Vidas Secas e a estética da escassez

Adriano Lobão de Aragão*

Nelson Pereira dos Santos lê Graciliano Ramos

“Essa atração entre literatura e cinema é muito antiga. Eduardo Escorel publicou um livro sobre Mário de Andrade e o cinema. O escritor era apaixonado por cinema, escrevia textos e era muito caçoado pelos colegas por ver filmes brasileiros. Ele tentou fazer um livro-filme e escreveu muito sobre as características especiais da narrativa cinematográfica.”
Nelson Pereira dos Santos
(em entrevista concedida em 2007)

“O ponto de vista da câmera não é aquele abstrato do onisciente romancista que escreve na terceira pessoa, mas nem por isso é aquele da câmera subjetiva, estúpida e burra, mas sim um modo de ver, livre de qualquer contingência e que, no entanto, guarda as servidões e a qualidade concreta do olhar, sua continuidade no tempo, seu ponto de fuga único no espaço: o olho de Deus no sentido próprio, se Deus soubesse se satisfazer com um olho só.”
André Bazin
(Cahiers du cinéma, n.8, abril 1952, p.26 apud XAVIER, 2005)

1 Graciliano Ramos e a literatura

Escrito entre 1937 e 1938, o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, narra a desventura de uma família de retirantes do sertão brasileiro, brutalizada por uma condição de vida subumana. Revisor cuidadoso, meticuloso com todos os detalhes que pudessem interferir até mesmo no processo editorial, Graciliano examinava até mesmo o material recém-impresso ainda na própria gráfica. E nada de seu labor criterioso era direcionado para a incorporação de adornos, embelezamentos, mas para manter em seu texto a objetividade essencial que lhe é inerente.
Nascido em 27 de outubro de 1892, no município alagoano de Quebrangulo, Graciliano Ramos de Oliveira começou a escrever seu primeiro romance, Caetés, em 1925, concluindo-o três anos depois, mesmo ano em que o paraibano José Américo de Almeida publicaria A bagaceira, que inaugura o Romance Regionalista de 30, vertente da 2ª Geração do Modernismo Brasileiro, na qual a obra de Graciliano Ramos é inserida. Em janeiro de 1932, na sacristia da Igreja Matriz de Palmeira dos Índios, escreve os primeiros capítulos de S. Bernardo, romance que iria concluir no mesmo ano. Somente no ano seguinte, Graciliano teria seu primeiro romance publicado, Caetés, pela Editora Schmidt, no Rio de Janeiro. S. Bernardo, pela Editora Ariel, também do Rio, viria a público em 1934. Entretanto, seu êxito inicial seria marcado pela prisão de Graciliano Ramos, no dia 03 de março de 1936, em Maceió, sendo então levado ao Rio de Janeiro. Apesar de não existir uma acusação formal, o romancista só seria libertado em janeiro de 1937. Angústia, seu terceiro romance, é publicado pela editora de José Olympio durante o período do cárcere. Em 1938, o quarto romance, Vidas secas, assinala um dos momentos mais significativos do Romance Regionalista de 30. Graciliano prosseguiria sua carreira com êxito ao longo das duas décadas seguintes, até falecer em 1953, vítima de câncer no pulmão.
Durante o processo editorial do livro, Graciliano mostrou-se inteiramente cuidadoso com sua criação, frequentando a gráfica responsável pela elaboração do livro diversas vezes e examinando meticulosamente o material quando este entrava no prelo, para ter a certeza de que a revisão não interferiria em seu texto. Em depoimento registrado numa entrevista concedida em 1948, fartamente reproduzido em reedições de suas obras, notadamente S. Bernardo e Vidas secas, afirmava o autor que:

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (RAMOS, 2011)

