“O cinema, que consiste simplesmente em por coisas diante da câmera.
Um poeta chamaria isto “a mirada das coisas”. Não a mirada humana das
coisas, senão a mirada das coisas em si. Aqui, a criação artística não
significa pintar a própria alma nas coisas, senão pintar a alma das coisas”
Jean-Luc Godard
Jacques Rivette talvez seja um dos nomes menos conhecidos da Nouvelle Vague, ofuscado pela figura do notório, falante Godard, mas não por isso menos importante e significativo. Ao revés, no silêncio Rivette constrói sua genialidade com imagens, sem discursos (não desmerecendo a verborragia genial godardiana), mas aqui a sapiência é distinta e reside noutro campo que abrange o vasto fazer e pensar cinematográfico, noutro modus operandi de entender e traduzir (à luz) o seu ver cinema, feminino, poético, mágico, sensível e sutil.
As duas obras a que me proponho pôr em jogo, ou em linhas, são exemplos, quase complementares, de como Rivette tem construído em meio a improvisação libertária dos atores, filmes particulares e modernos.
Sua genialidade se dá na regência dos personagens, que perambulam com vida, mais além de uma atuação embasada num roteiro fixo, senão, que desenhados à luz do suceder dos fatos, das filmagens com improvisações que são incorporadas à trama com fluidez. “O que me resultava apaixonante era suscitar uma realidade que começava a existir por si mesma, independentemente do fato de que a filmasse ou não, e, à continuação, comportar-se com ela como ante a um acontecimento sobre o que se faz uma reportagem, de que somente se conservam certos aspectos, sob alguns determinados ângulos, seguindo o azar ou as ideias que nos ocorrem no momento”1, e através de uma construção fílmica não tradicional, em que o suceder dos fatos, as relações, o ir e devir dos personagens, davam-se à medida em que a película exigia-lhes, como num momento santo, Rivette deixa ser levado por Céline, Julie, Marie e Baptiste, as protagonistas dos dois filmes.
PHANTON LADIES OVER PARIS
Em Jacques Rivette, o teatro é sempre presença, seja ele direto e diegeticamente inserido, como em Le Bande des Quatre (1988), ou em meio a uma aproximação indireta que o toma através de recursos de uma atuação forçada e exagerada, conscientemente postas, como em Céline et Julie (1974).
Aqui, há dois mundos paralelos, o das protagonistas (Juliet Berto e Dominique Labourier), que se desenrola graciosamente em maior parte do filme, meio a uma aproximação estranha de ambas, idas e vindas, peripécias, etc, em uma espantosa sintonia (e assim se vê, se nota, não só em términos diegéticos, senão também extradiegéticos). Por outra parte, as duas adentram ao segundo mundo, o dos fantasmas (Bulle Ogier e Marie-France Pisier) que se apresenta inicialmente como flashes desorientadores, e ao passo do desenvolvimento da trama, uma história de assassinato de uma criança, num casarão, época indefinida (quiçá século XIX). Céline e Julie então acedem a esse mundo e se inserem ativamente, cabendo-lhes o papel de uma camareira, a fim de salvar a menina, e revelar o algoz. É a atuação dentro da atuação.
Nesse “outro mundo” o texto é sempre o mesmo e repetido, como um ensaio de uma peça, marcações, impostações, atuações pautadas, “cenas interpretadas” diria Rivette, em contra a uma proposição de não atuação, por assim dizer, que o diretor leva à cabo, de um pertencimento ao papel, e de aí desenvolver as falas e personalidade de cada personagem, sem que haja um roteiro fixo e imutável, assim é com Céline, Julie, Marie e Baptiste. Por isso esse filme é, sobretudo, um filme sobre atuação, que põe em choque (e depois em paz) duas distintas formas de atuação, de cinema, duas visões justapostas que engrandecem o relato, com leveza e toques de comédia.
(os dois mundos unidos)
(Dominique Labourier e Juliet Berto em Céline et Julie)
A TUMBA, O LABIRINTO, A FOSSA, A PRISÃO, O ALBERGUE
Mãe e filha, Bulle Ogier (Marie) e Pascale Ogier (Baptiste) dividem juntas uma errante caminhada por Paris, em Le Pont du Nord (1981). Uma ode à cidade, o filme é um lindo vagueio por ruas, prédios desabitados, feiras, praças, etc. Marie, recém saída da prisão, encontra Baptiste, um personagem sem passado, vindo do além, de cuja vida fez “preparar-se para a aventura”. E ao chegar à aventura, em busca da ponte do norte, tem de enfrentar a teia de aranha que é essa cidade labiríntica e semivazia. Essa obra que o crítico Serge Daney chamou de western, embasada em “relatos incompletos e não ditos”2 salta aos olhos um leve clima de conspiração, mistério (marca do diretor), que, porém, distinto do cinema clássico, desvencilha a causalidade, num desborde de entremeios e vai-e-véns que a uma primeira instância podem atrapalhar o ritmo, o fluxo da fruição, mas que numa atenção maior, se revela e se desvela essencial e lógica à forma que fecha os laços entre as protagonistas. Ademais, nos aproxima desse espaço desapropriado, como que num passeio diurno-noturno pela cidade luz. Ou melhor, tudo é parte de um jogo, entre atrizes, donde o roteiro é pretexto para a sua desapropriação, para a sua desconstrução.
“O cinema de Rivette conta sempre a mesma história: como esquecer o roteiro”3. Daney: “Esquecer o roteiro, frustrar sua fatalidade, bailar para encontrá-lo”4. Seja sob um tango de Piazzola, enfrentando estátuas de leões, dragão, furando olhos em cartazes, seguindo um mapa de Paris dividido em obstáculos: a tumba, o labirinto, a fossa, a ponte, a prisão, o albergue, tudo é jogo e imagem, e tudo é imagem do jogo. E o final, coreografia de um baile improvisado, cujas atrizes são também co-roteiristas, dominam o destino de seus personagens meio às suas apropriações, durante as suas encarnações. Nada mais sincero.
(Bulle Ogier e Pascale Ogier em Le Pont du Nord)
36 VUES (DU PIC SAINT LOUP)
1 – Rivette ama os atores;
2 – Marie e Baptiste são Céline e Julie, e vice-versa;
3 – Ambos os filmes são sobre como esquecer o roteiro;
4 – Mistério, conspiração: quem matou a criança? O que quer dizer a teia sobre Paris? Respectivamente;
5 – O teatro é uma constante;
6 – Rivette ama Paris;
7 – A câmera não se vê, não se nota, mas se crê;
8 – Rivette ama o plano sequência;
9 – Anna Karina está para Godard, assim como Bulle Ogier está para Rivette;
10 – A Ponte do Norte é a busca da morte;
11 – Céline e Julie vão de barco… e dizem adeus aos fantasmas;
12 – Já foi dito, Céline et Julie é uma mistura de Henry James e Lewis Carrol;
13 – Quixotesco, mágico, fantasioso, às vezes extravagante: relatos gêmeos;
14 – A Ponte do Norte, desconstrução e construção da cidade;
15 – Juliet Berto e Dominique Labourier se completam;
16 – Ao final, Céline et Julie é cíclico;
17 – Roteiro é jogo;
18 – Céline et Julie: os fantasmas se divertem;
19 – Baptiste (a santa guerreira) contra o dragão da maldade;
20 – O mapa em Le Pont é desorientação;
21 – Nos dois, a lógica da narração é dos personagens;
22 – Rivette nunca está detrás da câmera, senão, ao lado dela;
23 – O fílmico é: a relação dos atores, dentro e fora da tela;
24 – Le Pont ensina, a vida é como uma teia de aranha;
25 – Desconstrução do roteiro é busca de novos caminhos;
26 – Narrações cambaleantes e fluídas;
27 – Em seus filmes, o tempo é largo, e custa, e convence;
28 – Serge Daney já disse, Le Pont é coreografia e caída;
29 – O espectador é convidado a um lindo delírio narrativo;
30 – o relato dentro do relato, a atuação dentro da atuação, o cinema dentro do cinema;
31 – Climas, atmosferas, mundos. Rivette os cria, os transforma de forma libertária e inovadora.
32 – A posta em cena é a cena já posta, previamente, com existência própria;
33 – Céline et Julie + Le Pont du Nord = contemplação de momentos;
34 – Céline et Julie é a asa esquerda de Rivette;
35 – Le Pont du Nord é a outra asa.
36 – Com essas duas asas, Jacques Rivette já pode voar.
(Pierre Clémenti e Bulle Ogier em Le Pont du Nord)
FILMOGRAFIA
1949 – Aux quatre coins (curta-metragem)
1950 – Le Quadrille (curta-metragem)
1952 – Le Divertissement (curta-metragem)
1956 – Le Coup du Berger (curta-metragem)
1960 – Paris nos Pertence
1966 – A Religiosa
1968 – L´Amour fou
1970 – Out 1: Noli me Tangere
1971 – Out 1: Spectre
1974 – Céline e Julie vão de barco
1976 – Duelle
1976 – Noroît
1978 – Merry-Go-Round
1980 – Paris s´en va (média-metragem)
1981 – Le Pont du Nord
1983 – L´Amour par terre
1985 – O Morro dos Ventos Uivantes
1988 – Le Bande des Quatre
1991 – A Bela Intrigante
1993 – Jeanne La Pucelle (duas partes: Les Batailles e Le Prision)
1995 – Paris no Verão
1995 – Lumière et Compagnie (parte Une aventure de Ninon)
1998 – Defesa Secreta
2001 – Quem Sabe?
2003 – A História de Marie e Julien
2007 – Não Toque no Machado
2009 – 36 Vues du Pic Saint Loup
Notas
1 – CHABROL, Claude. La Nouvelle Vague – sus protagonistas. Buenos Aires: Paidós, 2006. p.169.
2 – DANEY, Serge. Le Pont du Nord in Libération. Paris, 23 de março de 1982.
3 – idem 2.
4 – idem 2.
Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)