Alfredo Werney*
RESUMO:
Este artigo objetiva realizar uma análise das relações entre literatura e cinema, enfocando o filme Estorvo de Ruy Guerra. A partir do conceito de tradução intersemiótica, de Roman Jakobson, observamos como o cineasta africano conseguiu transmutar os diversos planos de sentido da obra literária através dos elementos que compõem a linguagem cinematográfica, tais como: montagem, personagens, movimentos de câmera, música, luz e cenário.
INTRODUÇÃO
Ao estudarmos a história do cinema brasileiro, ainda que de maneira breve e sem aprofundamento, veremos que importantes cineastas se interessaram pela nossa literatura. Este fato gerou parcerias férteis entre as duas artes, dentre estas, podemos destacar as seguintes: Nélson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1963, Memórias do cárcere, 1984), Arnaldo Jabor e Nélson Rodrigues (Toda nudez será castigada, 1973, Casamento, 1975), Walter Lima Junior (Menino de engenho, 1965, da obra homônima de José Lins do Rêgo; Inocência, 1983, da obra homônima de Visconde de Taunay) e Ruy Guerra e Chico Buarque.
Ruy Guerra, embora nascido em Lourenço Marques (Moçambique, na atualidade), é considerado um “cineasta brasileiro” pela convivência com a cultura do nosso país. Ele contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica mais radical e inovadora no cinema moderno brasileiro. Diretor de importantes obras cinematográficas, como Os Fuzis (1964) e Os cafajestes (1962), Guerra também se firmou no mercado brasileiro através de “adaptações” de obras literárias. O cineasta transformou em filmes as seguintes obras de seu amigo Chico Buarque: A ópera do malandro (1986) e Estorvo (2000). Estes dois artistas formaram uma parceria importante, pois ampliaram as possibilidades estéticas do cinema brasileiro e realizaram uma instigante leitura da cultura brasileira.
Pretende-se, através desse artigo, estudar as relações estruturais entre cinema e literatura a partir do filme Estorvo, escrito e dirigido por Ruy Guerra. Objetiva-se entender de que maneira o cineasta manipulou os elementos do discurso cinematográfico em sua película, a fim de recriar os diversos planos de sentido presentes no livro. Para a realização desta empreitada será basilar o conceito de tradução intersemiótica de Roman Jakobson (conceito que será ampliado e estudado de maneira mais detalhada por Julio Plaza) e os estudos dos elementos da linguagem cinematográfica do crítico francês de cinema Marcel Martin.
Ao invés de procurarmos classificar o filme como “fiel” ou “infiel”, “superior” ou “inferior” ao livro, almejamos estudar como é construído o tenso diálogo entre os dois sistemas de signos: o audiovisual e o literário. Nesse sentido, acreditamos que este trabalho é importante, porque nele se procura realizar um estudo do filme sem concebê-lo como apenas um suporte para se discutir ideologias e problemas sociais e políticos, embora não deixemos de reconhecer a importância das análises que não são voltadas para a imanência do fenômeno cinematográfico. O cinema é, pois, entendido aqui como um sistema de signos autônomo, que constrói uma visão de mundo através da estruturação de seus componentes formais. Uma linguagem capaz de filosofar através de imagens, como bem nos dissera o filósofo Gilles Deleuze.
AS TENSÕES ENTRE CINEMA E LITERATURA
Cinema e Literatura são artes que sempre mantiveram variadas relações. Não só no que se refere à influência da estrutura narrativa do romance com a estrutura do filme, mas também no que se refere à influência do cinema na escrita fragmentada, e composta através de sucessão de montagens de alguns escritores contemporâneos (como é o caso do próprio Chico Buarque). O fato que nos interessa, ao analisar um filme que partiu de uma obra literária, não é meramente de que maneira o filme reconstruiu a narrativa fílmica. Este tipo de análise não ajuda muito a interpretarmos um filme, uma vez que consiste apenas em sobrepor o cinema à literatura, como se a sétima arte fosse tão-somente um meio de se “contar” uma determinada história escrita.
