Na segunda metade do século XX foram lançadas diversas obras a respeito do Holocausto e dos horrores ocorridos neste período, como por exemplo, Noite, de Ellie Wiesel, e O diário de Anne Frank[1], por meio do qual Otto Heinrich Frank publica para o mundo os relatos de sua filha, morta no holocausto.
São obras que inspiram profundo respeito e admiração pelas vítimas do holocausto e que eternizam os momentos de crueldade e terror que os perseguidos sofreram neste vergonhoso período da história.
MAUS, de Art Spielgman, não é apenas mais uma destas obras. Publicado primeiramente na Revista Raw entre os anos 1973 e 1991, MAUS conferiu o prêmio Pulitzer ao autor e representa um novo tipo de literatura baseada no holocausto, inserindo este assunto no universo de histórias em quadrinhos.
Por meio da fala de seus personagens e de desenhos, Art Spielgman conta as memórias de seu pai, Vladek Spielgman, do período da Segunda Guerra mundial, através deste estilo narrativo que permite, de forma surpreendente, expressar de maneira tão forte as situações enfrentadas durante este período, por aqueles perseguidos pela Alemanha nazista, enfocando especialmente os judeus. Por meio de desenhos e balões, Art Spielgman conseguiu realizar uma obra que trata de um assunto tão pesado e sério quanto o holocausto, em uma obra fluente e prazerosa de se ler, que nem por isso deixa de chocar e afligir o leitor que se depara com as situações de angústia e crueldade narradas no livro.
Diferente também em relação ao tratamento dos personagens, neste caso, apesar de pela narrativa o leitor ser levado a admirar Vladek por tudo o quê passou, Art Spielgman não deixa de mostrar o seu lado ”humano”, mostrando-o como alguém metódico, avarento e racista, e em decorrência de todas estas características, alguém com quem se é extremamente difícil conviver[2].
O recurso usado por Art Spielgman que mais se destaca no livro é a caricaturação dos personagens, que são transformados em animais, sendo, entre outros, os judeus, porcos; os alemães, gatos; os poloneses, porcos e os norte-americanos, cães.
Esta opção é de extrema importância para que, primeiramente, se aceitem os fatos ocorridos, descritos tão friamente que pode-se pensar que mesmo na história real os seres humanos perderam seus traços humanos, seja pela crueldade que infligiram aos seus semelhantes, seja pelas situações deploráveis que outros passaram para sobreviver ao holocausto. Somente colocando-os como animais que são naturalmente “caça e caçador” é que se pode chegar perto de compreender a frieza e naturalidade com que os nazistas perseguiram os judeus, e seria até mesmo confortante acreditar que como os animais que os representam no livro, agiram por instinto, e não como seres providos de razão.
Outro efeito obtido por meio desta “desumanização” dos personagens é a facilidade que o leitor encontra para identificar-se com os personagens.
Um desenho humano que seja uma representação muito realista implica em uma dificuldade de identificação do leitor com o personagem representado. Mas ao tratar-se de um desenho caricatural, os detalhes desaparecem permitindo que o espectador se “enxergue” no personagem com maior facilidade[3]. (McLoud, 1995, p.41).
Se Art Spielgman optasse por fazer os personagens caracterizando-os de forma realista, como humanos, não obteria o efeito de identificação que se conseguiu assim:
Com a representação de animais, é possível identificar todos os judeus como ratos, nazistas como gatos e poloneses como porcos. Desta forma, a história deixa de ser apenas a de Vladek, mas de todos os judeus que foram vítimas do holocausto. A obra deixa de ter um caráter pontual, e ainda que os personagens e fatos sejam reais, que alguns acontecimentos tenham ocorrido especificamente com determinados personagens apresentados, o leitor enxerga estes personagens como representantes de toda uma geração, como ícones dos personagens de todo um momento histórico, de forma que o foco não são os personagens, e sim os acontecimentos. Desta forma, recurso do uso de caricaturas permite que o leitor não se foque tanto nos personagens em si, mas na história contada por meio deles.
