Ouvir cinema: documentário musical e as situações óticas e sonoras puras em Isto é Noel de Rogério Sganzerla

*Por Régis Orlando Rasia

Resumo: Este artigo propõe a leitura do documentário Isto é Noel de Rogério Sganzerla, realizado em 1990. No cinema contemporâneo, os documentários musicais ganham repercussão na produção cinematográfica nacional, e é notória a amplificação dos títulos lançados no mercado de exibição sobre personagens da música brasileira, muitos alcançando uma bilheteria considerável. O filme de Sganzerla é anterior ao “boom” dos documentários musicais. Ele foi, inclusive, realizado na década de 1990 no período da chamada crise do cinema brasileiro, instaurado com o fim da Embrafilme. Buscar-se-á a partir do filme, dialogar com conceitos e proposições que o tornam a obra singular no seu tempo. Isto é Noel verifica a inversão da função, “assistir a um filme” por uma potencialização do “ouvir um filme”, essa afirmação está baseada no pressuposto de que as músicas neste documentário adquirem privilégio na narrativa. Neste ínterim, usaremos o conceito de situação ótica e sonora pura, encontrado no livro de Gilles Deleuze Imagem Tempo (2005).

 

Palavras chave: Noel Rosa, documentário musical, música brasileira, cinema falado e cinema mudo.

Introdução

 Nos caracteres iniciais do filme cita o diretor: “Este filme inspira-se livremente na vida de Noel Rosa, não sendo necessariamente uma biografia”. Veremos a partir de então um filme-colagem sobre o músico, diferente de uma biografia aos moldes da narrativa clássica, Isto é Noel não contará uma história da forma canônica e convencional com uma trama lógica e organizada, mas mostrará através de múltiplos elementos sonoros e visuais um denso agenciamento de materiais de arquivos. Para tanto, o inventário de materiais é diverso: fotografias, filmes de arquivo, anotações, desenhos, cartoons e, principalmente, as obras musicais de Noel.

Sganzerla se dedica aos documentários em grande parte de sua carreira, e o domínio é uma força movente de suas ficções, como por exemplo, pensar o seu primeiro filme Documentário (1967), e o próprio Bandido da luz vermelha. Eixo da inflexão da sua estilística cinematográfica, o documentário se amplificaria após a sua volta do exílio da Europa, ocorrido por consequência da ditadura militar e os acontecimentos do AI-5 em 1968. Antes do exílio, têm-se apenas dois curtas-metragens que podem ser entendidos e indexados como documentários, são os filmes HQ e Quadrinhos do Brasil ambos de 1969.

Quando retorna ao país em 1973 é no documentário que Sganzerla encontra uma forma de sobrevivência, legitimando um jogo de experiências com o campo da ficção. Entre curtas e longa metragens se tem 15 documentários e 4 filmes de ficção; antes do exílio 7 filmes de ficção e 2 documentários. O cineasta conhecido por sua atividade ficcional tem uma passagem interessante (pouco observada em estudos acadêmicos) pelo domínio documental. Estas experiências com documentários iria se cristalizar no pós-exílio, é o caso dos filmes sobre o músico. Sganzerla realizou antes de Isto é Noel em 1990, o curta-metragem Noel por Noel 1986, servindo de ensaio para o seu longa-metragem anos mais tarde.

Segundo o diretor, “desde 1976/77, na mesma época em que comecei a me interessar por Orson Welles no Brasil, passei a estudar as músicas, a discografia de Noel, promover um levantamento” (SGANZERLA, 1996, p.164). Na filmografia de Sganzerla, os filmes sobre Noel se realizam entre (e paralelamente) aos filmes wellesianos, chamados assim por se tratar da passagem do diretor norte-americano pelo Brasil (Nem tudo é verdade 1986, Linguagem de Orson Welles 1991, e Tudo é Brasil 1991). Percebe-se que o resgate de um levou ao outro. Welles e Noel potencializam o uso de materiais de arquivo nas narrativas do diretor brasileiro e de alguma forma, através do contexto, Noel e Welles estavam interligados.

Sganzerla comemorava os 80 anos de Noel Rosa, como cita o diretor nos caracteres iniciais de seu filme: “Quem foi Noel? Noel Rosa nasceu em 1910, em Vila Isabel na periferia do Rio de Janeiro. Graças aos seus pais, conseguiu em 1930 ingressar na faculdade de medicina. Mas já era tarde. Noel queria mesmo era ser compositor. Foi principal responsável pela modernização do Samba. Com sangue nas veias, viveu intensamente o ritmo vertiginoso que dispensa ensaio porque está na massa do sangue. Noel pertence a todas as épocas e jamais será esquecido pela música brasileira. Seu estilo nunca foi superado”.

