Cartola e grupo Bola Sete

por Maristela de Camargo*

Cartola: no Cinema e no Cenário Atual
Cartola é constantemente relembrado como o Mestre do Samba, como o Grande Compositor, como o de um estilo inconfundível. Em vista do seu peso para a história da música e do seu centenário, o homenageamos aqui através de um grande artigo sobre “Cartola”, o documentário, e da cobertura do show maravilhoso realizado em sua homenagem, pelo grupo de samba Bola Sete.

O filme quis dizer: “Eu sou o samba”

Tenho saudade da Mangueira,
Daquele tempo em que eu batucava por lá,
Tenho saudade do terreiro da escola,
Sou do tempo do Cartola,
Velha guarda, o que é que há?
Eu sou do tempo em que malandro não descia,
Mas a polícia no morro também não subia.
(Herivelto Martins, “Saudosa Mangueira”)

Em 25 de outubro de 1916, no Cine-Teatro Velho, quando Agenor de Oliveira tinha oito anos recém-completados, o compositor Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, assíduo freqüentador dos folguedos na casa de Tia Ciata, executou em público pela primeira vez o samba carnavalesco “Pelo telefone” (que, na verdade, mais parece um samba de terreiro, semelhante ao maxixe). Composta em parceria com o repórter Mauro de Almeida, cujo apelido era Peru dos Pés Frios, a canção ganhou enorme notoriedade pelo fato de Donga tê-la registrado como um “samba”, em novembro do mesmo ano, no Departamento de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com a partitura para piano manuscrita por Pixinguinha. Em dezembro de 1916, já com a canção devidamente registrada, Donga autorizou a gravação de “Pelo telefone” pela Banda Odeon e, depois, pelo cantor Baiano. Isso fez com que, no carnaval de 1917, o samba já fosse conhecido do público e, por isso, fizesse imenso sucesso, originando diversos comentários da imprensa carioca, que classificava a canção como tango, como modinha, como maxixe e até mesmo como samba.

Hoje, os historiadores da MPB são unânimes em apontar “Pelo telefone” como o primeiro samba brasileiro. No entanto a canção de Donga e Mauro de Almeida é cercada de incertezas: a letra, a autoria e a própria designação da canção como samba sempre foram motivos de controvérsias. Ao que tudo indica, “Pelo telefone” teria sido uma criação coletiva, num dos célebres folguedos na casa de Tia Ciata, onde a canção, aliás, era conhecida como “O roceiro”. Essa tese de criação coletiva sempre foi impiedosamente defendida, por exemplo, pelo compositor e pesquisador Henrique Foréis Domingues, o Almirante. Apesar dessas discussões, “Pelo telefone” continuou a ser considerado, pela tradição, o primeiro samba registrado no Brasil.

Mas esse ritmo, tão genuinamente brasileiro, não se tornou com facilidade símbolo de nossa identidade musical. Na realidade, durante a década de 20, o samba ficava a meio caminho tanto da semi-erudição do choro quanto do lado popularesco do maxixe, do lundu e da umbigada. Por isso, sofreu preconceitos, foi tachado de “coisa de malandro” e não era raro o sujeito que andasse com violão pelas ruas do Rio ser identificado como um vadio, sendo constantemente importunado pela polícia.

Na década de 30, num fenômeno sociológico complexo*, o samba deixa de ser maldito para se tornar sinônimo de música brasileira. Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, não se cansou de utilizar esse ritmo para divulgar os ideais de seu governo ditatorial.

É certo que Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Dorival Caymmi, Assis Valente, Wilson Batista, Sinhô, entre tantos outros, contribuíram para esse fenômeno de transformação do samba. Mas o fato é que foram as escolas de samba – principalmente, num primeiro momento, a Osvaldo Cruz e o Estácio de Sá – que estabilizaram o gênero musical, dando-lhe os contornos que conhecemos hoje e oferecendo aos compositores um lugar para apresentarem suas canções.

