O ator inadequado: a crise da performance masculina em Crime Delicado, de Beto Brant

Paulo Roberto Ferreira de Camargo*

Resumo

O objetivo deste artigo é debater a crise de masculinidade vivenciada pelo protagonista do longa-metragem Crime Delicado, de Beto Brant, um crítico de teatro solitário que enfrenta sérias dificuldades de relacionamento com as mulheres. A partir da Teoria Queer, é discutido um aspecto essencial no filme de Brant: sua performance de gênero matizada, senão feminizada.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar e problematizar um aspecto que me parece fundamental na produção cinematográfica do cineasta paulista Beto Brant, construída em parceria com o roteirista Marçal Aquino: a complexa representação de tipos de masculinidade personificada pelos protagonistas de seus longas-metragens. Utilizarei como objeto de discussão o longa-metragem Crime Delicado (2005), adaptação do romance homônimo de Sérgio Sant’Anna. A discussão das manifestações de masculinidade e de performance de gênero do longa-metragem de Brant será feita a partir da Teoria Queer, segundo a qual, assinala Stam, a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero são resultantes de uma construção social, portanto não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana. Antes, há formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais.

Creio que Antônio, protagonista de Crime Delicado, inicia um segundo ciclo de filmes de Brant roteirizados por Aquino, também integrado por Cão sem Dono (2007) e O Amor Segundo B. Schianberg (2009), nos quais os personagens centrais se encontram em crise de caráter afetivo-emocional e servem como exemplo de heterossexualidade matizada, ou “feminizada”, como sugere Modleski (1984, 24), dentro da qual as suas identidades masculinas são problematizadas e, sobretudo, desestabilizadas. 

Antônio (Marco Ricca), o protagonista do filme Crime Delicado, de Beto Brant, é um homem que vive de sua opinião. É um respeitado e aparentemente temido, crítico teatral de um grande jornal de São Paulo. Seu ofício lhe confere poder, autoridade. E ele parece ter plena consciência disso. No entanto, a produção, baseada no romance homônimo de Sérgio Sant’Anna, cuja primeira edição é de 1997, não defende a ideia de que a posição que ele ocupa na “cadeia alimentar” da indústria cultural faz do personagem um indivíduo realizado. Pelo contrário.

Já na sequência inicial do longa-metragem, que apresenta o personagem na plateia de um espetáculo teatral que trata das relações de poder e submissão em um contexto alegórico de erotismo e de gosto duvidoso, Antônio é visto sozinho. Close-ups do personagem parecem buscar identificar, em suas expressões faciais, reações ao espetáculo, reforçando o interesse de Brant em abordar o caráter performático de Antônio – que, nesta sequência em particular, veste o papel de crítico teatral. Encerrada a peça, Antônio aparece em casa, na penumbra, escrevendo à mão sobre a montagem à qual acabara de assistir. Ele detesta o que acabara de assistir. A sensação de anacronismo, não por conta de seu julgamento, é inevitável. Em pleno século 21, causa estranhamento a imagem de um crítico que recorre à caneta e não ao computador para elaborar seu texto. Esse detalhe, no entanto, torna-se essencial para entendermos que, para o personagem, o trabalho, o papel de crítico, é uma profissão de fé, levada a cabo de forma quase sacerdotal, confundindo-se com o que ele é, borrando o limite que separa o ser do fazer.

Essa imagem, à qual poderia ser atribuída certa aura de romantismo, como se o personagem pertencesse a outra época, pré-digital, também revela o descompasso de Antônio com seu tempo. É a primeira pista sobre um personagem que, ao longo de toda a narrativa, se mostra fora do lugar, em desalinho e, sobretudo, em estado constante de desconforto.

Teoria de gênero

Em certa medida, a filmografia de Beto Brant, mais especificamente Crime Delicado, seria lócus privilegiado para observar como o chamado sujeito pós-moderno tem sido representado midiaticamente. Antônio se encaixa no que teóricos, como Frederic Jameson, descrevem como um sujeito fragmentado, desconexo e descentrado, constituído num cenário e numa cultura pós-moderna. O surgimento desse sujeito seria, alega Salvo (SALVO, Fernanda, 2009), decorrente da “investida do capitalismo em setores antes isentos como a cultura, bem como da rapidez dos processos de globalização e do fluxo sem precedentes de imagens e informações que passou a fazer parte do cotidiano das pessoas”. Antônio se encaixa, em princípio, na descrição desse sujeito à deriva, “fragmentado, desconexo e descentrado” ao qual Salvo se refere.

