de que a estória em quadrinhos “monta” de modo original, quando mais não seja porque a montagem da estória em quadrinhos não tende a resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma especie de continuidade ideal atraves de uma fatual continuidade.” (ECO, 2008, p. 147)

É importante ressaltar que a  linguagem dos quadrinhos propicia uma autonomia ao leitor quanto à velocidade da recepção das informações, favorecendo longos textos que complementam a intensidade visual dos desenhos sem necessariamente comprometer o fluxo da trama. Cada leitor assimila as informações no seu tempo e conveniência, sem a obrigação de se sujeitar à velocidade rígida da montagem fílmica que, (linearmente ou não), apresenta frames, planos, cenas, seqüências e atos sem interrupções. Sendo assim, uma adaptação cinematográfica pode exigir um formato mais sucinto e objetivo em relação a sua fonte inspiradora. Mas, mesmo assim, a adaptação deve representar de forma justa e completa as idéias da obra original. Dentro deste contexto, Rodriguez se apropria com facilidade da estética visual de Miller: muitas cenas dos quadrinhos das Graphic Novels são reproduzidas fielmente nos planos do filme.

Conclusão:

A adaptação de Sin City é sem duvida um bom exemplo da migração bem sucedida dos quadrinhos para o cinema. Aproveita-se com intensidade dos pontos em comum entre os dois canais midiáticos e reestrutura com criatividade os momentos em que releituras são necessárias na conversão da Graphic Novel para a versão em filme. Estas releituras passam,  por exemplo, por cortes de sequências inteiras presentes na versão dos quadrinhos, as quais, na adaptação cinematográfica, teriam um foco redundante e desnecessário.

Outra diferença que vale menção é que, apesar de se  manter o visual preto e branco, a versão cinematográfica utilizou pontualmente o uso de cores adicionais, a fim de destacar momentos de violência, ou mesmo para trazer mensagens metafóricas a determinadas cenas. Este recurso enriqueceu a versão cinematográfica, agregando sutilmente valores à história.

Apesar de todas essas diferenças, a adaptação também mostrou muitas semelhanças com a obra original. Por exemplo,  muitos quadrinhos foram transformados  em planos no filme e os textos das falas dos personagens foram reproduzidos de forma literal pelos atores. Por fim,  o visual do elenco, dos cenários e dos figurinos foi muito similar aos desenhos de Miller.

Esta constatação mostra que ajustes numa adaptação são inevitáveis, mas, apesar destas mudanças, é possível manter-se fiel à proposta da obra original em muitos momentos. Talvez, o essencial mesmo seja manter o espírito da obra original vivo em qualquer forma de adaptação.

¹ Sin City : That Yellow Bastard,, graphic  novell publicada originalmente em fevereiro de 1996, pela Dark Horse Comics.

² “noir” (do francês, filme preto) estilo de filmes  iniciado na década de 30, caracterizada por sua violência e visão amarga, sendo um gênero muito comentado tanto por seus aspectos sociológicos quanto narratológicos. Geralmente relacionada a tramas policiais. (AMOUNT, Jacques & MARIE, Michel, 2006. Dicionário Teórico  e Crítico de Cinema., p212).

³ “Batman: The Dark Knight Returns”, publicado pela  DC Comics em  1986.

* Eduardo Rodrigues é graduado em Ciência da Computação pela PUC PR – Curitiba (1992), fez especialização em Cinema Crítico  na UTP – PR (2002), é mestrando do Curso de Comunicação e  Linguagens pela UTP – PR. É  Diretor e Roteirista do curta metragem DEJA VU (Ficção  – 2004) além de ter feito Direção, Produção e ser Co-Roteirista do curta metragem: RENASCER (Ficção – 2006)

Referências Bibliográficas.

FOSTER, E.M. Aspectos do Romance. Porto Alegre. ed. Globo. 1974

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo. ed Pensamento-Cultrix Ltda,  2008.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico. Rio de Janeiro.ed. Paz e Terra.1977

ECO, Umberto. Apocalíticos e Integrados. São Paulo. ed. Perspectiva S.A.2008

EISNER, Will.Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo. ed. Martins Fontes Ltda., 1999

MILLER, Frank.Graphic Novel The Return of Dark Knight . ed. DC Comics, 1985

MILLER, Frank.Graphic Novel That Yellow Bastard, ed. Dark Horse Comics, 1996

Referências filmográficas

RODRIGUEZ, Robert. Sin City. EUA 2005. 126 minutos.

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