As fotografias de Jeff Wall: “o dia-a-dia é um efeito especial”

Fig. 1. Jeff Wall, A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), transparência em lightbox, 229 x 337 cm, 1993. Tate.

Imagens plausíveis e contemporâneas, mas que estabelecem uma tensão entre o que nos é conhecido, assim são as obras fotográficas de Jeff Wall. Instaura-se uma instabilidade através da qual vislumbramos a possibilidade de adentrar uma outra dimensão do real. Levando em conta que as fotografias de Wall são imagens ficcionais digitais, ou seja, recriações a partir de seu olhar sobre o mundo, apontarei algumas decisões do artista sobre a manutenção ou não dos elementos que nos soam cotidianos e sobre a inserção dos elementos de instabilidade.

A suspensão do tempo, aparentemente segundos após a chegada de uma súbita ventania, provoca uma oscilação nos parâmetros de reconhecimento em A Sudden Gust of Wind (After Hokusai) (1993) (Fig. 1). Pendendo ora para a tradição do “instante decisivo” de Cartier Bresson, ora para a grandiosidade e o cuidado de composição de Hollywood, acabamos por nos render à constatação mais intuitiva de que estamos diante de uma obra contemporânea com todo o fascínio que o inicial estranhamento tecnológico pode causar.

O fascínio pode ser ainda maior se a fruição ocorrer diante da materialidade e luminosidade da lightbox de grandes dimensões e não apenas de uma reprodução em livro. Desde The Destroyed Room (1978), o fotógrafo canadense Jeff Wall (1946 – ) tem trabalhado com o suporte da transparência de cibacromo como meio de evocar alguns aspectos caros à tradição da arte ocidental. Um deles é a permanência, a importância do envelhecimento da arte, e o outro, a unidade, a união orgânica inerente às pinturas dessa tradição.

Paradoxalmente, a unidade atingida por A Sudden Gust foi conquistada fazendo uso de mais de cem imagens reunidas digitalmente. Todos os elementos, desde o volume do ar à composição em três dimensões das folhas de papel, também foram manipulados em processo digital ao longo do trabalho de um ano inteiro (Fig. 2). De fato, a suspensão do tempo não teve origem no clique da câmera.

Fig. 2. Katsushika Hokusai, Ejiri in Suruga Province (a sudden gust of wind), gravura em cores, 1830 -1833. The Trustees of British Museum.
Fig. 2. Katsushika Hokusai, Ejiri in Suruga Province (a sudden gust of wind), gravura em cores, 1830 -1833. The Trustees of British Museum.

Laura Mulvey, em seu estudo de A Sudden Gust intitulado “From After to Before Photography” (2007), analisa a experiência do que chamou “a technological uncanny”, um senso de incerteza que se dá no confronto com um fenômeno que pode ser explicado pelo uso de uma nova e não-familiar tecnologia. É a desorientação causada por uma ilusão plausível, porém improvável:

Essa fusão entre estados incompatíveis do ser é substituída por outro tipo de tensão dramática nessas imagens em que alguma coisa abruptamente perturba a superfície do ordinário. Uma violência inapropriada tumultua a ordem da vida cotidiana. A relação entre movimento e paralisia torna a suceder: um súbito movimento produz uma paralisia pelo choque.2

A partir da liberdade digital, aqui a fotografia é trabalhada como uma pintura onde é possível criar a ilusão do instantâneo e a co-existência de elementos que dificilmente seria viável no mundo real. Nem por isso há um tributo à ordem do fantástico, ao contrário, mesmo escancarando sua artificialidade pela ausência total de índices de imperfeição, a imagem exacerba plausibilidade. Wall fala sobre a importância do balanço entre o reconhecimento de algo que poderíamos cruzar a qualquer momento e o não-visto:

A conjuntura precisa ser plausível, mas não indubitável. Se for indubitável, é ineficiente; se for implausível é igualmente ineficiente. 3

A Sudden Gust faz referência direta à obra Ejiri in Suruga Province (1831-33) (Fig. 3) do mestre do ukiyo-e Katsushika Hokusai (1760 – 1849). Sem o Monte Fuji da gravura japonesa e acrescentando postes de eletricidade e vestígios urbanos ao horizonte, Wall mantém a importância dada ao chapéu levado pelo vento, mas provoca uma diferente interpretação. Na fotografia, o personagem central que perde o chapéu não demonstra uma preocupação com o ocorrido e sim, evoca um deslumbramento com o inesperado (Fig. 4). A ventania deixa de ser vilã para se revestir de concretização da esperança antes impossível. O prazer da fruição dessa imagem plausível o tanto quanto improvável é envolvido por um desejo genuíno de que uma súbita ventania (por que não?) também nos carregue.

Fig. 3. Detalhe de A Sudden Gust of Wind (After Hokusai).
Fig. 3. Detalhe de A Sudden Gust of Wind (After Hokusai).

“The Epic and the Everyday”, “Profane Iluminations” e “Invisible Chimeras” são algumas expressões já usadas em exposições e artigos que referenciam o trabalho de Jeff Wall e sua capacidade de destravar um vasto potencial metafórico, alçando as inevitáveis porções de subjetividade que perseguem nossas rotinas à experiência de algo que não é visto, mas poderia ser.

Fig. 4. Detalhe de A Sudden Gust of Wind (After Hokusai).
Fig. 4. Detalhe de A Sudden Gust of Wind (After Hokusai).