Pretendo com este artigo, entretanto, analisar Crime Delicado, sobretudo o protagonista Antônio, sob outra luz. Enquanto o já citado sujeito pós-moderno pode ser, tanto como homem quanto mulher, sem que seja dada especial atenção a sua orientação e identidade sexuais, quero discutir o personagem, dentro da perspectiva das questões de gênero, como um indivíduo do sexo masculino em profunda crise.

Stam afirma que “o conceito de gênero promoveu a substituição da ideia da diferença anatômica binária [homem e mulher] por um conceito mais plural de ‘identidade’ cultural e socialmente construída”. Os teóricos dos estudos queer geralmente destacaram que a sexualidade e o gênero “eram construtos sociais moldados pela história e articulados juntamente com um complexo conjunto de relações sociais, institucionais e discursivas”.

Partindo do conceito de gênero cunhado por Butler em Gender Trouble, a forma como o sujeito – seja ele homem ou mulher – se apresenta ao mundo é de ordem performática. Resulta de um processo de acúmulo e somatória de influências socioculturais, em um encadeamento do que ela chama de “imitações”, dentro do qual não há um original. Para muitos teóricos queer, o gênero, muito mais do que uma essência, é uma performance, uma espécie de imitação moldada por forças sociais. Em meu entender, Antônio, um homem heterossexual, em seus 40 anos, se digladia ao longo de toda a narrativa de Crime Delicado com questões relativas à sua masculinidade. Na discussão do filme de Brant, é particularmente útil recorrer à ideia de um homem cuja heterossexualidade é nuançada, ou “feminizada”. Segundo Kaplan, enquanto as primeiras estudiosas e teóricas feministas, que pesquisaram as diversas imagens de gênero no cinema, viram homens e mulheres desempenhando papéis opostos, pesquisadores mais modernos começaram a encontrar nuances nessas polaridades aparentemente tão rígidas. Autores como a norte-americana Tania Modleski passaram a utilizar o termo “homem feminizado” para se referirem a protagonistas, heróis cuja identidade masculina é evidentemente instável, complicada.

Ao discutir o melodrama Carta de uma Desconhecida (Max Ophuls, 1948), Modleski diz: “Pode ser que um dos apelos (do melodrama) para as mulheres seja precisamente feminizar o homem, para complicar e desestabilizar sua identidade” (MODLESKI, Tânia, 1984. 19-30).

Homem solitário

Antônio é um homem solitário, notívago, parece carregar a condição de crítico de arte como um fardo gerador de angústia. O que ele faz determina o homem que ele é, e não o contrário. Em sua percepção, as pessoas tendem a simplificá-lo a partir de seu ofício que, como já foi dito, lhe confere autoridade em uma determinada esfera, povoada por jornalistas e autores, diretores, atores e profissionais ligados à área de teatro e das artes. Em uma das sequências mais emblemáticas do filme de Beto Brant, Antônio sai com a atriz principal de um espetáculo ao qual acaba de assistir. Há indícios no comportamento da personagem de que ela pretende seduzi-lo em troca de uma resenha favorável.

À mesa de um restaurante, o crítico e a atriz conversam em um clima que sugere sedução. Percebe-se, contudo, que, enquanto ela flerta abertamente com Antônio, o crítico, ao invés de se render ao assédio ou de também assumir o papel de “macho interessado” nesse ritual de acasalamento, ele se arma, na defensiva. Quando ouve dela um comentário a respeito de quão solitário parece ser (e de fato é), Antônio a ataca:

Você deve estar querendo armar uma certa intimidade para poder perguntar o que achei da sua peça e com isso comprometer um pouco minha opinião, senão sobre o espetáculo, pelo menos sobre seu trabalho. Eu sei que isso deve ser um pouco difícil pra você, porque você vem batalhando a um puta tempo nessa carreira e vê em mim a possibilidade de alavancá-la, me trazendo aqui, me expondo aos seus como um troféu. Talvez você quisesse isso e talvez eu também quisesse um monte de coisas e quem sabe a gente pudesse fazer uma troca. Talvez você pudesse chupar lentamente meu pau enquanto eu escrevesse um artigo sobre a grande revelação dos palcos nesse momento e talvez você pudesse ser até um pouco mais generosa, me encontrar vez ou outra e tirar essa aparência de solitário que você diz que eu tenho. E talvez eu até pudesse me apaixonar por você, o que não seria difícil, e em pouco tempo eu perceberia que a paixão é realmente uma invenção da literatura burguesa. E aí eu acho que você se arrependeria de ter me procurado e perceberia que uma bosta de um elogio num jornal diário não significa mais do que uma trepada numa noite fria que no dia seguinte não passa de uma lembrança, sem desdobramento. Talvez eu pudesse olhar nos seus olhos como eu tô fazendo agora e dizer que o mundo é tão óbvio que se a morte me tocasse nesse momento seria ainda assim previsível.

Essa fala revela algo que, até esse momento, o filme parecia sugerir: Antônio, um homem culto, conectado ao mundo das artes e supostamente sensível a assuntos relacionados ao campo da subjetividade e dos sentimentos, é um cínico. Deve ter vivido a mesma situação tantas vezes ao longo de sua carreira ao ponto de duvidar de sua capacidade de seduzir, encantar alguém. Presume que as mulheres não conseguem enxergá-lo como homem, mas como o detentor de um poder, algo frequentemente associado à figura masculina dentro da ordem patriarcal. Essa mesma autoridade, que lhe faculta interferir na ordem social em que atua, é um traço da identidade masculina, potencializando sua capacidade de seduzir, tornando-o, ao menos no imaginário ditado pelo senso comum, mais sexualmente potente, sedutor. Ironicamente não é o que ocorre com Antônio.

A fala contundente do personagem revela o temor de um homem inseguro diante da possibilidade de não estar à altura da identidade que lhe atribuem. Na cena seguinte, estamos no apartamento de Antônio, onde ele, em claro sinal de tensão pré-coito, bebe uísque nervosamente. A disponibilidade sexual da atriz o deixa tenso. Ele entra em pânico quando ela, completamente nua sobre a cama, o desafia a deitar-se com ela, disparando: “Agora você vai ver quem só funciona da cabeça para cima”.

Nesse instante, à porta do quarto, Antônio ouve gargalhadas vindas de uma plateia que ri da súbita troca de papéis. A imagem, materialização para nós, os espectadores, do inconsciente do personagem, revela com toques intertextuais evidentes (o inconsciente do personagem toma forma de espetáculo teatral) das inseguranças do crítico. Sua identidade de homem potente e poderoso, compatível com o papel social por ele desempenhado, é posta à prova. O público que ri parece saber de sua “impotência”.

Performance

Para Butler, o caráter performático de gênero de um indivíduo não é consequência de quem ele é.

Neste sentido, gênero não é um substantivo, mas tampouco é un conjunto de atributos que flutuam livremente, uma vez que já vimos que o efeito concreto do gênero tem caráter performático e compelido pelas normas reguladoras que tenham coerência com esse gênero. (…) o gênero prova ser da ordem da performance – quer dizer, ao constituir a identidade que pretende assumir, gênero, nesse sentido, é sempre um fazer, porém não um fazer referente a um sujeito que exista antes da ação, do ato em si. (…) Não há identidade de gênero por trás de expressões de gênero; a identidade é performaticamente constituída justamente pelas “expressões” que supostamente seriam seus resultados. (Judith P. Butler, 1990, P. 34)

Após outro corte, Antônio e a atriz estão no quarto, que agora é um cenário teatral, um palco. Na plateia, lotada, o público continua a rir em alto e bom som. O desfecho da cena, sobretudo pela expressão de horror do crítico, sugere que sua performance sexual foi um fracasso. O desempenho falho, insatisfatório, de Antônio diante do desafio de corresponder às expectativas nele depositadas em decorrência da posição que ocupa dentro de um determinado recorte social, no caso o mundo das artes e do jornalismo cultural, é revelador. O impacto brutal dessa sequência íntima, que se transforma num espetáculo teatral de frustração sexual encontra ressonância em um conjunto de cenas subsequentes, nas quais ele abandona, por alguns minutos, a posição de foco central da narrativa, para assumir a posição de observador passivo.

