A política dos autores nas obras de Terrence Malick

Fernanda de Oliveira Santos Costa*

INTRODUÇÃO: A TEORIA DO AUTOR

A teoria do autor, ou melhor, a política dos autores estabelecida através de muitos artigos e pelas mãos de vários críticos, mas que tem sua maior expressão centrada na revista Cahiers du Cinéma, é, em linhas gerais, a ideia do cinema como uma arte de expressão pessoal. Os jovens redatores desta revista esboçaram o que seria uma política dos autores, pois, a intenção destes críticos não era a de estabelecer uma teoria, visto que não havia um embasamento sólido no tratamento dessas ideias.

Segundo a política, o cinema era visto como uma arte de expressão de um “eu”, assim como a pintura ou a poesia. Dessa forma, evidencia-se também a tentativa por parte dos redatores da revista, de se legitimar o cinema como arte, de se elevar o status cultural do cinema. A ideia básica dessa política era, portanto, a de que o autor cinematográfico seria aquele que imprimisse a sua personalidade em sua obra. Mais precisamente, a ideia de autor está extremamente ligada à figura do diretor que é o chamado metteur en scène, ou seja, aquele que é responsável pela apresentação fílmica da história, aquele que conta com a câmera-caneta.

Assim como Edward Buscombe ponta em “Ideias de autoria”, muitos artigos contrários as ideias estabelecidas pela política dos autores foram escritos, além de muitas críticas feitas sobre as concepções falhas nela existente.

Deixando de lado o mérito de valor, de gênero ou do peso da sociedade na obra de um determinador autor-diretor, bem como os juízos de valor acerca da qualidade deste ou daquele filme, parece claro que o que a política dos autores tangencia é a presença, em certos diretores, de marcas de estilo e temáticas que se repetem ao longo das produções dos mesmos.

No caso de Terrence Malick, diretor de A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011), é extremamente clara a presença dessas marcas que se repetem em sua obra e serão analisadas neste artigo.

DIAS DE PARAÍSO (1978), ALÉM DA LINHA VERMELHA (1998) E A ÁRVORE DA VIDA (2011)

A produção filmográfica de Terrence Malick não é extensa,: são cinco filmes produzidos ao longo de uma carreira de trinta e oito anos. Apesar disso, usarei como exemplos dois filmes, comparando-os com seu último filme lançado, o estonteante A Árvore da Vida (2011). São eles: Dias de paraíso (1978) e Além da linha vermelha (1998). Quaisquer outros dois filmes poderiam ser escolhidos, porém a escolha desses se dá pela boa exemplificação de algumas mudanças que podem ser visualizadas no decorrer da produção de Malick. Dias de paraíso representa a fase inicial, as primeiras produções do diretor, e Além da linha vermelha representa o começo do ponto de virada para algumas características que serão explicitadas abaixo.

O primeiro deles, de 1978, conta a história de um triângulo amoroso. Bill (Richard Gere) e Abby (Brooke Adams) se relacionam às escondidas, mas dizem que são irmãos. Diante de uma oportunidade, Bill faz com que Abby se case com um fazendeiro que está muito doente e que é diagnosticado com apenas um ano a mais de vida, ou seja, Bill vê nesse fazendeiro a oportunidade de uma mudança de vida. No entanto, a história não termina bem, o fazendeiro e Bill morrem, deixando Abby e a irmã de Bill, Linda, sozinhas. Mesmo com essa sinopse dramática, o filme está longe de ter uma narrativa sentimental. Os desenrolares dos acontecimentos são mostrados de forma seca, cortante, sempre no sentido de provocar emoções mudas, mesmo porque a história toda é narrada por Linda, sempre de forma muito inocente e distanciada do conflito entre os casais.

Além da linha vermelha (1998) conta a história de soldados em um contexto de guerra mundial. O cenário de guerra, porém, é só a premissa para que os múltiplos personagens que assumem a narração do filme expressem seus pensamentos, inclusive pensamentos anti-guerra. Witt (Jim Caviezel) é o personagem que conduz a narrativa por parte maior tempo, mas divide a atenção do filme com outros personagens, pois não é realmente um personagem central.