Coube a Nelson Pereira dos Santos o desafio de levar Vidas secas às telas. No cinema, seguir os preceitos de Graciliano é ainda mais comprometedor, talvez impossível, se levarmos às últimas consequências as óbvias divergências entre a linguagem literária e a cinematográfica. Para além da questão da linguagem em si, a produção de um filme é uma criação artística absolutamente coletiva, por mais que a mão de um diretor tente conter os diversos ímpetos pessoais que se reúnem em torno de tal realização. A ideia de autoria no cinema é um tema polêmico e por diversas vezes discutido sem que se possa destacar um consenso. Entretanto, acreditamos ser lícito atribuir ao diretor a responsabilidade autoral de uma película, e sob esse princípio é que tratamos Nelson Pereira dos Santos como autor do filme Vidas secas. Com certeza, o diretor teve diante de si um gigantesco desafio, sobretudo por conta da liberdade que tradicionalmente concede a seus atores, conforme atesta o próprio Nelson:

Meu desafio como diretor é escolher o ator certo. Depois de escolhido, o negócio é com ele. Saímos juntos, vamos a um botequim e conversamos sobre o filme. O ofício do ator é sagrado e interfiro o mínimo possível. É meu jeito de trabalhar. Admiro a coragem dos atores. (SANTOS, 2009. p1)

Nelson tinha como desafio fundamental aproximar as duas linguagens, a literária e a cinematográfica, pelo viés da carestia, do enxugamento, elementos típicos da obra de Graciliano Ramos. Curiosamente, bem antes de realizar as filmagens de Vidas secas, em seu primeiro trabalho no cinema profissional, como assistente de direção de Rodolfo Nanni no filme O saci, Nelson recebeu o convite de Rui Santos, diretor de fotografia e amigo de Graciliano Ramos, para fazer a adaptação cinematográfica de S. Bernardo. O trabalho com o roteiro, segundo depoimento de Nelson (2007), tornou-se um dilema ao chegar ao capítulo do suicídio da personagem Madalena: “Não queria que ela morresse. Propus, no lugar do suicídio, a fuga da fazenda.” Temerosos da reação de Graciliano, Rui e Nelson resolveram consultar o escritor que, em carta, respondeu que permitia a alteração, desde que retirasse o seu nome da história, pois se tratava de uma invenção alheia à sua obra. Em seguida, o autor alagoano comentou a situação de opressão da mulher nos anos 30 e:

Se ela não tivesse escolhido a morte, Paulo Honório não entraria na crise que o levou à decadência. Ele não procuraria entender por que ela se matou e não se dedicaria em escrever a história. E, “se ele não escrevesse o livro, eu não escreveria o meu, e você não pensaria em fazer um filme” – foi mais ou menos assim que Graciliano concluiu o seu pito ao jovem roteirista. (SANTOS, 2007. p331)

2 Nelson Pereira dos Santos e o cinema

Nelson Pereira dos Santos, nascido em 22 de outubro de 1928, no bairro do Brás, criado no Bixiga, em São Paulo, filho de um alfaiate e de uma dona-de-casa de origem italiana, formou-se em Direito, mas dedicou-se integralmente ao cinema.

Eu tinha 20 anos e fui a Paris de navio com uma bolsa do governo francês para estudar cinema. O cargueiro italiano demorou tanto para chegar que acabei perdendo o prazo da matrícula. Fiquei por lá quatro meses e ia toda tarde à Cinemateca assistir filmes. Foi minha melhor escola de cinema, um curso completo de realismo francês dos anos 30. (SANTOS, 2009, p. 1)

Sua obra constitui-se de diversos filmes antológicos para a cinematografia brasileira, como Rio 40 graus (1955), Rio Zona Norte (1957), Vidas secas (1963), Fome de amor ou Você nunca tomou banho de sol inteiramente nua (1967), Como era gostoso o meu francês (1970) e Brasília 18% (2006). Além de Vidas secas (1963), Nelson Pereira dos Santos realizou diversas outras adaptações de obras literárias: Azyllo muito louco (1969), a partir de O alienista, de Machado de Assis; Tenda dos milagres (1975), da obra homônima de Jorge Amado; Memórias do cárcere (1983), onde retoma Graciliano Ramos; e A terceira margem do rio (1993), baseado nos contos A terceira margem do rio, A menina de lá, Os irmãos Dagobé, Fatalidade e Sequência, constantes no livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.
Nelson foi professor fundador do curso de cinema da Universidade de Brasília (o primeiro do Brasil). Lecionou ainda na Ucla (Universidade da Califórnia, em Los Angeles) e na Universidade de Columbia, em Nova York. Aos 77 anos, tornou-se o primeiro cineasta a tomar posse na Academia Brasileira de Letras, no dia 17 de julho de 2006, ocupando a cadeira de número 7, cujo patrono é Castro Alves.
Anos após o malfadado projeto de filmar S. Bernardo, Nelson viu-se novamente envolvido com uma obra de Graciliano Ramos. Trabalhando para Isaac Rozemberg, produtor de documentários institucionais, estava em Juazeiro, na Bahia, em 1958, registrando o socorro aos flagelados da seca que, naquele ano, ficou conhecida como a “seca do Juscelino”.