Em 1925, dois moradores do morro da Mangueira, Agenor de Oliveira e Carlos Moreira de Castro, fundaram o Bloco dos Arengueiros, que, três anos mais tarde, fundiu-se com outros blocos para dar origem ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Pronto. Começava um dos capítulos mais bonitos da história do samba no Brasil.

Os mesmos fundadores do Bloco dos Arengueiros, já apelidados de Cartola e Carlos Cachaça, compuseram em 1932 o samba “Na floresta”, que deu à Mangueira o título de um desfile promovido por um jornal carioca da época. A esta altura, por equívoco do funcionário do cartório em que se casou, Agenor virara Angenor, o que não fez diferença alguma, uma vez que todos o chamariam e o chamam até hoje de Cartola.

Cartola contribuiu, ao lado dos grandes sambistas dos anos 30, para a consolidação do samba como manifestação de brasilidade musical. Compôs sambas de avenida, sambas-canção e sambas de meio de ano. Consagrou-se, a ponto de, em 1940, ser convidado para gravar junto à orquestra do maestro Leopoldo Stokowski. Para essas gravações, Cartola foi acompanhado da “santíssima trindade do samba”: Donga, João da Baiana e Pixinguinha.

Pouco após essa consagração, Cartola desaparece. Chegaram a supor que ele havia morrido. Fizeram-lhe sambas de homenagem póstuma, até que em 1956, o cronista Sérgio Porto o encontra lavando carros e tomando conta de uma garagem em Copacabana. Aturdido com o descaso com um dos nomes mais nobres do samba de morro carioca, que havia escolhido o nome e as cores da Mangueira, Porto contribuiu decisivamente para a ressurreição de Cartola.

No começo dos anos 60, já viúvo, Cartola se casa com Dona Zica e funda em 1964 o restaurante Zicartola, que se tornou ponto de encontro de velhos sambistas do morro e da nova geração de compositores pós-bossa nova. Era sua redenção. Nos anos 70, o restaurante chegou a funcionar em São Paulo, na Vila Formosa.

Quando o Zicartola fecha no Rio, Cartola volta ao ostracismo. Sua segunda ressurreição se dá em 1974, quando o restaurante vem para São Paulo e ele grava seu primeiro disco, elogiadíssimo pela crítica e pelo público. Fã confesso de Tom Jobim, Chico Buarque, Carlos Lyra e Paulinho da Viola, Angenor de Oliveira ajuda a contar um pouco a saga do samba no Brasil, da fundação às escolas de samba à revitalização do samba de morro dos anos 60. Respeitando as tradições populares e sem desprezar as contribuições dos artistas que não eram do morro, Cartola soube agradar a gregos e troianos, da comunidade da Mangueira aos intelectuais da MPB.

Cartola não é um sambista de partido alto, daqueles que compõem canções velozes e animadas, com refrão e melodia simples. Ele prefere harmonias imprevisíveis e uma cadência mais suave, o que faz de sua dicção musical algo absolutamente pessoal. Ele mesmo admite isso num depoimento: “Meu samba tem um ritmo sincopado, um pouco lento. Não sei explicar exatamente por quê, mas a minha linha melódica é inconfundível. Como também são as de Zé Kéti, Paulinho, Nélson Cavaquinho. (aaplumbingsa.com) Reconheço à primeira vista qualquer música deles”.

Provavelmente, Cartola não gostaria nem um pouco do tipo de música que se faz hoje nas escolas de samba. Seus sambas sincopados não combinam com o ritmo enlouquecido dos sambas-enredo atuais. Já nos anos 70, Cartola dizia: “Não vou à avenida desfilar, mas não deixo de sentir aquela emoção. Vibro quando o povo saúda a Mangueira. Só que a zoada é muito grande. Foi um tal de colocar surdos, taróis e cuícas que não existe tímpano que agüente. Antigamente era muito mais bonito, o tamborim reinava na bateria. Nos primeiros tempos da Mangueira, a escola era conhecida de longe pelo ruído do arrastar das sandálias de suas pastoras na avenida, marcando o compasso do samba. Hoje, com o excesso de barulho, isso não é possível”.