Já a trama de A árvore da vida (2011) se passa internamente a uma família dos anos 50, o casal O’Brien, um pai autoritário e uma mãe carinhosa, e seus três filhos. Além disso, o filme se propõe a contar a história do mundo, através de tanto planos longos e extremamente contemplativos quanto de planos curtos e, mesmo assim, igualmente contemplativos. Contado de forma não linear, o filme começa com a notícia da morte do filho mais velho do casal O’Brien, que é o ponto de partida para o começo da desestruturação da família.

A AUTORIA EM TERRENCE MALICK

A partir da breve explanação sobre as narrativas dos filmes a serem analisados e, tomando como base a ideia de expressão pessoal no cinema autoral desenvolvido pela política dos autores, levantei seis marcas constantes na produção do diretor Terrence Malick. São elas:

– a religiosidade

– a natureza e seus quatro elementos

– a presença dos planos contemplativos

– a presença da figura masculina autoritária

– a presença feminina e a sua submissão e,

– o uso da voz over

Religiosidade:

Na maioria das discussões acerca da produção de Terrence Malick há, quase sempre, associações a um veio religioso. Essa ideia não é de todo errada, há sim no diretor uma opção, quase em todos os seus filmes, de se tratar de alguma forma a religião e a fé. Deve-se, porém, ser cuidadoso nesse sentido, pois não há uma pregação de dogmas ou crenças em seus filmes, não há uma adoração a um deus. O que existe na produção de Malick é uma problematização da vida em relação à contestação de um possível Criador e a sua obra.

Em Dias de Paraíso, existe a colocação por parte da menina Linda da divisão entre Deus e o Diabo. A menina diz: “Ninguém é perfeito. Nunca houve uma pessoa perfeita. Uma pessoa é meio demônio e meio anjo”. Existe aí o conflito que a menina não sabe muito bem explicar, mas seu irmão é um homem bom que matou outro homem. Há também no filme, passagens bíblicas como a chegada de uma praga de grilos que destrói completamente a plantação, pois o fazendeiro se vê na necessidade de atear fogo na produção. Essa praga vem logo depois que o rico fazendeiro vê um beijo entre Bill e Abby, o que se caracterizaria como incesto na visão do fazendeiro, porém um falso incesto. A praga viria, então, como castigo para esse pecado.

Em Além da linha vermelha há, desde as primeiras imagens, uma clara relação com a religiosidade e a procura por um deus. Durante todo o filme, essa discussão é incitada pela figura da guerra que está o tempo todo presente. A religiosidade aqui também está ligada a outra marca presente em todo o filme de Malick que é a natureza. Há sempre a figura da morte que paira no pensamento dos soldados e seus pensamentos em busca de um deus giram em torno do medo desse encontro.

Já em A árvore da vida, a relação com a religiosidade é bem mais clara. O filme inicia-se com a citação de uma passagem bíblica, retirada do Livro de Jó, que apresenta Deus como opressor, que tudo dá e tudo tira. Logo depois, Malick expõe preceitos cristãos: a senhora O’Brien diz, em voz over, que cada ser vivo pode escolher levar a sua estadia na Terra por dois caminhos: o da graça ou da natureza. Ou seja, reiterando mais uma vez a questão do opressor e do oprimido, que seriam na diegese do filme, respectivamente, o pai, tirano e autoritário, e a mãe, complacente e amorosa. Durante o filme todo, é retomada a figura de Deus ou de uma entidade maior, sendo questionado acerca das questões da vida e principalmente da morte, no sentido de obter uma explicação, uma justificação para a morte do filho mais velho.

Em todos os filmes, com exceção do primeiro deles, Terra de Ninguém (1974), no qual não identifiquei algum traço de religiosidade, há, em algum nível, traços de religiosidade, chegando ao ápice da discussão em A árvore da vida. Claramente, a religiosidade – e não a religião em si – é uma marca autoral de Terrence Malick, mais presente em umas obras do que em outras.

Natureza:

Esta é uma marca que se encontra presente em todos os filmes de Malick, sem exceção. A Natureza se configura na obra do diretor como uma entidade, muito ligada à religiosidade. Configura-se também, em muitos filmes, como um lugar acolhedor que serve de lugar seguro para os personagens.

Além disso, há também a presença dos quatro elementos em toda a filmografia: o ar, o fogo, a terra e a água. Em todos eles há a presença de queimadas, ou então, de vulcões e chamas que têm sempre uma representação significativa. Por exemplo, em Terra de Ninguém e em Dias de Paraíso há a queima de, respectivamente, uma casa e de uma plantação. Ambas as queimadas são mostradas de forma extremamente poética e demorada, demonstrando a importância da simbologia daquele fogo. O diretor poderia ter simplesmente mostrado um ou dois planos do fogo consumindo a casa e a colheita, porém, sua escolha é sempre pelo contemplativo. Isso vale também para os planos da terra, da água e também do ar, em todos os filmes existem planos das copas das árvores, dos gramados, e do vento como um todo, mostrados poeticamente.