Ao utilizar-se do recurso de caricaturas, Art Spielgman abstrai algumas características marcantes dos seres humanos. Desta forma é trocada a aparência do mundo físico pela idéia da forma (McLoud, 1995, p.45). Assim consegue-se um desapego em relação aos detalhes, o quê permite a identificação com os personagens e a representação de seu mundo, e havendo maior identificação do público, pois o leitor reconhece o mundo representado com maior facilidade, e há maior identificação com a história. O sucesso da historia em quadrinhos está neste reconhecimento pelo leitor (Eisner, 2001, p.14), por isso, pode-se dizer que de certa forma, o sucesso de MAUS foi alcançado devido à universalidade obtida por meio das caricaturas.
Em histórias em quadrinhos o roteiro escrito e as ilustrações são vistas como disciplinas diferentes que devem ser harmoniosamente unificadas (McLoud, 1991, p. 47) Neste sentido, é interessante observar que, apesar da cuidadosa caricaturação por meio da qual os seres humanos são transformados em animais, em MAUS a caricatura ultrapassa o universo do desenho, estando presente também nas palavras, e as duas linguagens que compõe os quadrinhos são unidas de maneira harmoniosa, contribuindo para uma caracterização mais aprofundada dos personagens, o que é bastante perceptível no personagem de Vladek. Além de sua caracterização como rato (judeus), em sua forma de falar é possível identificar todos os judeus que foram para os Estados Unidos.
É válido também ressaltar o tratamento gráfico dado como o autor deseja que o leitor leia as palavras (Eisner, às letras, que nas histórias em quadrinhos, evoca à forma 2001, p.12). Exemplificando a forma como funciona este recurso, tem-se o primeiro quadrinho da página 226 de MAUS, em que o polonês grita “MATO VOCÊ! MATO!”
Ainda tomando este quadrinho como referência, é interessante observar a expressão facial do personagem. Apesar de o personagem ser representado como um animal, possui traços humanos, que permitem a identificação de sua expressão raivosa, juntamente com o trabalho relacionado ao gestual do personagem. A partir destas características, observa-se que, ainda que haja a representação caricatural que transforma os personagens em animais, mantem-se a forma humana, observada no corpo dos personagens e em suas expressões. Foi importante que se mantivessem estes aspectos, pois a forma humana, suas expressões e gestos são essenciais nos quadrinhos, pois seu registro habilidoso desperta a memória ligada à consciência corporal que remete à identificação com o personagem e o reconhecimento de suas expressões (Eisner, 2001, p.100)
Por meio de recursos não realistas, como o uso de caricaturas que transformou os personagens em animais, Art Spielgman conseguiu imprimir um realismo muito maior em sua obra, tendo a possibilidade de mostrar coisas que provavelmente não seriam compreendidas, pelo leitor, de outra forma.
O leitor, justamente devido a este recurso, que a primeira vista gera um distanciamento em relação aos personagens, acaba por identificar-se muito mais com eles, e a compreender que os fatos relatados, com toda a frieza e crueldade infligida aos perseguidos pelos nazistas, e registrando as condições precárias que os perseguidos enfrentaram, não se referiam apenas àqueles personagens, que de fato existiram, mas pode em fim compreender que se tratou de situações pelas quais diversas gerações de milhões famílias passaram.
Referências Bibliográficas:
EISNER, Will. Quadrinhos e a arte seqüencial. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2001.
McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo, Ed. Makron Books, 1995.
SPIELGMAN, Art. MAUS – A história de um sobrevivente. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
http://www.universohq.com/quadrinhos/maus.cfm – Acessado em 06/04/2010 às 14h43.
http://www2.iath.virginia.edu/holocaust/spiegelman.html – Acessado em 06/04/2010 às 14h55.
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=14 – Acessado em 14/04/2010 às 17h51.
http://www9.georgetown.edu/faculty/bassr/218/projects/oliver/MausbyAO.htm – Acessado em 14/04/2010 às 18h13.
Paula Monteiro Siqueira é graduanda do curso de Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[1] Publicados respectivamente em 1958 e 1947.
[2] No decorrer do livro, o autor nos mostra através de diversas situações o quanto é difícil conviver com Vladek Spielgman, especialmente por meio dos conflitos que tem com sua segunda esposa, Mala.
[3] No livro de Scott McLoud, é demonstrado como os traços mais simples e caricaturais facilitam a identificação do leitor com o personagem representado, o quê ocorre com muito menos facilidade quando se trata de um personagem de traços muito requintados e específicos.