Ao presenciar a chegada daquela gente esquálida, principalmente as crianças, senti-me na obrigação de fazer um filme. Escrevei o primeiro roteiro, o segundo, tentei mais uma vez, mas só conseguia produzir matérias de foca, reportagens vazias de essência humana.

Em todas as tentativas, consultava, entre outros, o Vidas secas. Não demorou muito para que me desse conta de que estava pronta a escritura do filme, já tinha sido criada por Graciliano Ramos. (SANTOS, 2007. p.330)

No ano seguinte, com toda a produção e equipe montada em Juazeiro, as chuvas que sucederam a seca tornou a caatinga inteiramente verde, inviabilizando as locações e, consequentemente, a própria produção do filme. Tais circunstâncias levaram Nelson a improvisar a realização de outro filme, Mandacaru vermelho, para que a empreitada não fosse inteiramente perdida. Somente em 1962, quando foi à Palmeira dos Índios, em Alagoas, conseguiu finalmente iniciar as filmagens de Vidas secas.
No momento em que Nelson Pereira dos Santos realizou as filmagens de Vidas secas, havia uma afinidade, um interesse muito grande dos cineastas de então, e dos que se seguiriam vinculados ao Cinema Novo, de deixarem-se seduzir pela literatura brasileira, sobretudo a produzida pelos modernistas e escritores regionalistas. A atividade cinematográfica costuma revelar-se como uma atividade essencialmente modernizante. Entretanto, se pensarmos no exemplo da Vera Cruz, seus equipamentos bastante avançados para o Brasil da época, desenvolvia filmes tecnicamente voltados para o convencionalismo e a mera tentativa de reprodução da decupagem clássica hollywoodiana. Para Nelson,

Até mesmo O cangaceiro, que fez muito sucesso, é um western americano filmado com roupa de cangaceiro – e rodado em São Paulo! Lembro-me que em 1952, quando cheguei ao Rio de Janeiro, havia muitos projetos de filmar Jorge Amado. Lembro-me do Moacyr Fenelon (…) que dizia querer fazer um cinema de pés no chão, ou seja, segundo o romance O quinze, de Raquel de Queiroz. (SANTOS, 2007. p.332)

Ismail Xavier (2005), sobre o sistema cinematográfico consolidado depois de 1914, principalmente nos Estados Unidos, que consiste no desenvolvimento da decupagem clássica hollywoodiana, afirma que:

Tudo neste sistema caminha em direção ao controle total da realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos meios de produção desta realidade. Em todos os níveis, a palavra de ordem é “parecer verdadeiro”; montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação. (XAVIER, 2005, p. 41)

Nelson não concordava com essa representação hollywoodiana. Conforme depoimento do diretor (2009), todos os recursos importados pela Vera Cruz, e largamente entendidos como marcas essenciais de um cinema mercadologicamente constituído, não se configuram como elemento determinante da realização cinematográfica:

Há muita mitologia com a parafernália do cinema. Para mim, cinema é quadro: em cima, embaixo, esquerda e direita. Você tem que combinar tudo dentro desse espaço. Se o cinema evoluiu, não foi pela tecnologia, mas pela linguagem inovadora. O filme era mudo e sem cor, depois ficou sonoro e colorido. Isso não torna um filme mais interessante em sua essência. Mas quando os italianos vieram com o neorrealismo, ou quando os franceses criaram a Nouvelle Vague, aí, sim, foi um marco. A evolução se deu no nível das ideias, da concepção do filme, e não dos equipamentos. A literatura não melhorou por causa do computador. (SANTOS, 2009, p. 3)