Em Dias de Paraíso a natureza é mostrada através dos campos de plantação e também na parte final do filme como abrigo para a “família” fugitiva. Toda a relação do fogo, do ar, da água e da terra também está colocada neste filme. Em Além da linha vermelha, o personagem de Witt já aparece logo nas primeiras cenas com uma relação extremamente íntima com a natureza, indagando-se sobre questões de vida e morte para alguma Entidade que nós, muitas vezes, não sabemos se é um deus ou a própria Natureza que o rodeia. A natureza está ali representada também através da figura dos índios.

Em A árvore da vida essa relação está expressa desde a retrospectiva da origem do mundo até no que é natural humano: o nascimento, os primeiros passos, a relação entre pais e filhos, a morte.

Planos Contemplativos:

Uma das grandes marcas de Terrence Malick é o seu trabalho com as imagens que primam pelo contemplativo. São imagens que talvez possam parecer sem função e desimportantes para a narrativa, mas que carregam em si uma beleza plástica e que têm a função de minimizar o uso da palavra, ou seja, carregam em si significados que o espectador não vai receber através de diálogos, da narração ou de qualquer outro meio, mas sim através da contemplação dessas imagens.  Nos três filmes analisados aqui há a presença de tais planos.

Dias de Paraíso, o segundo filme da carreira de Malick, já apresenta essa marca que é uma das mais reconhecidas do diretor, mas de forma bem menos intensa. Além da linha vermelha, filme de quase três horas, apresenta essa marca de forma bem mais intensa que o filme de 1978.
Em A Árvore da Vida, se comparado com seus outros filmes, essa marca chega ao seu ápice. Grande parte da força do filme está nas suas imagens que, pela falta do diálogo e da própria narração, conduzem de maneira sensível à diegese.

Figura masculina:

Em toda a produção de Malick há a oposição entre as figuras dos homens e das mulheres. O masculino é retratado de forma autoritária e tirana, desde o primeiro deles, Terra de ninguém. Em alguns dos filmes a característica de agressividade se apresenta de forma mais sutil, como é o caso do personagem de Richard Gere em Dias de paraíso, porém em certos momentos o personagem se mostra extremamente agressivo. Além disso, sua autoridade e tirania é posta em prática quando o personagem obriga Abby a se casar com o fazendeiro.

Em Além da linha vermelha, a figura autoritária e tirana está obviamente representada nos capitães, sargentos e até mesmo nos soldados. Além disso, há uma ideia de uma espécie de colonizador na presença dos soldados em terras indígenas.

Em A árvore da Vida há claramente a oposição entre o homem, tirano (a Natureza) e autoritário representado pelo personagem do senhor O’Brien, Brad Pitt, e a mulher, a senhora O’Brien, complacente e submissa (a graça). No caso deste filme há a extensão do autoritarismo do homem para a figura paterna. Em A árvore da vida, pai e filho estão em constante embate justamente pela forte repressão por conta da criação que recebeu quando menino.

Presença feminina:

As mulheres, por sua vez, são retratadas não de forma pejorativa, mas ainda sim como sendo submissas a esse autoritarismo dos homens de Malick. Desde o primeiro filme Terra de ninguém (1974), a mulher, Holy, se mostra frágil por se deixar levar pelas loucuras de seu namorado Kit, ao mesmo tempo em que se mostra extremamente graciosa. A própria câmera do diretor mostra, através de planos que praticamente dançam em torno das personagens femininas, essa graciosidade e forma de anjo que as mulheres do diretor tomam forma. Muito dos planos contemplativos tão utilizados pelo diretor aparecem nas cenas em que nos são mostradas todas as mulheres. Em A árvore da vida se dá o ápice dessa apresentação da mulher através das lentes de Malick. A câmera parece flutuar em volta dos cabelos ruivos da senhora O’Brien.