A melhor forma de entender um artista é por suas obras, no caso de Noel, as suas músicas. O músico desencadeia na narrativa de Sganzerla, um complexo agenciamento de materiais sonoros e visuais, que conduzem o espectador a uma interessante esfera plástica do “ouvir um documentário”. No filme verificamos a inversão da função, “assistir a um filme” por uma potencialização do “ouvir um filme”, essa afirmação está baseada no pressuposto de que as músicas do intérprete adquirem privilégio na narrativa do filme. Noel de Medeiros Rosa poupa maiores comentários pelo que representou e ainda representa para a música brasileira, em particular o samba. Por essa razão nos ateremos muito mais em uma análise dos compósitos do filme de Sganzerla, que por si só é revelador de um estilo singular na sua filmografia.

Este estilo pode ser pensado a partir da “lição que o mudo” pôde dar ao cinema[1] para Sganzerla. Segundo Deleuze (2005, p.283) “o cinema, arte antes de tudo o mais visual, diremos, antes, que a música acrescenta a imagem imediata às imagens mediatas, que representava indiretamente o todo”. É fato que no cinema, há o privilégio das imagens e o narrar das histórias, no entanto, no início do cinema no período silencioso anterior a fala, os espectadores iam para as salas de cinema para escutar música, pela pouca intervenção dos ruídos existentes e da narração (devido também ao aparato pouco desenvolvido). Constam experiências de espectadores em épocas mais atuais, como as dos musicais que resgatam a vantagem que a música adquire na banda sonora.

Partimos da ideia de que Sganzerla no documentário, assim como Noel dentro do seu contexto, dialogam com o advento do som no cinema brasileiro. Cita Deleuze sobre a ruptura do cinema falado com o cinema mudo:

 Repetidas vezes foi marcada a ruptura do cinema falado com o cinema mudo, e assinaladas as resistência que ela suscitou. Mas também, com o mesmo rigor, se mostrou como o cinema mudo pedia o falado, já o implicava: o cinema mudo não era mudo, apenas “silencioso”, como diz Mitry, ou apenas “surdo”, como diz Michel Chion. (DELEUZE, 2005, p.267)

Quanto ao agenciamento e composição do filme Isto é Noel, nele não encontramos a fala sonorizada de um narrador. Além do mais, são raros os instantes com imagem e som sincronizados no espaço in da voz. O que se vê na tela são pensamentos do músico por caracteres ou intertítulos. A ausência de uma narração em off apresenta inicialmente alguns pressupostos, entre eles, a dificuldade para a criação de sentido, pela ausência de narração off como costura, o que não exclui a narratividade do filme. Privilegia-se assim o livre desencadeamento de imagens e sons, ou seja, a criação de signos sonoros e imagéticos puros. Seria o mostrar (sonoro e visual) mais do que contar uma história.

Isto é Noel busca recuperar os acontecimentos do advento do cinema falado voltando-se ao mudo, às chanchadas e aos filmusicais (chamados assim pelo diretor). Faz isso através da assincronia do som com a imagem. Verificaremos estes pressupostos através das noções trazidas por Gilles Deleuze a cerca das situações óticas e sonoras puras, mas o que antecipa esta discussão é o diálogo entre cinema mudo e o cinema falado, especialmente no conteúdo do documentário analisado. Sganzerla toma a chanchada e Noel Rosa como intercessores para entender o período de transição do cinema mudo para o falado.

Na época, as músicas de Noel Rosa (assim como as de Villa-Lobos e Vadico), eram encomendadas para o cinema. A música de Noel se faz presente em inúmeros filmes brasileiros na época, entre alguns diretores, citamos: Humberto Mauro, Carmem Santos, Adhemar Gonzaga. No período fértil das composições de Noel entre 1923 e 1930, o cinema passava por transformações, ele como compositor (além de espectador), estaria no entorno do aparente “problema” do cinema falado.

No documentário, Sganzerla monta a passagem do cinema mudo para o falado com a música Não tem tradução, colocando a passagem da letra: “o cinema falado é o grande culpado da transformação (…)”. Culpado de quê? Pela ascensão da prosa e declínio da poesia musicada do samba? Visto pelo anteparo tecnológico da época de som-em-disco e som-em-filme[2], o que ruía na verdade, eram as estruturas do cinema como um todo. Afrânio Catani e José Melo Souza (1983, p.22) comentam que “o cinema brasileiro quase saiu da raia depois do advento do cinema sonoro. Os movietones norte-americanos (isto é, o resultado do avanço técnico da impressão da banda sonora na fita) relegaram ao esquecimento as formas anteriores, mecânicas e não mecânicas, de enriquecimento do filme mudo”. Ainda para os teóricos.