É importante entender que a ideia de “adaptar” elimina o caráter inventivo e poético do cinema, colocando-o como uma linguagem, em segundo plano. Dessa maneira, acreditamos ser mais coerente conceber a adaptação como um processo de tradução intersemiótica. Traduzir, nesse sentido, significa transcriar. Transcriar não é repetir um mesmo conteúdo de uma obra “original”, mas sim inventar, recompor e expandir as possibilidades de leitura estética.
Roman Jakobson foi um dos primeiros a tratar da questão da tradução intersemiótica. Ao diferenciar os variados tipos de tradução, o pensador russo coloca que a tradução intersemiótica consiste na interpretação de signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. Júlio Plaza, em um estudo mais extenso e detalhado sobre o problema da tradução, compreende este tipo de tradução como:
[…] prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e reprodução, como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas, eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como transcriação de formas na historicidade. (PLAZA, 2001, p. 14)
O conceito de “adaptação para o cinema”, como vimos, parece sobrepor o signo verbal ao audiovisual, delegando um papel secundário à sétima arte. Trata-se de uma visão que não abarca as complexidades críticas, históricas, criativas de que nos fala Plaza. Quando falamos de tradução intersemiótica, não se trata, portanto, apenas de uma questão de nomenclatura: o que se almeja é afirmar que todo ato de traduzir é um processo de recriação e de expansão de significados.
Estorvo, nesse sentido, não é uma mera adaptação, pois Ruy Guerra acrescenta informações, introduz novas reflexões sobre a linguagem do cinema e apontas novas possibilidades de leitura da obra de Chico Buarque. Na realidade, se bem observarmos, a relação dos grandes cineastas com a literatura nunca foi de submissão. Cineastas do calibre de Ruy Guerra, Nélson Pereira dos Santos e Walter Lima Junior não se conformam em apenas transportar elementos de um sistema de signos para outro. No fundo, estes diretores se propõem a questionar a representação do cinema clássico e o processo de decupagem tradicional. Ademais, notamos que há uma preocupação em se construir uma visão de mundo e em se empreender uma leitura crítica do Brasil.
Pode-se, dessa forma, afirmar que as relações entre cinema e literatura são tensas. Trata-se de relações que brotam do embate de duas visões de mundo e de dois sistemas de signos diferentes. Por este motivo, não é raro ver escritores inconformados com as “transposições” de suas obras para a linguagem fílmica.
ESTORVO, DE CHICO BUARQUE
Francisco Buarque de Hollanda é um dos artistas brasileiros mais valorizados pela crítica nacional. Compositor e escritor, tornou-se famoso por meio de suas canções. Ao compor letras e melodias, ao mesmo tempo, complexas e comunicativas, Francisco conquistou um enorme público no Brasil e em outros países. Millôr Fernandes, ao falar sobre o artista, chegou a afirmar que ele se tratava da “única unanimidade” nacional.
Estorvo, publicado em novembro de 1991, é o primeiro romance de Chico Buarque. A obra está estruturada em 11 capítulos (sem títulos), e ganhou o “Prêmio Jabuti” no ano de 1992. O compositor carioca escreveu, antes desse romance, as peças Roda Viva (1968), Calabar (1973), Gota D’água (1974) e Ópera do Malandro (1979) e uma novela intitulada Fazenda Modelo (1974). Aproximando-se de uma escrita kafkiana, Estorvo não segue um fio narrativo, pois opta por um discurso fragmentado, caótico, como a própria vida nas grandes cidades da atualidade. A obra trata, em linhas gerais, do homem perdido na multidão, do homem que se esconde a todo tempo das pressões sociais e do vazio que se depara em sua existência cotidiana.
Estorvo é uma viagem a um mundo desconhecido e desarmônico, “uma peregrinação alucinada em demanda das raízes perdidas, através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão”, como bem nos dissera José Cardoso Pires. O livro revela a fragilidade da memória e exalta o movimento e o fluxo descontínuo das relações, das identidades do mundo (chamado por muitos de pós-moderno). Daí o ritmo incessante das frases e a sobreposição de imagens, que de tão fluentes e rápidas (poderíamos dizer cinematográficas), faz com que não consigamos acompanhá-las em nossa leitura, pois também nos perdemos no meio de tantas imagens, formas, cores, pessoas, situações. Este excesso de tudo desemboca numa existência vaga, esvaziada de sentido e sem substância.