De fato, os belíssimos versos de “Acontece”, “O mundo é um moinho” ou “As rosas não falam” não se ajustam à culinária verbal dos sambas de carnaval atuais. O mais engraçado é que esse requinte formal – tanto musical quanto poético – que se nota nos sambas de Cartola parece não combinar com a história de um homem que foi pedreiro e lavador de carros, que não gostava de estudar e que sempre esteve próximo da marginalidade da malandragem.

O documentário Cartola (2006), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, poderia ser considerado uma terceira ressurreição de Angenor. Quase cem anos após o nascimento de Cartola, o filme fielmente narra – por meio de representações ficcionais da infância do compositor, de diversos depoimentos, de cenas de clássicos do cinema brasileiro e de música da mais alta qualidade – toda a história desse malandro-poeta que, embora avesso à fama, mereceria ter sido mais reconhecido em vida do que foi. Mas não há de ser nada. O filme lhe proporciona um tardio reconhecimento, o que parece ser a sina de Angenor de Oliveira.

Quando, nas comemorações dos 25 anos do tropicalismo, Caetano escreveu sobre uma melodia de Gil: “O filme quis dizer: ‘Eu sou o samba’”, mal sabiam os baianos que, um dia, Cartola, como “A voz do morro”, também rasgaria a tela do cinema.

“E o samba agora diz: eu sou a luz”.

*Cf. Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor / Editora UFRJ, 1995.

Eduardo Calbucci é formado em Jornalismo pela ECA-USP, mestre e doutor em Lingüística pela FFLCH-USP, com diversos trabalhos acadêmicos na área de Semiótica da canção.

Pureza do samba

O grupo Bola Sete

O grupo Bola Sete foi criado de maneira despretensiosa a partir da afinidade musical dos integrantes, que fazem parte de uma geração de admiradores do samba e do chorinho. Apesar de os músicos possuírem formação, influência e personalidades musicais bastante distintas, eles encontraram uma forma autêntica de tocar samba e ter um enorme sucesso de público em todos os lugares em que se apresentam. Com arranjos inovadores e seleto repertório que preza pela pesquisa, o grupo tem raízes fincadas nos clássicos do samba e nos permite um passeio pela memória histórico-musical brasileira: deparamo-nos com patrimônios como Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, Jackson do Pandeiro, João Bosco, Chico Buarque, Edu Lobo, Guinga, João Nogueira, Djavan e Paulinho da Viola. A missão do grupo é aglutinar compositores distintos (tradicionais e nova safra) fazendo uma ponte entre as gerações.


fotos: Dani Teixeira

No Cenário Atual

É de grande importância a existência do Bola Sete no cenário atual do samba no Brasil, visto que sambas e sambistas tradicionais, em geral, não tocam nas rádios e tampouco encontram espaço satisfatório na indústria cultural.

Apesar disso, encontra-se ainda algum espaço. No ano de celebração do centenário do mestre Cartola, o Bola Sete se apresentou em homenagem ao genial compositor através do projeto “A vida e a música de Cartola” na UFScar, com transmissão ao vivo pela Rádio Ufscar. O show teve grande sucesso de público tanto entre jovens estudantes como entre os mais familiarizados com o compositor. Vê-se nesta e em outras apresentações como o grupo se inspira no refinamento estético e na requintada simplicidade do gênio Cartola.

Juntamente a tal projeto-homenagem, o grupo ainda participa de projetos como Ciclo SESI de Música Popular, buscando diferentes espaços para suas apresentações, e também das rodas de samba espalhadas pelo interior do Estado de São Paulo – participando de forma comunitária, como pede o samba.

De fato, o que se pode afirmar é a aceitação do grupo, que passa encantando o público com o ritmo que permeia o imaginário popular brasileiro já há muito tempo.

*Maristela de Camargo é socióloga e especialista em Museologia (Museu do Café – Campinas/SP).

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