 O movietone, além de colocar em farrapos as apostas estéticas do cinema que se fazia até então, destruiu em poucos anos o grande centro produtor de filmes de ficção daqueles tempos que era São Paulo. De Acabaram-se os Otários (1929) em diante a produção paulista decaiu […] O filme falado determinou uma imediata reciclagem técnica […] Novos e caros equipamentos de sonorização deveriam ser importados, assim como novas câmaras e filmes apropriados. (CATANI, SOUZA, 1983, p.25)

Na letra da música Não tem tradução de Noel, encontramos os argumentos das transformações culturais para além do novo aparato do cinema falado, especialmente no que diz respeito à expansão e a dominação cultural estrangeira, em cerceamento do nacional e da cultura popular brasileira. Para Noel, a tradução do Samba para uma fala estrangeira seria estranha, conforme a letra da música: “Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição. Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês”.

Para tanto, reivindicava Noel as coisas nossas, como em outra música composta por ele: São coisas nossas. Ironia ou profecia, a palavra “bossa” surgiria pela primeira vez nesta música. “E outras bossas, São nossas coisas, São coisas nossas!”. Sabe-se que a Bossa Nova, anos mais tarde foi produto de exportação da musica nacional através das composições de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto. Não era mais o estrangeiro que invadiria o Brasil, mas a música nacional que seria espalhada mundo afora. João Gilberto, por exemplo, no documentário de Sganzerla é o elo entre o samba de Noel e a Bossa Nova.

Ainda sobre o contexto de Noel, no horizonte da sincronia da fala com a imagem no cinema, surgiria o filme Acabaram-se os otários de 1929 de Luiz de Barros, considerado o primeiro filme falado brasileiro no sistema som-em-disco. O filme adaptou como trilha sonora a música Deixei de Ser Otário, de Vadico (Oswaldo Gogliano). Vadico foi uma das parcerias de criação de Noel Rosa, talvez a mais promissora, citada por Sganzerla na narrativa de seu filme. Para Catani e Souza (1983, p.27) o filme de 1929 de Luís de Barros é saudado por quase todos os autores que estudaram a chanchada, “como um marco na confecção de filmes populares”. Luiz de Barros fez ainda, uma série de experiências com as tecnologias de sincronia do som, muitos destes filmes eram precários e alcançaram pouco sucesso.

Segundo Catani e Souza (1983, p.32) em 1931, “São Paulo encerraria sua participação na aventura chanchadesca com Coisas Nossas [Cousas nossas, 1931]”. O filme “foi a primeira tentativa de fazer o cinema brasileiro enveredar na direção dos filmes musicais americanos que estavam fazendo furor”. Coisas nossas foi um dos primeiros filmes brasileiros a usar o sistema Vitafone. Ainda para Catani e Souza (ibidem) “o forte do filme eram as músicas e cantores, principiando pela canção-título de Noel Rosa e passando por Paraguaçu, orquestras de Gaó e Napoleão Tavares e Alzirinha Camargo, numa sucessão de números musicais que quase impedia o desenvolvimento do enredo”.

Dentro do recorte de filmes que tratam da passagem (silencioso e falado), Sganzerla cria no documentário um bloco chamado “Noel na tela”, com imagens de Carmem Santos[3], Carmem Miranda (na época se lançando nas telas) através das fotografias promocionais do filme Alô, alô, Brasil [4]. Segundo Catani e Souza (1983, p.33) o filme era “uma continuação melhorada pelo movietone da fita anterior Coisas Nossas, ou seja, desfilava uma série de músicas encadeadas por um enredo mínimo, temperada por astros do rádio”.

Em um dos blocos, Sganzerla se dedica a mostrar imagens de Noel no cinema, por fotos do Bando de Tangarás [5].

Em 1933, a empresa cinematográfica Cinédia lançou A Voz do Carnaval sob a direção de Ademar Gonzaga e Humberto Mauro. O filme foi um sucesso, e no seu título uma concepção da “voz” a associar-se com as imagens em movimento do cinema. A chanchada permitiu “pela primeira vez os rincões mais afastados do país passaram a ter acesso à imagem dos ídolos da música popular versados em sambas e marchinhas, através de filmusicais carnavalescos” (AUGUSTO, 1989, p.13). Neste período da chanchada voltada ao musical, tinha como mote aproximar a imagem do cinema às vozes que faziam sucesso na rádio. De acordo com Catani e Souza (1983, p.33) a respeito exibição paulistana do filme Alô, alô, Brasil! havia a frase elucidativa: “Vamos ouvir o maior repertório de músicas carnavalescas, cantadas pelos ases do nosso rádio (…)”