Voz over:

Em todos os seus filmes, sem exceção, os personagens e a história são permeados por uma narração em voz over que pertence sempre a um ou mais personagens diegéticos, recurso que vem, no entanto, sendo usado cada vez menos. A intensidade do uso desse recurso, bem como a multiplicidade dos personagens narradores, ou seja, a apresentação do pensamento de diversos personagens, varia de filme para filme.
Em seus dois primeiros filmes, Terra de Ninguém (1974) e Dias de Paraíso (1978), o uso da voz over é bem mais intenso do que nos próximos três filmes lançados por Malick, sendo que Terra de Ninguém apresenta mais o uso da voz over do que Dias de Paraíso. Nestes dois filmes a narração se dá através de uma só personagem, ambos femininos: no filme de 1974, Holly, e, no de 1978, Linda. Ambas as narrativas apresentam o ponto de vista de pré-adolescentes e que nos dão uma visão inocente dos acontecimentos. Fora a visão das meninas, as intenções e os pensamentos dos outros personagens nunca são completamente explicitados, a não ser através das imagens.
Os próximos três filmes de Malick apresentam, por sua vez, um uso mais múltiplo da narração. Em nenhum dos três há um narrador único e sim uma alternância de vozes que vão introduzindo os pensamentos de vários personagens. Em Além da linha vermelha se dá o ápice da multiplicidade de personagens narradores. O mesmo processo se dá em Árvore da Vida: há mais de um narrador que se apresenta em diferentes momentos da narrativa. São eles: a mãe, Mrs. O’Brien, o filho mais velho, Jack, na figura de Sean Penn e também na figura de Hunter McCracken, que faz o papel de Jack mais novo.
Há também um uso cada vez menor da voz over em cada filme chegando a A árvore da Vida em que quase não há diálogos e narração. Em uma crítica ao filme, Fábio Andrade chega a dizer que no filme “há falar, não há diálogos”. De maneira geral, a voz over é uma ferramenta usada para a expressão da reflexão filosófica dos personagens e talvez até do próprio Terrence Malick.

CONCLUSÃO

De acordo com o que se tentou levantar sobre a existência ou não de autores cinematográficos por parte dos teóricos da política dos autores, representados principalmente nas figuras dos Jovens Turcos da revista Cahiers du Cinéma, tentei expor aqui o que se é dito como o trabalho do crítico de acordo com alguns dos defensores da teoria do autor, ou seja, tentei levantar as repetições, as marcas da personalidade do diretor, roteirista e, muitas vezes, também produtor, Terrence Malick.

Não entrei no mérito de valor da obra do direito ou qualquer julgamento de qualidade, comparando seus filmes um com os outros ou com os de outros diretores. Além disso, Jean-Claude Bernardet em seu texto “A política dos autores: França, Brasil anos 50 e 60” estabelece o conceito de matriz cinematográfica dos autores e que eu não persegui neste artigo pelo fato de ser uma tarefa extremamente árdua e talvez arbitrária a busca pela matriz de um diretor. Porém, se há uma matriz que perpassa todos os filmes de Malick, com certeza essa matriz está evidenciada em seu último filme A árvore da vida (2011).

De todas as discussões acerca da política dos autores ou de uma possível teoria tiro somente uma certeza: se há um autor na figura do diretor, ou de algo que o valha, ou seja, na figura daquele que é responsável pela estética e pela mise-en-scène de um filme, com certeza Terrence Malick é um autor.

* Fernanda de Oliveira Santos Costa é graduanda de Imagem e som, na Universidade Federal de São Carlos e Editora Responsável da Seção Plano Detalhe na Revista Universitária do Audiovisual (RUA). Atualmente é estagiária no Projeto Contribuinte da Cultura.

BIBLIOGRAFIA

BERNARDET, Jean-Claude. “Domínio francês: anos 50”, in O autor no cinema: A política dos autores: França, Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Edusp/Brasiliense, 1994.

BUSCOMBE, Edward. “Ideias de autoria”, in Fernão RAMOS (ed.), Teoria contemporânea do cinema, volume 1. São Paulo: Senac, 2005.

STAM, Robert. “O culto ao autor”, in Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

ANDRADE, Fábio. “A árvore da vida, de Terrence Malick”, in Revista Cinética, http://www.revistacinetica.com.br/aarvoredavida.htm. Acessado em: 25 de Junho de 2012

FILMOGRAFIA

Dias de Paraíso, Terrence Malick (1978).

Além da Linha Vermelha, Terrence Malick (1998).

A Árvore da Vida, Terrence Malick (2011).

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta