por Eduardo Fiorussi*
Cristina Buarque e Terreiro Grande – autêntica roda de samba em CD
“Já chegou quem faltava, quem o povo esperava chegar”. Esta frase marca o início do bloco 2 do disco Cristina Buarque e Terreiro Grande, quando ao som de dois pandeiros, dois violões (um de 7 cordas), cavaquinho, surdo, tamborim e as belas vozes de Cristina Buarque e de mais sete integrantes do Terreiro Grande, se soma o restante do coro e da batucada, formada por cuíca, faca no prato, reco-reco, três tamborins, caixa de fósforo e agogô. A composição é de Nilson Gonçalves, chamada “Já chegou quem faltava”. Esse é apenas um dos momentos nos quais se torna difícil controlar a emoção ao ouvir o disco.
O CD Cristina Buarque e Terreiro Grande ao vivo foi gravado no teatro da FECAP (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado), em São Paulo, em fevereiro de 2007, quando o grupo fez uma série de oito shows obtendo grande sucesso de público e crítica, e lançado no segundo semestre do mesmo ano.
Penso que a frase da música de Nison Gonçalves retrada bem o que representa a junção feita entre os amigos do Terreiro Grande e Cristina, os quais trazem ao público um pouco do que, ou “de quem faltava” para a música popular e para o samba. É, segundo os próprios integrantes do Terreiro Grande (formado em 2007 em São Paulo), uma reunião de amigos, que se iniciou em 2001 quando eles integravam o Grêmio Recreativo de Tradições e Pesquisas Morro das Pedras. Reunião de pessoas que, segundo eles, são “sambistas, poetas, ritmistas, vagabundos, bêbados, compositores, trabalhadores, músicos e tanta gente boa que circula entre nós”. Esse grupo de amigos sabe dar valor à cultura brasileira, sobretudo ao samba, com muito mais profissionalismo do que muitas pessoas que se auto-intitulam “bambas do samba”.
Devemos lembrar que o samba surge no Brasil como uma manifestação cultural popular, espontânea, através do encontro dos negros escravos e ex-escravos, que resistindo às repressões realizavam seus batuques, batucadas, festas, ritos religiosos e outras manifestações. O samba cresce de tal maneira no Rio de Janeiro, dentro das escolas de samba, no carnaval, que se torna o símbolo da cultura brasileira, sofrendo modificações e se tornando um produto cultural.
Infelizmente essa valorização do samba foi prejudicial para a forma mais autêntica da manifestação, a de roda de samba. Tivemos o grande crescimento das escolas de samba, concomitante com a decadência dos desfiles de carnaval, no sentido da coletividade e do trabalho comunitário que envolvia os integrantes de tais escolas. Vemos, hoje em dia, desfiles-espetáculos, com enredos muitas vezes fúteis, impostos pelos patrocinadores de cada escola.
Por outro lado, felizmente ainda podemos encontrar pessoas que lutam para dar continuidade à cultura do samba. É aí que esses amigos do Terreiro Grande, junto com Cristina Buarque, têm um papel fundamental; com uma certa atitude revolucionária, trazem a público o que faltava, um pouco da essência da cultura popular. Lançam um CD completamente diferente do que se vê e do que já se viu! Um disco com apenas 4 faixas, ou 4 blocos como está descrito no encarte. São na verdade, 37 sambas, cantados em pout-pourries, mas sem haver cortes nas músicas, e mantendo-se as repetições necessárias em cada samba. O andamento das músicas é moderado, ou seja, não há correria. Na verdade os quatro blocos apresentam um andamento bem parecido. Quem compra o disco achando que vai ouvir a voz da Cristina Buarque sendo acompanhada pelo coro do Terreiro Grande está enganado. Ela sola sim em algumas faixas, mas o disco é quase todo cantado em coro; a voz de Cristina é mais uma que se une às vozes dos demais integrantes – é claro que se destaca, por ser a única voz feminina.
Monótono? Nem um pouco! A cada nova música apresentada temos uma surpresa. Quero aqui dar um destaque para as vozes de Tuco (cavaco), Lelo (violão) e Luizinho (pandeiro). São vozes de sambistas! O Tuco tem um vozeirão que impressiona, já tive o prazer de participar de uma roda de samba com ele, e, num primeiro momento, me assustei quando ele começou a cantar! De onde o homem tira tanto som? E o timbre que ele tem e a interpretação que imprime combinam perfeitamente com o repertório da roda de samba, ou com os chamados sambas de terreiro.
Os sambas de terreiro são músicas que eram cantadas nas escolas de samba, antes dos ensaios das baterias; eram compostos por integrantes dessas comunidades, e que faziam parte do cotidiano dos sambistas, das rodas de samba, das feijoadas e festas que aconteciam com freqüência. E são alguns desses sambas de terreiro das escolas do Rio de Janeiro que Cristina Buarque e Terreiro Grande cantam em suas rodas, nas apresentações e no disco, a maioria composto antes da década de 70.