Maquinário cultural e hibrido entre rádio e cinema, a chanchada é resgatada em grande parte da filmografia de Sganzerla e comparte do contexto de Noel. Na época, percebe-se a demanda do público e dos fãs da rádio, para ver imagens e rostos destes cantores, conhecidos somente pela voz. Não por acaso a chanchada serviria de interface entre a rádio e o cinema. Nestas chanchadas “filmusicarnavalescas” como cita Catani e Souza (1983, p.34) “o tema da rádio era explorado intensamente”, o repertório musical vinha ao primeiro plano através das imagens. Portanto, no cinema via-se “rostos”, antes ausentes dadas as limitações técnicas do meio rádio. A respeito dos rostos, o que mais vemos no documentário de Sganzerla, são inúmeras faces destes artistas da rádio, provenientes das fotografias colocadas por intermédio da técnica do table top.

Ainda, no período de passagem deste cinema, a musica estava ligada à incapacidade que os meios tecnológicos tinham para sincronizar a fala, ou seja, os filmes eram povoados por trilhas que colaboravam para ilustrar as imagens da tela. Dito isso, o documentário Isto é Noel de Sganzerla contêm em seu cerne, estruturas de composição que nos remetem ao cinema mudo e aos musicais, permitindo que a música de Noel Rosa ganhe espaço privilegiado na banda do som, não como uma mera trilha, mas signos sonoros puros que ilustram a vida e obra do compositor.

Para Deleuze (2005, p.297) “a imagem sonora nasceu, em sua própria ruptura, de sua ruptura com a imagem visual”. “De fato, todos os elementos sonoros, inclusive a música, o silêncio, formam um contínuo, enquanto característica intrínseca da imagem visual” (DELEUZE, 2005, p.285). Mesmo como um contínuo, a banda sonora pode apresentar signos puros, ou seja, elementos que por si representam a sua forma sem metáforas. Deleuze por várias vezes considera o som na trilha como a imagem sonora, pela razão de que no cinema há o privilégio das imagens. No entanto, quando o filósofo fala das situações óticas e sonoras puras é o som que ganha à vazão do seu pensamento no aspecto da disjunção e dissociação do visual com o sonoro, como cita o teórico:

 O que constitui a imagem audiovisual é uma disjunção, uma dissociação do visual e do sonoro, ambos heutônomos, mas ao mesmo tempo uma relação incomensurável ou um ‘irracional’ que liga um ao outro, sem formarem um todo, sem se proporem o mesmo todo. É uma resistência oriunda do arruinamento do esquema sensório-motor, e que separa a imagem visual e a imagem sonora, mas integrando-as, mais ainda, numa relação não totalizável (DELEUZE, 2005, p.303).

 Para Deleuze, o ato da fala provoca interações “que de momento permanecem imperceptíveis a muitos participantes, ou são mal vistas, e só se deixam decifrar por personagens privilegiadas dotadas de uma hipertrofia do olho”. O cinema falado, bem como a verborragia no cinema induz/produz/conduz o que podemos entender como a hipertrofia do ouvido e, ao mesmo tempo a percepção do espectador. Imagens que não precisam de explicação ou sons/trilhas “abafados” pela fala, Sganzerla retoma a proposição do ouvir as músicas de Noel, e por esta razão, privilegia banda sonora na ilustração das obras do músico. 

Para Deleuze (2005, p.269) “o que acontece com o cinema falado? O ato da fala já não remete è segunda função do olho, já não é lido, mas ouvido”. Ainda para o teórico (2005, p.279) “desde o início o problema do sonoro era: como fazer para que o som e a fala não sejam mera redundância do que se vê?”. O documentário contemporâneo bem como a produção cinematográfica e audiovisual atual (incluindo a televisão), apontam para os caminhos da saturação da fala, hipertrofia do olho, ou a chamada verborragia como hipertrofia do ouvido, dado o uso em demasia da palavra para ilustrar, contar, e relatar.

Até mesmo um documentário musical contemporâneo faz uso da “tagarelice”, privilegia o contar e o falar mais do que ouvir as obras dos intérpretes. Como contraponto da verborragia, Sganzerla em Isto é Noel, abre mão da palavra para contar menos, mostrar mais com as imagens potencializando o ouvir. Neste documentário o narrar se estilhaça, a colagem de imagens e sons como disjunção vêm à tona, dando lugar a imagens sonoras que complementam a poética e a afecção[6] da narrativa.