Talvez o desprovimento dessa “parafernália mitológica” tenha sido um elemento vital para que Nelson conseguisse transpor, de maneira tão exata, a ambientação literária empreendida pelo autor e, ainda assim, desenvolver uma criação vigorosa artística que não deve ao modelo inspirador sua relevância. Em outras palavras, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, tornou-se relevante para o cinema assim como Vidas secas, de Graciliano Ramos, fez-se relevante para a literatura, cada qual por suas características intrínsecas, calcadas na linguagem utilizada para a representação da precariedade da condição humana, que não é uma vivência exclusivamente nordestina e sertaneja.

3 As Vidas secas

Pode-se dizer que Vidas secas constitui um marco cinematográfico na representação do homem brasileiro e sua sobrevivência tênue, naquilo que Jean-Claude Bernardet (2007, p. 174) chamou de “verdadeiro tratado sobre a situação social e moral do homem no Brasil” e, sobretudo, “uma dolorosa meditação sobre as possibilidades de vir a ser homem no Brasil”. Na obra original, é antológico o monólogo íntimo de Fabiano acerca de sua própria condição, no limiar entre ser homem e ser bicho, ou, na incerteza de saber-se homem, reconhecer-se bicho.

— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos, mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em tomo, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
— Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. (RAMOS, 2011. p.18-19)

Ora, sua visão de si, a descrição empreendida pelo narrador, que largamente utiliza-se do discurso indireto livre ao longo da narrativa, só confirma tal caracterização zoomorfizante:

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos — exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 2011. p.20)

Acreditamos que Nelson Pereira dos Santos realiza uma representação em que imagem e som se combinam, não apenas como mero mecanismo de testemunho, apresentação, denúncia, mas também como mecanismo de compreensão de uma realidade social, histórica. A busca de significação que responda artisticamente e semanticamente a este mundo representado em sua rude escassez, pautada na luz estourada e na mínima trilha sonora, composta basicamente de elementos diegéticos, nos quais se trabalha basicamente com os sons descritos no livro, vento na caatinga, chuva, animais e carro de boi. Em depoimento, Nelson (2007) afirmou perceber que o filme não apresentava música alguma, no sentido tradicional de trilha sonora musical, no momento em que efetuava a montagem de Vidas secas. Pensava-se em utilizar uma orquestra para executar a “música de fundo”, recurso negado pelo diretor, mais preocupado em “ouvir o som do sertão” e “desfazer a associação de baião com sertão, estabelecida pelos muitos filmes de cangaço realizados a partir de O cangaceiro.”

Por isso, hesitava em escolher a música para Vidas secas. Lembrei então daquela gravação do carro de boi e pedi ao técnico: “Põe no final do filme e no começo”. Foi resolvido o assunto, abri e fechei o filme com o som do carro de boi, uma grande combinação de ruídos musicais. (SANTOS, 2007. p.334)