O primeiro bloco do disco é iniciado pelos pandeiros de couro de Luizinho e de Renato, um com a afinação grave e outro mais agudo. As levadas dos dois pandeiros se completam, com muito balanço e variações que dão um toque especial ao acompanhamento. A primeira música, “O meu nome já caiu no esquecimento” de Paulo da Portela é interpretada pela voz de Cristina e acompanhado apenas pelos pandeiros. No segundo samba de Francisco Santana, também da Portela, são inseridos os violões (Lelo, 6 cordas e Cardoso, 7 cordas), o cavaco (Tuco), o surdo (Robertinho), o tamborim (Careca) e um belo coro entoado por esses rapazes.
No bloco 2 há um momento que realmente emociona àqueles que gostam de uma boa roda de samba, quando em “Já chegou quem faltava” entra o restante do grupo. Alfredo na cuíca, Neco no reco-reco, Wilson Miséria no prato e faca, Pereira e Jorge se juntam a Careca, formando um trio de tamborins. Entram também Eri na caixa de fósforo, Bocão no coro e Edinho no cavaco; todos eles participam do coro de todas as músicas. Temos uma roda de samba, roda de bambas, roda de amigos, no palco de um importante teatro de São Paulo. Enfim, um show de samba como o samba é! Espontâneo, alegre, com instrumentos característicos de tal manifestação, e o melhor, com muita propriedade.
Outro diferencial que o disco traz é o repertório. Compositores como Paulo da Portela, Alcides Lopes, Bide e Marçal, Silas de Oliveira, Zé da Zilda, Cartola, Picolino, Walter Rosa e Zé Keti entre outros, são reverenciados pelo grupo. São apresentados também alguns sambas inéditos, como “Eu não sou do morro” de Francisco Santana, “Inspiração” de Candeia e “Conselho da mamãe” de Manacéa.
Sem querer desvalorizar sambistas excepcionais como Noel Rosa, Paulinho da Viola e Nelson Cavaquinho, por exemplo, (nem mesmo foi essa a intenção do grupo) é muito bom ouvir um disco com os sambas desses outros compositores maravilhosos, muitos dos quais só são conhecidos por quem realmente pesquisa a fundo o universo do samba. Cristina Buarque e Terreiro Grande presenteiam o povo brasileiro com um “novo” repertório de sambas antigos!
Esse trabalho apresentado pelo grupo é fruto de intensa pesquisa e muita vivência em meio aos grandes sambistas. Cristina Buarque é uma das maiores pesquisadoras do samba. Em seus discos busca sempre trazer um repertório diferenciado, de velhos sambistas e amigos que ela valoriza e, ao interpretar, contribui para a difusão da cultura autêntica nacional e regional do Rio de Janeiro, de forma singela e muito justa.
A união dessa valiosa cantora e pesquisadora com a rapaziada do Terreiro Grande foi perfeita. Esse grupo tem feito um belo trabalho também com relação ao respeito ao samba, desde quando integrava o Morro das Pedras.
Muitas rodas de samba foram organizadas pelo Morro das Pedras para homenagear sambistas que compunham sambas de terreiro nas escolas de samba do Rio de Janeiro, como Noel Rosa de Oliveira, Aluísio Dias (Mangueira), Alcides “Malandro Histórico da Portela”, Heitor dos Prazeres, Anescarzinho do Salgueiro, Buci Moreira, dentre muitos outros.
Pois é, o samba não é só um gênero musical, é uma vasta cultura que abrange além da música, o modo de viver, o coletivismo, a educação, o improviso, a criatividade, a solidariedade, a espontaneidade, a dança, a culinária… Enfim, é uma manifestação popular e deve ser valorizada como ela é.
Viva Cristina Buarque e Terreiro Grande, que sabem o valor que nossa cultura tem, e melhor, sabem como difundi-la! Já chegou quem faltava, e que daqui pra frente não precisemos mais sentir falta de algo que está em nossas raízes. Viva o samba!
Notas
Cristina Buarque e Terreiro Grande foram indicados ao Prêmio Tim de Música 2008, concorrendo na categoria de melhor grupo de samba. Concorreram também nesta categoria os grupos Casuarina e o famoso Fundo de Quintal, o qual foi premiado. O evento prestou uma homenagem a Dominguinhos.
Logo depois da temporada realizada no teatro da FECAP, em fevereiro de 2007, Cristina Buarque e Terreiro Grande gravaram o programa ensaio da TV Cultura.
O disco foi lançado também no Rio de Janeiro. No blog do Terreiro Grande pode-se ver fotos e vídeos da roda de samba que fizeram em Paquetá. Para quem quer conhecer um pouco mais sobre samba, esse blog é um prato cheio! O internauta pode ouvir sambas disponibilizados pelo grupo, que apresenta também textos que contam estórias e um pouco da história de vários sambistas. http://terreiro-grande.blogspot.com.
Mais de 5 mil cópias do disco Cristina Buarque e Terreiro Grande já foram vendidas e distribuídas pela Tratore; está a venda nas principais lojas do país. Encontre os locais de venda no site http://www.tratore.com.br.
*Eduardo Fiorussi é professor do curso de Licenciatura em Música/Habilitação em Educação Musical do Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar e integrante do Núcleo de Samba Cupinzeiro.