Para Deleuze, (2005, p.281) “o circuito não é apenas o dos elementos sonoros, inclusive musicais, em relação à imagem visual, mas a reação da própria imagem visual como o elemento musical por excelência que penetra por toda a parte, in, off, ruídos, sons, falas”. Na banda sonora, o filme Isto é Noel não possui a convencional voz off, mas assim como no cinema mudo, faz uso de intertítulos e caracteres textuais. O que ouvimos são trilhas que compõe o espaço extracampo da narrativa. A única sincronia da voz com a imagem que ouviremos, será a performance de João Gilberto, vista logo no inicio do filme interpretando Feitiço da Vila de Noel Rosa. Fora isso, o som verbal (em grande parte cantada) descola completamente da imagem. Alguns elementos que farão parte do espaço in e comporão a diegese da narrativa (mesmo que artificialmente), são os ruídos (sound design ou foley’s) que integram ao circuito musical e a ação dos personagens nos filmes. Os sons que ouvimos são de tampas de garrafas, pandeiro, vidro quebrado, buzinas, chora de criança, entre muitos.

De acordo com Deleuze (2005, p.272) “o cinema mudo efetuava uma repartição da imagem visual e da palavra legível. Mas quando, a palavra se faz ouvir, dir-se-ia que ela faz ver algo novo, que a imagem visível, desnaturalizada, começa a se tornar também legível, enquanto visível ou visual”. Podemos pensar que a transição cinema mudo para o cinema falado, trazia também a repartição do som tornando o audível um evento da condição da percepção com a música, ou seja, trilhas que privilegiam o ouvir (no sentido da ligação com a percepção), do que o escutar ou entender a fala.

Conforme Deleuze, (2005, p.291) “o cinema moderno, de certo modo, estava mais perto do cinema mudo do que do primeiro estágio do falado”. Além disso, tanto para Sganzerla como para Noel, o cinema falado era o grande culpado. Logo o mudo traria algumas lições. Segundo o diretor “uma das saídas do cinema contemporâneo é o cinema mudo. O cinema moderno vive do mudo, recorre a ele”. Na época havia cineastas “que se aproveitaram das vantagens do som para destacar os silêncios, acentuar o primitivismo” (SGANZERLA, 1980a, p.23).

O diretor resgata o cinema mudo através da potência da música e da trilha musical. A obra de Noel é tão significativa para a composição do documentário de Rogério Sganzerla, que, ao redigirmos este artigo, o filme rodava como se fosse um “set list” das músicas de Noel Rosa. É o jorro das imagens e dos sons na narrativa do filme, que tornam potente o mostrar muito mais do que contar uma história. Este é o inventário de sons que compõe o filme: Feitiço da Vila, Fita amarela, Quem dá mais? Chegou Vila Isabel, Vejo amanhecer, Tarzan (o filho do alfaiate), Feitio de oração, Sentinela Alerta, O orvalho vem caindo, Palpite, Não tem tradução, Meu Barracão, Maria Fumaça, Conversa de Botequim, Com que roupa, Dama do cabaré, Mulher indigesta, São coisas nossas, Três apitos, João ninguém, Felicidade, Tem pena de mim, Gago apaixonado, Cor de cinza, O orvalho vem caindo, Palpite infeliz, Último desejo.

Estas músicas são tocadas parcialmente ou se repetem durante o filme é o caso da música interpretada por João Gilberto Feitiço da vila. Destas músicas, em sua grande maioria, ligadas a autoria de Noel Rosa, muitas são interpretadas por outros artistas que vão desde Aracy de Almeida, Francisco Alves, personagens que se cruzam diretamente na época com o músico. Também personalidades contemporâneas, como Gal Costa e João Gilberto. Sganzerla procura a todo instante mostrar as raízes do samba e o legado deixado por Noel Rosa na música popular brasileira.  Para o cineasta, Noel quer a todo instante através de sua música dialogar com personagens mais atuais.

Se o som é puro, as imagens também o são. Os desenhos são também entendidos como quadros vivos de Noel Rosa, várias vezes o seu autorretrato (escrito Noel por Noel), é repetido na narrativa de Sganzerla. O filme de Sganzerla é composto por inúmeras fotografias, filmes e figuras dos relacionamentos do músico, como Ceci (sua amante), muitas imagens se ligam na narrativa do documentário por pertencerem à chamada “Era de Ouro” do carnaval brasileiro (1930-1942): com fotos e imagens (em sua maioria rostos), do Bando de Tangarás, Almirante (Henrique Foréis Domingues), Orlando Silva, João de Barro. Outros por fazerem parte do processo criativo ou da vida do compositor, como: Aracy de Almeida (divulgadora do músico na década de 1940 e 1950), Wilson Batista, Francisco Alves, Heitor dos Prazeres, Marília Batista, Ismael Silva, Lamartine Babo, Vadico, Ataulfo Alves, entre outros que por falta de repertório não são possíveis de serem identificados.