As personagens não têm nome e o livro é narrado em primeira pessoa. A narrativa oscila entre o sonho, a realidade e a loucura. Tal tensão é criada desde o preâmbulo da obra: uma campainha toca e o personagem levanta-se para atender. Olha fixamente pelo olho mágico (metáfora da distorção e da atmosfera onírica), para e não atende à sua visita, pois tem em sua mente que do outro lado da porta há alguém conhecido que o persegue insistentemente: um sujeito de terno e gravata, barba sólida e rigorosa – imagem recorrente no texto de Chico Buarque.
Em Estorvo as frases parecem estar despejadas no papel como se fosse uma espécie de música aleatória, executada em um fluxo contínuo e vigoroso. A narrativa se encontra cheia de momentos de puro improviso, como o jazz, o que se coaduna muito bem com a psique das personagens e com o mundo urbano da atualidade. Esta passagem do livro evidencia tais aspectos:
Chego à rodoviária com uma bolada em cada bolso da calça, quatro tijolos de notas miúdas, que o caixa do banco encasquetou de me trocar o cheque assim. A calça é justa e as protuberâncias dão na vista. Consigo uma vaga no banheiro e separo o dinheiro da passagem. O homem do guichê examina cada nota, frente e verso, embora elas não sejam muito velhas nem novas demais. Com o bilhete na mão, ando de plataforma em plataforma a fim de não ficar tão exposto. Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que cruzo sempre com as mesmas pessoas. E essas pessoas também parecem se admirar, me vendo passar tão repetido. Volto ao banheiro, e trancado espero a hora do ônibus. (BUARQUE, 1991, p.23).
A obra de Chico despertou a atenção de críticos renomados como Roberto Schwarz e Alfredo Bosi, além de ter virado tema de mestrado e de diversos trabalhos acadêmicos. Roberto Schwarz, em artigo escrito para a revista “Veja”, ressalta a inventividade de Chico Buarque:
A linguagem reúne aspirações difíceis de casar: trata de ser despretensiosa – palavras de um homem qualquer – mas ainda assim aberta para o lado menos imediato das coisas. A combinação funciona muito e produz uma poesia especial, que é um achado de Chico Buarque. A expressão simples faz parte de situações mais sutis e complexas do que ela. (SCHWARZ, 1991, p.01).
O fato é que, se Estorvo não é uma obra totalmente inovadora (embora saibamos da fragilidade deste conceito), ao menos se trata de uma experiência estética de grande valor para a literatura brasileira, pois não hesita em arriscar e buscar um caminho pouco visitado pelos nossos escritores contemporâneos.
ESTORVO, DE RUY GUERRA
Estorvo (2000) é uma produção cinematográfica que envolve três países: Brasil, Cuba e Portugal. O filme, escrito e dirigido por Ruy Guerra, foi indicado na para a categoria melhor filme no Festival de Cannes. Ganhou o prêmio de melhor música e melhor fotografia no “Festival de Gramado”. Além disso, conquistou o prêmio de melhor filme latino (“Santa Fe Film Festival”) e melhor fotografia no “Festival de Viña del Mar”.
O filme não busca trazer para a tela todas as situações narradas no livro, até mesmo porque isto se tornaria um projeto inviável. Ruy Guerra consegue transmitir, através de uma rigorosa pesquisa estética e da ousadia formal que lhe é peculiar, o espírito caótico e o embaraço linguístico da obra literária. E o que mais nos chama a atenção é o fato de se tratar de uma película experimental e radical do ponto de vista da linguagem fílmica, mas que não desemboca no puro exercício estético. Eduardo Valente, em seu artigo Estorvo, de Ruy Guerra, ressalta esta qualidade do filme:
Estorvo é, antes de tudo, um filme necessário. E as razões são inúmeras. A mais reconhecida é a mais óbvia: seu radicalismo formal e narrativo, sua história que gira em torno de nada de prático, de nenhum “plot” específico, sua arbitrariedade enquanto produto de autor, que pode seguir o caminho que desejar e ser finalizado em qualquer momento. […] Um esteticismo não vazio, mas cheio de significado. Que busca a convergência de olhar com um homem que perdeu completamente a capacidade de se ver em si mesmo, nos outros, no mundo. E que por isso mesmo ascende lentamente ao nível da loucura. (VALENTE, 2000, p.1- 2).
Com efeito, Estorvo é um filme de grande importância na filmografia brasileira, uma vez que é uma película que procura superar as convenções e os clichês estabelecidos pelas produções feitas para o consumo rápido do grande público. Não é uma obra cinematográfica que visa apenas se utilizar de um livro que obteve sucesso, para ganhar prêmios e conquistar uma grande quantidade de público. Há na película de Ruy Guerra, se bem observarmos, um desejo de expandir as possibilidades estéticas do cinema brasileiro e de criar uma rica metáfora sobre a crise do sujeito na atualidade.
OS COMPONENTES DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
Para compreendermos melhor o discurso fílmico de Estorvo, faz-se necessário realizarmos um estudo, ainda que breve, dos componentes cinematográficos que estruturam a obra fílmica. Para compreendermos um filme de forma mais aprofundada, é imprescindível a análise dos elementos da linguagem fílmica, pois eles são responsáveis pela construção de sentido da narrativa. Costumamos ver, com certa constância, que os estudos de cinema se dão apenas através dos aspectos relativos ao conteúdo (como se o filme estivesse desvinculado de uma estética, de uma forma).
A partir da observação detalhada e cuidadosa dos aspectos sonoros e visuais de Estorvo, elencamos alguns elementos fílmicos que nos chamaram mais atenção e que serão de grande valor para a nossa análise. Acreditamos que estes elementos exerceram um papel de maior destaque na construção formal da obra fílmica, embora saibamos da existência de outros recursos cinematográficos que também são construtores de sentido.
O PROCESSO DE MONTAGEM
A montagem, como se costuma afirmar no mundo da sétima arte, é um dos componentes mais influentes na construção de um filme, é o fundamento da arte cinematográfica. A partir de pesquisas e de experiências estéticas dos cineastas russos Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, importantes estudiosos da linguagem fílmica, a montagem tornou-se basilar no processo de construção de uma obra audiovisual. Muitas são as teorias da montagem no cinema e seria muito extenso resumi-las todas em uma pesquisa breve. Interessa-nos, para nossa análise, a divisão que Marcel Martin faz em sua obra “A linguagem cinematográfica”. Martin admite a existência de dois tipos de montagem: a montagem narrativa e a expressiva. O crítico francês explica da seguinte forma:
Chamo montagem narrativa ao aspecto mais simples e imediato da montagem, aquele que consiste em ordenar segundo uma sequência lógica ou cronológica – tendo em vista contar uma estória – vários planos, cada um dos quais significa um conteúdo de acontecimentos, contribuindo para avançar a acção sob o ponto de vista dramático (o encadeamento dos elementos da acção segundo uma relação de causalidade) e sob o ponto de vista psicológico (a compreensão do drama pelo expectador). Em segundo lugar, há a montagem expressiva, estabelecida sobre as justaposições de planos e tendo por finalidade produzir um efeito directo e exacto através do choque de duas imagens. Nesse caso, a montagem visa exprimir através de si própria um sentimento ou uma ideia: deixa então de ser um meio para ser um fim. Longe de ter por finalidade ideal o apagar-se perante a continuidade, facilitando ao máximo as ligações flexíveis de um plano ao outro, tende, pelo contrário, a produzir sem cessar, efeitos de ruptura no pensamento do expectador, fazendo-o tropeçar intelectualmente para tornar mais viva nele a influência da ideia expressa pelo realizador e traduzida pela confrontação de planos. (MARTIN, 1963, p.167-168).
Se nos basearmos nos conceitos de Martin, podemos dizer que a montagem de Estorvo é expressiva, pois ela se preocupa com a expressão plástica de cada sequência e promove rupturas e descontinuidades na narrativa fílmica. O caos do mundo de Estorvo está expresso na montagem, que não é linear nem explicativa. O ritmo é irregular: ora percebemos planos rápidos e vigorosos, ora planos de longa duração. A construção do ritmo do filme é, dessa forma, muito significativa: revela-nos um mundo desconexo e tenso, através da quebra da fluidez e da harmonia – elementos de grande importância na construção da narrativa de Chico Buarque.
A PARTICIPAÇÃO DA MÚSICA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO
O cinema comercial hollywoodiano nos apresenta, na maioria dos casos, composições musicais pautadas pelo excesso de dramatismos e de intensidade sonora – como uma forma de enfatizar o que se vê nas imagens. Trata-se de intervenções musicais pleonásticas (para usarmos um termo de Marcel Martin) – que buscam somente dizer sonoramente o que já foi posto em imagens. É como se o som fosse tão somente algo que se acrescenta ao que já se está pronto. Essa concepção de música do cinema gera o clichê, na medida em que a trilha sonora não produz reflexão, nem propõe novas associações que não estejam automatizadas pela nossa percepção audiovisual.
A música da película de Ruy Guerra é pensada e elaborada de uma maneira diferente do que se observa na maior parte das produções brasileiras, – quase sempre compostas de canções populares sem força narrativa e intervenções musicais meramente de reforço da camada visual. A trilha musical foi composta pelo músico experimentalista Egberto Gismonti. Este artista, nascido em Carmo (Rio de Janeiro), é um dos importantes nomes da música instrumental brasileira, destacando-se como violonista, flautista e compositor de peças musicais experimentais – construídas de forma complexa e pouco usual para os padrões da música brasileira.
Desvencilhando-se dos clichês melódicos e das associações convencionais entre som e imagem, Gismonti cria uma composição para Estorvo repleta de texturas musicais e de momentos de atonalismo. Sua música não deseja explicar o conteúdo da imagem, mas sim ampliar a tensão poética da narrativa. Ela contribui, sobremaneira, para fixar a atmosfera onírica da obra. Em grande parte do filme, ouvimos uma música tensa e aparentemente aleatória (repleta de notas marteladas fortemente no piano) que funciona muito bem para sugerir a desorganização mental do narrador. A distorção das imagens é representada na música pelo trabalho com o ruído e as distorções de som.
O PAPEL DA CÂMERA
A câmera possui um papel decisivo na construção de um filme. E sabemos que a emancipação da câmera (já que nas primeiras produções ela ficava inerte, apenas registrando as imagens de maneira frontal) teve grande importância para a história do cinema. Como afirma Marcel Martin (1963), “muito cedo a câmera deixou de ser uma testemunha passiva, abandonando a função de registradora objectiva dos acontecimentos, para se tornar a sua testemunha activa e a sua intérprete”. A câmera (àquelas das produções que se preocupam com a criação estética e não apenas com os modismos da indústria cinematográfica), efetivamente, não deseja captar uma realidade exterior, mas sim criar uma realidade própria.
A câmera de Estorvo é desfocada e tensa. Revela-nos um mundo cambiante, indefinido, muito diferente da harmonia e da leveza encontrada nos filmes feitos a partir da gramática da linguagem clássica. Em grande parte das sequências ela está na mão, acompanhando os tensos movimentos e a confusão mental da personagem central. Não há dúvida de que existe uma estreita relação entre a escrita buarqueana e o papel criador da câmera de Ruy Guerra, na medida em que exploram uma linguagem repleta de distorções, pautada na expressão poética e avessa à transmissão de um conteúdo claro e inteligível.
AS PERSONAGENS
Estorvo pode ser lido como uma alegoria do homem moderno, perdido em um mundo fragmentado e ambíguo. Os personagens desta obra, por este motivo, não possuem nome e são esquizofrênicos, em sua maioria. O filme narra, utilizando-se de muitas passagens do próprio livro (algumas sem alterações), a trajetória caótica de um sujeito de classe média que fora esquecido pela família e que vive em estado de desorganização mental, vagueando pelo mundo. Ele rouba as joias da irmã e foge para um sítio da família que fora tomado por usuários de drogas e traficantes. O sujeito da narrativa sofre de algo muito grave e perturbador: ele acha que sempre está sendo perseguido por alguém. Este aspecto é ressaltado no filme pela recorrência de planos visuais, pela circularidade da narrativa e pelas repetições musicais (ostinatos, na terminologia musical). Nossa leitura se afina com a de Leila Cristina Barros, que define a personagem central da seguinte forma:
Esse sujeito que estorva o caminho dos outros circula, ao mesmo tempo, despercebido, pois é insignificante aos olhos dos outros e foge o tempo todo, a esmo. É um sujeito sem identidade – como os demais protagonistas, que não têm nome e são descritos como tipos: Eu, minha mãe, minha irmã, minha ex-mulher, a magrinha – e sem lugar definido, na família e na sociedade. (BARROS, 2008, p. 37).
O personagem central (Eu) é interpretado pelo ator cubano Jorge Perugorría, que possui um sotaque que oscila entre português e espanhol, criando a sensação de alguém que não consegue se comunicar de forma eficiente com o mundo, reforçando as ambiguidades da narrativa fílmica.
Um aspecto a ser ressaltado, presente tanto na obra literária quanto na visual, é a sugestão de uma possível relação incestuosa entre o personagem central (Eu) e sua irmã – o que reforça a ideia de ambiguidade e desestruturação familiar. Vejamos este trecho do primeiro capítulo:
Minha irmã andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o corpo não realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de seda há apenas movimento. Um movimento que realiza as formas de um corpo, por baixo do peignoir de seda. E eu me pergunto, quando ela sobe a escada, se não é um corpo assim dissimulado que as mãos tem maior desejo de tocar, não para encontrar a carne, mas sonhando apalpar o próprio movimento. (idem, p. 19).
No filme, observamos que fica evidente o processo de degradação da família, a incomunicabilidade nas relações e a falta de crença no mundo. Gil Carlos Pereira acentua a questão do abandono do indivíduo na sociedade e da falta de algo que possa dar sentido a sua existência:
Estorvo (1995) enfoca um mundo abandonado por Deus, substituindo a crença no transcendente pelo ateísmo religioso, Deus por Nada, e assim fazendo, define a vida humana pela gratuidade e pela ausência de sentido. Dessa forma, a figuração alegórica dos destinos humanos é feito à revelia dos condicionamentos sociais e da dos próprios homens para imprimirem um sentido à sua existência. (PEREIRA, 2002, p.28).
Eduardo Valente observa que na construção de personagens de Ruy Guerra há um exagero formal, no sentido de que a estranheza atingida na narrativa torna-se desnecessária. Segundo o crítico:
Uma coisa apenas incomoda, no mau sentido, no filme: os personagens secundários e sua estranheza excessiva. Sim, porque no meio de um filme que, como vimos, consegue pela câmera, pela trilha sonora, pela narração, pela estrutura, pela geografia física e idiomática, jogar o espectador num mundo novo e estranho a ele, caracterizar os personagens com clichês de um freak show, parece mais do que over, desnecessário. Com isso, eles perdem força, pois de tão estranhos viram clichê, e para o espectador, o filme perde parte de seu radicalismo ao virar apenas uma “loucura”, com a qual ele não se identifica (VALENTE, 2000, p.03).
Não se pode negar que há, realmente, certo exagero na construção das personagens do filme. Porém, é importante que se diga, Ruy Guerra consegue transmitir, de forma convincente, as distorções e a atmosfera de loucura presente nas personagens do livro de Chico Buarque.
LUZ E CENÁRIO
Henri Agel, em sua importante obra “O cinema”, afirma-nos que a fotografia e a música de um filme são transfiguradoras, “fazendo incidir uma luz diferente sobre a mesma cena, esta ganha outro significado; da mesma maneira, ligada a um determinado acompanhamento, uma sequencia pode colorir-se de uma tonalidade mais penetrante” (1972, p. 145). Com efeito, a luz (que é inseparável do cenário) de um filme é um dos principais elementos que participam da construção de sentido das cenas.