No balcão de um bar, em plena madrugada, o olhar, materializado pela câmera subjetiva, revela o conflito interno do observador que não consegue se realizar nos pequenos esquetes que ele observa. Esses espetáculos – que sugerem a semelhança entre a relação que Antônio estabelece com a vida real e aquela com as montagens teatrais às quais assiste em seu cotidiano profissional – são inseridos no corpo do filme sempre em cortes bruscos e aparentemente desconectados a narrativa. Apenas um contra-plano do personagem serve como elo que inscreve a sequência no fluxo narrativo. É relevante, aqui, ressaltar que essas cenas, os fragmentos de diálogos aos quais temos acesso por meio da perspectiva de Antônio, de alguma forma revolvem em torno de questões relativas à masculinidade. Primeiro, vê-se uma conversa entre dois travestis, que trabalham nas ruas como prostitutas e falam, diante de um homem, que se mantém em silêncio, sobre sua rotina de programas, sobre como um deles ganhou muito dinheiro “para comer um bofe”. Afirmação à qual o outro travesti, visivelmente mais romântico e descontente com a vida de prostituição, responde: “Não sei como um homem pode pagar para você comer ele”. À companheira de batalha, o travesti, confessa a esperança de encontrar “o homem de seus sonhos”, que a “tire dessa vida”.

Essa cena dos travestis corrobora a ideia de Butler de que, como já foi dito acima, ao constituir a identidade que pretende assumir, “gênero é sempre um fazer, porém não um fazer referente a um sujeito que exista antes da ação, do ato em si”. As identidades femininas dessas personagens, cujos nomes e destinos nunca são revelados e existem, para o espectador, apenas dentro do olhar observador de Antônio, são performaticamente constituídas pelas “expressões” que supostamente seriam seus resultados, aproximando-as da encenação teatral, a qual Antônio está tão ligado. Embora saibamos que, biologicamente, as personagens sejam – ou tenham nascido – homens, elas se apresentam ao mundo, performaticamente, como mulheres. Daí a afirmação, algo indignada, feita por uma delas: “Não sei como um homem pode pagar para comer você comer ele”. Na cabeça da personagem, elas “são mulheres”, apesar de terem órgãos genitais masculinos, enquanto a outra faz uso de pênis como “instrumento de trabalho”. Embora tenha admitido que sentira prazer, parece mais satisfeita com o dinheiro e sonha “com peles, roupas, sapatos”, numa performance, aí, evidentemente feminina.

Nessa mesma sequência, vemos dois homens idosos, entre 60 e 70 anos, que conversam sobre a dificuldade que um deles possui em falar sobre seus sentimentos. Culturalmente, homens não estão condicionados a falar em público sobre sentimentos e o diálogo parece se dar em círculos, sem jamais se realizar. E, em seguida, vê-se um casal, visivelmente embriagado, que briga por ciúmes. O homem, vivido pelo cineasta pernambucano Claudio Assis, está exaltado, se expressa de forma desconexa, mas em tom autoritário.

O olhar de Antônio, ao destinar sua atenção às cenas fragmentadas descritas acima, parece buscar, numa ânsia de identificação, ou mesmo de revelar o que se passa em sua instância mais íntima, situações nas quais a identidade masculina me parece ter papéis fundamentais, seja em sua reafirmação, questionamento ou negação. A narrativa de Crime Delicado, como a sequência discutida acima, é permeada por situações que evidenciam o desconforto do protagonista com relação a sua identidade masculina. No centro da trama, está seu envolvimento com Inês (Lilian Taublib), uma mulher a quem falta uma perna e que trabalha como modelo para um pintor.

Nas telas de José Torres Campana (vivido pelo artista plástico mexicano Felipe Ehrenberg), com quem ela aparenta manter um vínculo que ultrapassa o meramente profissional, seu corpo incompleto é erotizado, muitas vezes acompanhado pela representação do próprio autor das telas, um homem bem mais velho do que ela e Antônio, não raro em contexto sexual, ostentando ereções. Como no primeiro encontro entre Inês e Antônio, o papel de crítico teatral do protagonista, ao contrário do que acontece com a atriz, não entra na equação de sedução e desejo que se desenha entre os personagens, o desejo nele parece brotar com maior intensidade. Mas o ato sexual não é consumado: ela desmaia depois que ele a masturba, de pé contra uma parede do apartamento da modelo, que depois descobrimos ser o atelier onde posa para o pintor. Inês havia ingerido, com álcool, comprimidos para dormir, o que pode ou não ter provocado seu desmaio.