A música compete em flutuar na narrativa a fim de que se apresentem também os signos imagéticos. Sob o entorno e a autonomia que o som adquire na banda sonora do filme de Sganzerla, entendidos não como trilhas, nem design de som, mas obras que adquirem formas puras em uma condução narrativa, podendo estar elas, coladas ou deslocadas das imagens.

Depois de apreender o inventário de materiais e seus agenciamentos, entenderemos melhor as noções de Gilles Deleuze acerca das situações óticas e sonoras puras, como forma de “amarrar” ou não o sentido nas narrativas de Rogério Sganzerla. Para Deleuze, baseados em nossos esquemas sensórios-motores, estes se bloqueiam ou quebram, podendo por esta razão aparecer outro tipo de imagem:

 Uma imagem ótico sonora pura é a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser “justificada”, como bem ou como mal. (DELEUZE, 2005, p.31)

 A noção de signos óticos e sonoros puros de Gilles Deleuze se dá em um horizonte maior de discussão, a do cinema clássico e o cinema moderno. Para o filósofo, o cinema clássico ligado ao orgânico ao sensório-motor, ao senso comum e ao bom senso, a narração e ao modelo de verdade, seria desdobrado com o cinema moderno sob aquilo que Deleuze chama de cinema do tempo puro ou imagens cristais, que substituem o sensório-motor por situações óticas e sonoras puras, deixando de lado o bom senso e o senso comum, identificados por meio de seus personagens em atitudes e posturas que não privilegiam a ação, nem mesmo a lógica convencional da narração do cinema.

Entre uma imagem-movimento[7] do cinema clássico e a imagem-tempo[8] do cinema moderno, Deleuze torna evidente a ruptura e uma série de crises, entre elas a da representação. A imagem-tempo abandonaria a narratividade em favor da descrição, seria o mostrar ao invés de contar, entendidos com o “jorro” de imagens e sons. Existe também a substituição do modelo de verdade pelas potências do falso, mesmo a história e seu contexto, são falseados pela história narrativa do filme, com a participação ativa dos personagens na ação dramática com a visão da contemplação, personagens loucos, perturbados em situações limites, como o caso de Noel e seu ator que o representa no documentário, assolado pela doença e/ou boemia. Os filmes de Sganzerla são a elegia do moderno quando pensamos Noel por seus materiais de arquivo ou pela atuação de seu ator.

Como vemos, o filme de Rogério Sganzerla não é composto apenas por materiais de arquivos, Sganzerla reconstitui os instantes finais da vida boemia do músico através do ator João Braga. O ator no filme perambula, anda errante, afetado e agonizante, tosse constantemente, representando a doença que mataria Noel Rosa, a tuberculose. O músico vagueia pelas ruas, até tombar numa poça d´água no final de um desfile de carnaval.

Noel Rosa sofria de hipoplasia da mandíbula o que marcaria suas feições por toda a vida, destacando sua fisionomia bastante particular. O ator utilizado por Sganzerla no filme traz uma semelhança física, que o diretor faz questão de combinar com imagens de fotos. Em um dos caracteres no início do filme cita Sganzerla: “Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é mera coincidência (…)”.

No vagar e vagabundear de Noel Rosa interpretado por João Braga ou por materiais de arquivos percebe-se como tais ações/situações colaboram para o que Deleuze chama de “afrouxamento dos sensórios-motores (o passeio ou o vagar, a balada, os acontecimentos não concernentes.) à ascensão das situações óticas e sonoras”. (DELEUZE, 2005, p.19).

Podemos entender a noção de signos óticos e sonoros puros, por vias da ruptura do sensório-motor de duas formas: 1) através dos materiais estáticos (fotografias, cartoons, desenhos) na composição do filme, pois a câmera e também o table top, procura “vaguear” por fotografias e imagens com montagens intensas de zoom in e zoom out e; 2) na atuação do ator representando Noel, que passeia e “vagueia” com seus estados alterados de percepção, antes de cair morto em pleno fim do carnaval.

Segundo Deleuze (2005, p.19) “a passagem do afrouxamento do sensório-motor, ‘não sei o que fazer’, ao puro poema cantado e dançado”. Dessa maneira, há uma importância na poiésis musical no constructo narrativo de Sganzerla, vemos Noel Rosa sem saber o que fazer no filme, perambulando, errante, seja por “ressaca” (sendo o cenário do filme composto por um final de carnaval), ou por fatores biológicos da doença que afeta o personagem, seu sensório-motor de alguma forma está afetado. Por diversas vezes a câmera é constituída por um plano subjetivo, perde o foco e Noel tosse incessantemente, sendo este outro demonstrativo da afetação do sensório-motor do personagem. 

Para Deleuze (2005, p.22) “o cinema foi uma das razões de sua evolução, que lhe permitiu descobrir a potência descritiva das cores e dos sons, na medida em que substituem, suprimem e recriam o próprio objeto”. O filme nos oferece situações óticas e sonoras puras, nos permitindo também fugir da realidade posta pela narração e viajar, junto com os atores e os arquivos, para o universo onírico das imagens e das músicas. Signos sonoros e óticos puros são reveladores do discurso poético, não sendo mais o representado ou o reproduzido, mas o “visado”.

Os materiais visuais, capturados pelo diretor brasileiro, seguem em alguns momentos o ritmo do som da música de Noel, em outras servem para ilustrar e preencher os espaços da banda imagética. Com a banda sonora povoada por suas músicas, o acompanhamento se dá com a narrativa musical e em diversos momentos as imagens entram no “circuito” do que é narrado pelo intérprete da música, por exemplo, no intervalo de Quem dá mais? Em uma das primeiras cenas do filme, quando a música fala do violão, surge uma imagem (cartoon) de Noel com o violão e posteriormente o “cavelete” do violão, cita São Pedro, aparece imagens (quadros) do imperador e posteriormente quando cantado José Bonifácio, surgem às imagens referentes.

“Uma situação puramente ótica ou sonora se estabelece no que chamávamos de ‘espaço qualquer’, seja desconectado, seja esvaziado” (DELEUZE, 2005, p.14). A montagem dos materiais no filme de Noel aparece em alguns momentos desconexa, ora acompanhando a diegese e as imagens se ligando ao que é cantado, ora a imagem e os sons se desprendem completamente. Portanto, o filme Isto é Noel é interessante para ser pensado como uma criação própria da estilística da montagem dos filmes de Sganzerla, com a participação de um dos mais importantes montadores do cinema nacional, Sylvio Renoldi.

Esse livre desencadear das imagens passa a sensação de estarem flutuando na narrativa. O fato de serem materiais desconectados não implica em situações óticas e sonoras puras, mas de alguma forma potencializam a articulação destes materiais com sua desconexão. Através da fluidez de signos óticos e sonoros puros, “acabamos caindo num princípio de indeterminabilidade, ou indiscernibilidade: não se sabe mais o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta” (DELEUZE, 2005, p.16). Essas imagens e sons fazem a transição dos arquivos e do documentário, com a ficção através da encenação da perambulação de Noel pelas ruas do Rio de Janeiro. Sendo também o encontro e indiscernibilidade dos domínios, imagens e sons que pretendem fazer comunicar-se com uma memória:

 Em suma, as situações óticas e sonoras puras podem ter dois polos, objetivo e subjetivo, real e imaginário, físico e mental. Mas elas dão lugar a opsignos e sonsignos, que estão sempre fazendo com que os polos se comuniquem, e num sentido ou noutro asseguram as passagens e as conversões, tendendo para um ponto de indiscernibilidade (e não de confusão) (DELEUZE, 1985, p.18).

Para Deleuze (2005, p.63) “a situação puramente ótica e sonora (descrição) é uma imagem atual, mas que, em vez de se prolongar em movimento, encadeia-se com uma imagem virtual e forma com ela um circuito”. O filme não quer fazer a confusão entre os domínios, mas ao se parecer com o intérprete João Braga, ou misturar materiais de arquivos com encenações, o filme já insiste em tornar a ficção e a realidade como objetos indiscerníveis, não confusos.

Para concluir, Sganzerla encontra experimentalismo em Noel Rosa, e por essa razão incorpora o músico à sua criação como um intercessor para pensar o cinema e a história a partir dele. Presente em sua crítica jornalística e em seus filmes, o músico será fundamental para o diretor colocar em movimento todas as suas expectativas e frustrações do cinema e da cultura brasileira na época da realização do filme. Para o diretor, acima de tudo Noel era um pensador[9].

Os documentários de Rogério Sganzerla, além da indiscernibilidade entre os domínios da ficção e do documentário, seguem a década de 1980 e 1990 com características da colagem de imagens, quadros e sons, com um livre encadeamento de imagens, que parecem soltos nas narrativas, mas na verdade potencializam a memória da época: a música, seus intérpretes e as passagens.

Quem propõe o diálogo do cinema com a música são os seus compositores, logo esta seria melhor forma de contar e mostrar/ouvir as memórias de Noel na tela, por suas obras. Por intermédio do músico também, é possível entender o contexto da passagem do cinema silencioso para o cinema falado, e isto se potencializa com os signos óticos e sonoros puros na narrativa de Sganzerla.

Se utilizando de alguns intercessores (Welles, Noel, João Gilberto, etc.) para observar aspectos da tradição e da cultura brasileira, o músico é um destes mediadores que faz Sganzerla olhar através dele a história e o contexto da época, especificamente da década de 1930 e 1940, período considerado pelo diretor como fértil para a cultura brasileira e para o cinema. Neste “caldeirão” cultural da época estava Noel, o samba com o rádio e o cinema com sua chanchada visando às passagens do mudo ao falado. Passagens e transições tecnológicas, culturais e políticas, significativas para Sganzerla.

 


[1] Cf. SGANZERLA, Rogério. A lição do mudo. 1980a.

[2] O termo de som-em-filme (sound-on-film) refere-se a um processo de gravação do som diretamente na película, o que facilitava a sincronia do som e da imagem na época. O sistema mais famoso era o Movietone da FOX. Já o processo som-em-disco (sound-on-disc), mais conhecido pelo sistema Vitafone da Warner Brothers, usava um fonógrafo ou outros aparelhos para gravação e posterior reprodução de som em sincronia com um rolo de filme. Este sistema, por exemplo, foi usado no filme de Luiz de Barros antes da gravação do som na película (som-em-filme), por esta razão o som original do filme não pode ser preservado.

[3] Atriz, produtora e diretora importante no cinema brasileiro. Em 1933 fundou a produtora Brasil Vox Filmes na cidade do Rio de Janeiro, que em 1935 mudou de nome para Brasil Vita Filmes. Noel compôs a música Dama do cabaré que seria trilha do filme de 1936, Cidade Mulher, de Carmem Santos e Humberto Mauro.

[4] É um filme musical brasileiro lançado em 1935, que conta com a presença dos maiores cantores populares do Brasil, dirigido por João de Barro (Braguinha ou Carlos Alberto Ferreira Braga) e Wallace Downey, algumas destas estrelas e intérpretes da música que aparecem no filme, constam no documentário de Rogério Sganzerla, pois se relacionam com Noel Rosa.

[5] Na plataforma Youtube é possível encontrar um vídeo raro de Noel Rosa, cantando a música com o Bando de Tangarás “Vamos Falar do Norte” junto também de João de Barro. A filmagem é de 1929, foi feita por um italiano chamado Benedetti sendo parte das primeiras sincronizações de som e imagem feitas no Brasil.

[6] Para Deleuze a imagem-afecção esta ligada na imagem-movimento ao primeiro plano (close) e ao rosto. “A imagem-afecção é o primeiro plano, e o primeiro plano é o rosto…” (DELEUZE, 1985, p. 114)

[7] DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. 1985.

[8] DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. 2005.

[9] SGANZERLA, Rogério. Noel Pensador. 1980.

Referências bibliográficas

 AUGUSTO, Sergio. Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 280 p.

 CATANI, Afrânio Mendes; SOUZA, José Inácio de Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo, SP: Brasiliense, 1983. 98p.

 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo Ed: Brasiliense, 2005. 338 p.

 ______________.  A imagem-movimento. Trad. Rafael Godinho. São Paulo Ed: Brasiliense, 1985. 266p.

 SGANZERLA, Rogério. Sganzerla esmiúça o fracasso de Orson Welles. Entrevistado por Luiz Zanin Oricchio. 25 de novembro de 1996. Publicado originalmente no Estado de São Paulo. In: Encontros. CANUTO, Roberta (Org.) Rio de Janeiro Ed: Beco do Azougue, 2007. 168-173p.

 ______________. Filmologia estóica do malandro consumista. In: Caderno de Crítica EMBRAFILME, n. 4 Set. 1987. p.35-38.

______________. Noel Pensador.  Folha de S. Paulo 18 fev. 1980. In: LIMA, Manoel Ricardo de; MEDEIROS, Sérgio Luiz Rodrigues. Edifício Sganzerla: textos críticos. Vol.1. Santa Catarina Ed: UFSC 2010. p.19-21.

______________. A lição do mudo. Folha de S. Paulo 11 jun. 1980a. In: LIMA, Manoel Ricardo de; MEDEIROS, Sérgio Luiz Rodrigues. Edifício Sganzerla: textos críticos. Vol.2. Santa Catarina Ed: UFSC 2010. p.22-24

*Professor do Bacharelado em audiovisual do Centro Universitário SENAC Santo Amaro. Doutorando em Multimeios pela UNICAMP e mestre pela mesma instituição. Pós-graduado em Artes visuais: cultura e criação no SENAC Porto Alegre. Graduado em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda pela UNIJUÍ.

 

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