Estorvo possui uma iluminação repleta de contrastes, de efeitos ópticos e de distorções na imagem. Estas constantes estéticas contribuem para transmitir a sensação de sonho, de loucura e caos – aspectos muito recorrentes na escrita buarqueana. Leila Cristina Barros ressalta os efeitos de estranhamentos provocados pelo uso da fotografia:
A fotografia quase monocromática do filme é um dos elementos que produz um efeito psicológico de estranhamento, funcionando como contraponto à atmosfera geral da narrativa. Esse efeito foi obtido rodando em contra-luz (com exceção da cena do café da manhã), para tirar a cor, e fazendo tratamento em laboratório para descolorir ainda mais. (BARROS, 2008, p.101)
Em relação ao cenário, o filme não se passa apenas em um local e não há referência específica a uma cidade (embora a imagem do Rio de Janeiro esteja presente no filme). Este fato gera o efeito de sentido de que o indivíduo vive perdido em um mundo de labirintos, sem um lugar onde possa sentir-se seguro. A confusão de cenários (vale lembrar que o filme foi gravado em Cuba e no Brasil), de escadas, de idiomas (na rua se fala uma mistura estranha de português com espanhol), ressalta a mente conflituosa dos personagens e a desolação do homem urbano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para além da ideia empobrecedora de adaptação, Ruy Guerra se propôs, em Estorvo, a refletir sobre o próprio discurso cinematográfico, através de uma linguagem autorreferente e questionadora da decupagem clássica (por este motivo, acreditamos ser mais adequado o termo tradução intersemiótica). O cineasta não teve como objetivo narrar uma estória de forma convencional. Dessa forma, não procurou, em seu discurso fílmico, obedecer todas as situações dramáticas presentes na obra literária.
Para tanto, Guerra utilizou-se de recursos poucos usuais no cinema brasileiro e no cinema hollywoodiano (aquele que visa tão-somente agradar o grande público). Assim pode-se notar que Guerra se utiliza de recursos, tais como: câmera trêmula e repleta de movimentos inusitados, imagens distorcidas, montagem expressiva que questiona o próprio ato de narrar, uso de iluminação contrastante e cheia de efeitos ópticos, música sem efeitos melódicos convencionais, composta com técnicas do atonalismo e personagens estranhos e sem os quais nos identifiquemos com eles.
Todas essas constantes estilísticas da obra de Ruy Guerra levam-nos a afirmar que Estorvo não foi um filme produzido apenas para representar visualmente e sonoramente o livro de Chico Buarque, mas sim um filme que buscou caminhos e soluções estéticas pouco frequentadas pela cinematografia brasileira. Porém, não significa dizer que o cineasta quis tão somente realizar uma série de experimentações estéticas vazias e sem valor para compreendermos o mundo contemporâneo. Estorvo é uma contundente leitura do homem urbano da contemporaneidade, que não encontra algo em que possa “sustentar-se” para dar sentido a sua vida – uma narrativa insignificante e sem nexo. Trata-se de um filme que, realmente, fica guardado em nossa memória como uma forte alegoria da degradação das relações familiares e da solidão do homem no mundo contemporâneo.
*Alfredo Werney é professor de Educação Musical do Instituto Federal do Piauí (IFPI). Mestrando em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
REFERÊNCIAS
AGEL, Henri. O cinema. Porto, Portugal: Civilização, 1972.
BARROS, Leila Cristina. Urdidura fílmica na trama literária: os romances de Chico Buarque e as adaptações cinematográficas de Estorvo e Benjamim. Tese de doutorado (UFMG). Belo Horizonte, 2008.
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Belo-Horizonte: Editora Itatiaia, 1963.
PEREIRA, Gil Carlos. Estorvo: uma alegoria sobre o homem moderno. Revista Vértices, ano 4, n 1, jan 2002.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
SCHWARZ, Roberto. Em Estorvo, Chico Buarque inventa uma forte metáfora para o Brasil contemporâneo. Revista Veja 07/ 08/ 1991.
VALENTE, Eduardo. Estorvo, de Ruy Guerra. Revista Contracampo, s/n. (Disponível em www.contracampo.com.br).