Para Jean-Claude Bernardet (2007, p.82), Fabiano é chefe de uma família constituída como qualquer família burguesa normalmente organizada: um pai, uma mãe, duas crianças e seus animais, no caso, uma cachorra e um papagaio. O trabalho no campo, sustento da família, cabe ao pai, e à mãe, os afazeres domésticos e o cuidado com a prole. “A isso deve-se acrescentar que, embora possam ser nordestinos, os tipos dos atores não são especialmente característicos do Nordeste, sobretudo Fabiano (Átila Iório)”. A escolha do ator condiz com a descrição de Fabiano efetuada por Graciliano Ramos na obra homônima, que não se caracteriza fisicamente como um típico nordestino: “… tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos”. (RAMOS, 2011, p. 18) Trata-se, é claro, de um vaqueiro nordestino, mas trata-se também de um ser humano que poderia ser de qualquer outro lugar, desde que reduzido a condições de sobrevivência/existência subumanas. Para Bernardet (2007, p.82) “por sua organização, relações internas e divisão de trabalho, essa família pode ser tanto sertaneja como da classe média de qualquer centro urbano; pode até ser mais classe média que sertaneja.” Mas, para leitmotiv do filme, é a natureza, e não a ação dos personagens, que define o início e a conclusão da obra. Um intervalo entre duas secas que impelem Fabiano e sua família a migrar é o palco do perfil traçado por Graciliano e transposto por Santos. Exceto os momentos de abertura e fechamento da obra, o cerne da narrativa passa-se num período de relativa bonança. Ainda que enganado pelo patrão, humilhado e surrado pelo Soldado Amarelo, tenha tido que sacrificar a cachorra Baleia, sob suspeita de hidrofobia, e todas as demais agruras retratadas, a jornada de retirantes, propriamente dita, não foi mostrada a contento. Provavelmente, em plena seca, ao longo das estradas e veredas, vivenciem situação muito mais desumanas e angustiantes, incluindo a morte por fome, sede, insolação, esgotamento extremo etc. Porém, Vidas secas focaliza um período entre duas secas em que o pífio alento brevemente conquistado pela miserável família já seria suficiente para a construção da narrativa. Entretanto, nenhuma mínima conquista ultrapassa a mera necessidade imediata de sobrevivência, assim como não supera a lacuna comunicativa dos personagens, tão reduzidos a um estado de absoluta rusticidade.
Ismail Xavier, referindo-se à teoria de Pudovkin, afirma que a atividade cinematográfica “confunde-se com traduzir em imagens, dar expressão visual a uma representação da consciência que, atentamente, observa o mundo que a rodeia” (205, p. 53). Destaca o planejamento de articulação entre tema e tratamento como fundamental para a construção da película, seus detalhes, a concepção de cada cena e cada plano, tudo proveniente dessa “tradução de mundo”. A música mínima e diegética, a iluminação estourada, a montagem e os planos escolhidos retomam o universo dessa terra desolada, reduzida ao essencial, ou menos que isso. E tal construção em plena coadunação com a escrita empreendida por Graciliano.

O escritor expressa a sua visão de mundo selecionando e combinando palavras num certo estilo; o cineasta, realizando as mesmas operações com imagens. E o estilo deste define-se pela maneira como ele trabalha o material plástico do cinema, conferindo unidade aos planos separados e agindo de modo claro sobre a consciência do espectador: emocionalmente, pelo ritmo controlado das imagens e pela pulsação dos próprios episódios mostrados; ideologicamente, pela força conotativa de seus enquadramentos e pelo poder de inferência contido na sua montagem. (XAVIER, 2005, p. 54)

É claro que a organização geral de Vidas secas, como a de qualquer outro filme tradicionalmente narrativo , trabalha com a referência de tempo e espaço constituídos pela articulação entre imagem e som em um conjunto de procedimentos que, inevitavelmente, apontam para a manipulação das fontes de informação dedicadas ao expectador. “Todas estas são tarefas comuns ao escritor e ao cineasta.” (XAVIER, 2005, p. 32)

A mudança do ponto de vista dentro de uma mesma cena, importante ruptura frente ao espaço teatral, pode ser aproximada a procedimentos freqüentemente usados pelo escritor ao compor literariamente uma cena qualquer. (…) Em ambos afirma-se a presença da seleção do narrador, que estabelece suas escolhas de acordo com determinados critérios. O fato de um ser realizado através da mobilização de material lingüístico e de outro ser concretizado em um tipo específico de imagem introduz todas as diferenças que separam a literatura do cinema. (XAVIER, 2005, pp. 32-33)

O modelo imediato empregado por Nelson Pereira dos Santos remonta ao neorrealismo italiano, conforme depreende-se de diversos depoimentos ao cineasta, como o transcrito a seguir:

O cinema neo-realista já tinha aportado ao Brasil, já o conhecia desde 1945, quando chegaram os primeiros filmes italianos em São Paulo. Foi aquela revolução no cinema. Havia um cinema diferente daquele cinema americano maniqueísta-protestante. Aí aparece um cinema italiano riquíssimo, mostrando a realidade e com personagens livres, acontecendo uma identificação imediata. Aquela realidade européia depois da guerra assemelhava-se muito com a do cotidiano brasileiro, mesmo sem exércitos invasores em nosso território. A situação social brasileira é muito parecida com o pós-guerra europeu: famílias destruídas, crianças sem lar, meninos de rua, bandidos, violência. Daí a influência do cinema italiano aqui e em outros países com situação parecida.