Outra de suas primeiras obras na empreitada digital é The Stumbling Block (1991) (Fig. 5) onde fotografias de elementos individuais foram feitas na rua e no estúdio e posteriormente trabalhadas em uma única montagem que não revela suas emendas. Evoca também a suspensão do tempo, mas dessa vez, a paralisia é causada por um elemento que já se encontra sem movimento. A expressão “stumbling block” significa alguma coisa que causa problemas e frustra o alcance de objetivos.

Fig. 5. Jeff Wall, The Stumbling Block, transparência em lightbox, 229 x 337,5 cm, 1991. Ydessa Hendeles Art Foundation, Toronto.
Fig. 5. Jeff Wall, The Stumbling Block, transparência em lightbox, 229 x 337,5 cm, 1991. Ydessa Hendeles Art Foundation, Toronto.

O tropeço urbano, muitas vezes encarado com humor, vira um serviço público que permite que pessoas hesitem e reconsiderem suas ambições. Um gesto que pode ser poético e político, um tipo de declaração. Sobre The Stumbling Block, Jeff Wall diz que está:

Disponível para qualquer um que de alguma forma sente a necessidade de demonstrar – para si mesmo ou para o público em geral – o fato de que não está tão certo de querer ir para onde ele parece ser dirigido. 5

Essa cena urbana de qualquer grande cidade da chamada “América indeterminada” e seus trabalhadores apressados poderia ser a mais mundana das imagens se não fosse pelo homem de meia idade que se mostra passivo com o tropeço de uma mulher sobre seu corpo deitado e pelo homem de terno e gravata que sentado ocupa o restante da calçada, corpos deliberadamente posicionados. Acerca da montagem digital, ele diz:

Cria uma extensão de coisas possíveis e ajuda a suavizar o limite entre o provável e o improvável, mas não é o responsável por criar o limiar – isto já existia em minhas inclinações. 6

Ainda que as fotografias de Jeff Wall tenham relação profunda com um aspecto central da arte contemporânea, o uso das tecnologias digitais, me parece insuficiente que um estudo sobre seu aspecto de “estranho familiar”7 se detenha por muito à investigação de bastidores de produção. Se há muitas indicações quanto à A Sudden Gust e The Stumbling Block, o que dizer de uma paisagem como a de Dawn (Fig. 6)?

Fig. 6. Jeff Wall, Dawn, tranparência em lightbox, 230 x 293 cm, 2001.
Fig. 6. Jeff Wall, Dawn, tranparência em lightbox, 230 x 293 cm, 2001.

Aqui, a plausibilidade é inquestionável e o limiar entre provável e improvável da composição ficcional digital se transforma em outro limiar: o do ordinário e do extraordinário. É como se todos os dias tivéssemos que passar reto por essa esquina para chegar ao trabalho ou à universidade, mas que pela fotografia de Jeff Wall não enxergássemos outra opção a não ser adentrar pela ruela.

Até o exaustivamente conhecido ganha ares de não-visto e a mais ordinária das esquinas aparece banhada pelo extraordinário. Esse momento do amanhecer, quando já há luz natural, mas as lâmpadas dos postes elétricos ainda estão acesas, é uma tênue linha da passagem da noite ao dia que poderia ser também do seu inverso, do dia à noite, e a fotografia seria facilmente travestida de “entardecer”.

A opção pelo título “amanhecer” aponta para uma declaração de que o extraordinário não é um delírio noturno, que o desvio de caminho se dá pela abertura de frestas no próprio dia-a-dia. Pode ser uma ventania, um tropeço ou a revelação da curva de uma esquina, a ação de olhar repetidamente e com atenção revela o “efeito especial” em que a postura e o movimento das roupas do homem central de A Sudden Gust são os mesmos de quem dança.

Regiane Ishii é graduanda em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bolsista da CNPq pelo desenvolvimento da pesquisa de Iniciação Científica “Jeff Wall e o estranho familiar”

1 “Quando comecei a trabalhar digitalmente, estava sob a ilusão de o computador estava abrindo um mundo de espaços imaginários. Mas, o dia-a-dia é um efeito especial. Não há um espaço especial que seja imaginário”. Jeff Wall, Jeff Wall (Tate Publishing: Londres, 2005), p. 55. Todas as traduções foram feitas pela autora.

2 Laura Mulvey, ‘A Sudden Gust of Wind (after Hokusai)’: from After to Before Photography (Oxford Art Journal 30.1 2007), p. 32.

3 Jeff Wall, Jeff Wall (Tate Publishing: Londres, 2005), p. 72.

4 Oxford Advanced Learner’s Dictionary. Oxford: Oxford University Press, 2005.

5 Jeff Wall, Jeff Wall (Tate Publishing: Londres, 2005), p. 52.

6 Jeff Wall, Jeff Wall (Phaidon Press: Londres, 2002), p.13.

7 A base para a expressão “estranho familiar” é de Alberto Martín Expósito no artigo O tempo suspenso. Fotografia e relato. (2004).

Bibiliografia

BURNETT, Craig. Jeff Wall. Londres: Tate Publishing, 2005.

CHEVRIER, Jean-François; DUVE, Thierry de; GROYS, Boris; PELLENC, Arielle. Jeff Wall. Londres: Phaidon Press, 2002.

EXPÓSITO, Alberto Martín. O tempo suspenso. Fotografia e relato. Revista Studium, 2004. Disponível em: . Acesso em: 17 de abril de 2008.

MULVEY, Laura. ‘A Sudden Gust of Wind (after Hokusai)’: from After to Before the Photography. Oxford Art Journal 30.1 2007.

WAGSTAFF, Sheena. Beyond the threshold. Tate On Line, 2005. Disponível em: . Acesso em: 17 de abril de 2008.

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