O que se segue, até o desfecho de Crime Delicado, é o processo de esfacelamento emocional de Antônio, corroído pelo ciúme ao perceber que Inês jamais se entregará a ele com o mesmo abandono com que se relaciona com o pintor, um homem idoso e, teoricamente, menos viril do que Antônio. Ao acompanhar a modelo a uma exposição de Campana e vislumbrar nos quadros a intensidade do vínculo que a une ao artista, o crítico é tomado aos poucos por uma paixão de contornos obsessivos. Para Antônio, Inês é usada, escravizada pelo pintor, cuja masculinidade exuberante o desafia.

Ela não admite que o crítico, do alto de sua pretensão intelectual, tente questionar e desconstruir uma relação tão cara e especial a ela. Aqui, vemos mais um indício da crise vivenciada pelo protagonista de Crime Delicado com sua identidade masculina: Como ela pode optar por permanecer ao lado de um “homem velho”, flácido, mais frágil e, teoricamente, menos viril do que ele – imagem contrariada pelos quadros?

A obsessão de Antônio por Inês, movida tanto pela forma como ela agora o rejeita quanto pelo fantasma de sua impotência simbólica, culmina com um estupro. Como um macho desafiado, ferido em seu orgulho e autoestima, ele a possui à força no território do rival, no atelier onde a modelo se entrega consensualmente a Campana. A violência e a barbárie do ato, o tal “crime delicado” que dá título ao filme de Brant, é, ironicamente, um passo fatal, autodestrutivo.

Considerações finais

Em toda a sua complexidade, Antônio me parece exemplar na discussão de homens cuja heterossexualidade (enquanto identidade social) costuma estar associada ao poder, à autoridade e à virilidade sexual. Essa heterossexualidade, no entanto, me parece matizada, na medida em que o personagem, um indivíduo culto, de sensibilidade aguçada – traço, em tese, sugerido pelo exercício de uma atividade profissional como a de crítico teatral  – se mostra capaz de um ato de violência extrema. O estupro, que, na sua cegueira, ele insiste em não enxergar como crime, é praticado em nome de sua masculinidade ultrajada, tanto pela rejeição de Inês quanto pela imensa dificuldade que ele enfrenta quando busca consumar o ato sexual. O sexo sempre parece ser, na subjetividade de Antônio, um ato performático que deveria reafirmar a sua identidade de homem, mas não é isso que ocorre. O personagem é perseguido pelo fantasma de uma má performance, ou seja, de uma masculinidade fragilizada, adoentada, evidenciada no palco da vida, numa analogia evidente com o espaço de representação teatral – uma vez que o personagem não consegue separar o que faz do que é. Retomando Butler, o caráter performático de gênero ganha um viés ainda mais metalinguístico em Crime Delicado, na medida em que o teatro que serve de objeto de estudo e reflexão a Antônio, acaba por invadir, com suas noções de representação, performance e desempenho, a vida pessoal do personagem, colocando-o na posição de um ator inadequado, miscast.

*Paulo Roberto Ferreira de Camargo é jornalista, formado pela Universidade Federal do Paraná em 1990, Mestre em Estudos sobre Cinema pela Universidade de Miami (EUA), onde foi bolsista da Fundação Fulbright (2000-2002), e Doutorando em Comunicação e Linguagens-UTP. Entre 2002-11, editor de Cultura do jornal Gazeta do Povo, onde hoje atua como repórter especial; e professor de Jornalismo da Unibrasil e professor de cursos de pós-graduação nas áreas de Comunicação, Cinema e História na PUCPR e Universidade Tuiuti do Paraná.

Bibliografia

BUTLER, Judith P..Gender Trouble.Feminism and Subversion of Identity.P. 34.Nova York .Routledge, 1990.

NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada. Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90 (2002),.P. 122. São Paulo, 2002

SALVO, Fernanda. A questão do sujeito contemporâneo no filme Crime Delicado, de Beto Brant. Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos, 2009.

STAM, Robert.Introdução ao Cinema. São Paulo. Papirus Editora, 2000.

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