Mas, no meu entender, a maior lição do neo-realismo aos cineastas do Terceiro Mundo foi provar que o cinema pode existir com poucos recursos, esquecendo os estúdios, as grandes estrelas e a cenografia. A idéia é ir para a rua e filmar o próprio povo. (SANTOS, 2007, p. 327)

A obra escolhida por Nelson Pereira dos Santos pertence ao 2º momento do Modernismo Brasileiro, que, em sua vertente denominada Romance Regionalista de 30, mergulhou criticamente nos problemas sociais de nosso povo. Entretanto, é preciso lembrar que, conforme indica Escorel (2005), em seu estudo sobre Mário de Andrade e o cinema brasileiro,:

Quando o modernismo brasileiro “explodiu” em 1922, o cinema ainda era visto como uma “arte infante”. Setenta anos depois, e apenas trinta após o surgimento do cinema novo, o cinema brasileiro praticamente deixava de existir. Nesse breve intervalo, algo que era muito valorizado, inclusive no Brasil, como sendo a mais fiel expressão de uma época, perdeu a sintonia e desapareceu em nosso país. (ESCOREL, 2005, p. 110)

Então, não era de estranhar que a referência necessária ao empreendimento cinematográfico em questão proviesse da Itália de De Sicca, diretor de Ladrões de bicicleta (1948), pois o que teria no Brasil de mais próximo pertencia à própria cinematografia de Nelson, como Rio 40 Graus.
Vidas secas é, sobretudo, a afirmação da narrativa sóbria, valorizada pelo preto e branco e pela fotografia. Assim como a vida de Fabiano e sua família é circunscrita ao rigidamente essencial, a mínima “trilha sonora” parece executada pelos ruídos de uma carroça ou até mesmo um duplo monólogo simultâneo do vaqueiro e sua esposa, que jamais se realizaria em diálogo. Há também um violino desafinado e pouco mais que possa servir de trilha, sempre diegética, oriunda dos sons e ruídos provenientes da própria narrativa, conforme afirmado anteriormente.
Bernardet (2007) aponta o fato de que tanto o cinema, quanto o teatro social, só obtêm sucesso de público se ambientados no passado, representando problemas já resolvidos pela história de maneira que não possa “contagiar o presente”. Não é o caso, neste trabalho, discutir a validade e abrangência de tal afirmação, mas em seu estudo sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966, Bernardet complementa que:

Este passado não é qualquer um: são os primeiros anos do Estado Novo. Todos os filmes que se situam na época da morte de Lampião, como Deus e o Diabo, desenvolvem-se implicitamente por volta de 1938. Vidas secas situa-se especificamente nos anos de 1940-41, sem fazer referências explícitas ao governo ou a Getúlio Vargas, enquanto A primeira missa (Lima Barreto) alude a Vargas, Rebelião em Vila Rica (Renato e Geraldo Santos Pereira) ambienta-se no Estado Novo e Joaquim Pedro de Andrade focaliza insistentemente um retrato de Vargas na casa de Garrincha. (BERNARDET, 2007. p.104-105)

Tal questão foi assim abordada por Nelson Pereira dos Santos:

As datas. Explico: o livro é de 1938, e eu coloquei as datas da época da guerra: 1940, 1941, 1942. Escolhi os anos que lembram os momentos decisivos da Segunda Guerra Mundial, a invasão da França, o bombardeio de Pearl Harbor e a Batalha de Stalingrado a fim de realçar a singularidade da vida no sertão, longínquo espaço do mesmo planeta. (SANTOS, 2007. p.332)

Mas a observação de Bernardet não se atém a um mero aspecto de recorte temporal. Comparando a ambientação rural retratada pelo filme Vidas secas e o momento em que a obra foi realizada, “não há dúvida de que os Fabianos continuavam existindo, que os nordestinos continuavam emigrando” (2007, p.106), mas o crítico ressalta que tratava-se também, e principalmente, da época das Ligas Camponesas, da Sindicalização no campo e de eventos marcantes como a implementação do salário mínimo nas fazendas e as invasões de terra, um mundo que a realização de Vidas secas e outros, como Seara vermelha (1964, de Alberto D’Aversa) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, de Glauber Rocha) não alcançariam por óbvias razões de recorte temporal, mas o que Bernardet alude é a inexistência de demais obras que pudessem retratar essa nova situação pós-Vidas secas, a necessidade do passo adiante.

Filme sobre a sindicalização rural, houve pelo menos um: foi o documentário dirigido por Carlos Alberto de Sousa Barros e financiado em 1963 pelo governo federal: é o único que se conhece! Aliás, pode-se dizer que todas as forças populares ou burguesas que de um modo ou de outro estavam se movimentando, à procura de modificações da sociedade, não aparecem em filmes de ficção: além das lutas no campo, também foram eliminadas as lutas sindicais de operários ou portuários, de intelectuais e estudantes, bem como de setores mais avançados da Igreja, detendo-se sempre o cinema nos representantes de uma Igreja estratificada. Um cinema efetivamente popular não poderia ter deixado de lado tais assuntos; um cinema classe média podia. (BERNARDET, 2007, p. 106)

Entretanto, o cinema no Brasil, na maior parte de sua existência, consiste numa luta pela sobrevivência, em alguns momentos, como na era Collor, bem similar ao minguado universo de Fabiano, não podendo estabelecer-se acima das conveniências de momentos que possibilitassem, da maneira que fosse, sua realização. A observação, bastante lúcida, de Bernardet não recai necessariamente sobre Vidas secas, mas a todo um conjunto de obras, incluindo a referida obra de Nelson Pereira dos Santos, entretanto, aponta para um desafio fundamental da representação cinematográfica de um povo e sua própria contemporaneidade. Mas, após o colapso da Atlântida e da Vera Cruz, que não conseguiram instigar o nível de problematização da realidade brasileira que o cinema de Nelson Pereira, Glauber Rocha e outros cineastas da mesma geração conseguiram, foi por conta desse público e dessa produção “classe média” que se pôde observar alguma renovação que questionasse a representação cinematográfica que o Brasil fazia de si. Ainda que realizado em meio a limitações técnicas e orçamentárias, lapidado sem a possibilidade de uma assepsia hollywoodiana, o cinema de Nelson conseguiu desenvolver-se numa orquestração árida que valoriza cada segundo de som e silêncio, sobretudo silêncio, de um romance que valoriza mais as entrelinhas que a ação. Entretanto, não se pode afirmar que Nelson tenha pretendido fazer um romance visual, mas é notório que, a partir de 2006, passasse a ocupar a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. Um reconhecimento literário, é certo, mas Nelson já poderia ser considerado “imortal” desde 1963.

REFERÊNCIAS

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MORAES, Dênis de. O velho Graça. Uma biografia de Graciliano Ramos. 3. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1996.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 115.ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
ROSSI, Jaqueline & MENON, Maurício. A transposição da obra Vidas secas de Graciliano Ramos para o cinema. In.: Unicentro – Revista eletrônica Lato Sensu. Ed. 4, 2008. Disponível em web03.unicentro.br/especializacao/ Revista_Pos. Acesso em 04 de janeiro de 2012.
SANTOS, Nelson Pereira dos. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. 2006. Disponível em http://www.academia.org.br. Acesso em 03 de janeiro de 2012.
SANTOS, Nelson Pereira dos. O que aprendi. In Revista dEsEnrEdoS, número 2, Teresina, setembro de 2009. Disponível em www.desenredos.com.br. Acesso em 03 de janeiro de 2012.
SANTOS, Nelson Pereira dos. Nelson Pereira dos Santos: resistência e esperança de um cinema. Entrevista concedida a Paulo Roberto Ramos. Estudos Avançados 21 (59), 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v21n59/a25v2159.pdf. Acesso em 07 de janeiro de 2012.
ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água. São Paulo: CosacNaify, 2005.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

* Mestrando em Letras pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI, 2011. É coeditor do site www.desenredos.com.br. Contato: lobaoaragao@gmail.com

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