Cecília Mazetto*
Introdução
Neste artigo abordarei a aplicabilidade da teoria feminista no filme Má Educação (La Mala Educación, 2004) do diretor Pedro Almodóvar. A teoria não se aplica apenas às mulheres de um filme, como se vê no filme em que se tem um homem e um¹ travesti no papel feminino, como objetos do olhar.
Ao entrarmos em contato com a teoria feminista de Laura Mulvey nos dias de hoje, vem-nos a recorrência da imagem das mulheres de Pedro Almodóvar, que são donas de seus próprios caminhos, ainda que de certo modo dependam dos homens com que se relacionam, como Raimunda, de Volver (2006). Raimunda é uma heroína forte e independente, mas assombrada pelo medo de ser descoberta por esconder o corpo do ex-marido, que acabou sendo morto por sua filha após este tentar estuprá-la. A teoria feminista, entretanto, está longe de falar sobre a mulher como alguém que carrega toda a história por sua conta: aquela mulher moderna que cuida da família, trabalha e é independente de homens. Mulvey problematiza a subjugação da mulher ao olhar masculino, como objeto de desejo e de seu olhar.
Tendo o cinema clássico hollywoodiano como alvo de seus estudos, no artigo “Prazer visual e cinema narrativo”, Mulvey disserta sobre o papel de objeto de olhar que a mulher recorrentemente apresenta e o modelo de representação dominante no cinema comercial hollywoodiano ligado a uma sociedade patriarcal (Mulvey, 1983). Para a teórica, o espectador se relaciona com o filme pelos mecanismos da escopofilia e do narcisismo. A escopofilia, o prazer de olhar um objeto sem que ele saiba que está sendo visto, associa-se ao olhar controlador de um protagonista masculino, tendo papel ativo na narrativa e direcionando os rumos dela, com a figura feminina sendo seu contraponto. O narcisismo representa a necessidade do espectador em ser olhado, resultando na identificação entre o espectador e o protagonista masculino. Nesse processo de ser objeto do olhar de um homem, a mulher, a partir do momento que toma conhecimento desse olhar, mostra-se como narcisista, aproveitando-se do olhar deste masculino. Para Mulvey, a mulher continua a ser objeto, sendo raros os momentos de um filme em que seu olhar é usado pela narrativa.
Em Decálogo (1988), Kieslowski já invertia as posições entre sujeito ativo e passivo, apesar de no final Tomek vencer o medo da castração diante de Magda, por deixar de lado seu amor por ela. Hoje, nas mulheres retratadas por Almodóvar, a teoria se mostra curiosamente defasada. Mesmo sem aplicar-se às mulheres de Volver ou Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, 2009), a teoria se apresenta em outro filme do diretor, em personagens que são alvo de olhares masculinos, apesar de não serem mulheres. Em Má Educação, Zahara é uma personagem deste filme e faz parte desta diegese, um travesti que se compara a femme fatale dos filmes noir, se apresentando aos homens como objeto-a-ser-olhado mesmo, manipulando os homens e sua adoração.
A ideia básica deste artigo inspira-se no artigo “Quizás, Quizás, Quizás: deleite da câmera voyeurista e a construção da personagem Zahara no filme dentro do filme Má Educação, de Pedro Almodóvar”, de Naira Rosana Dias da Silva (2007). Retomará a questão da personagem como objeto de olhar, como olhar ativo, bem como a questão do homossexualismo fortemente abordado no filme, a ponto de dispensar a presença de qualquer personagem feminina significativa.
Má Educação, 2003
O filme apresenta metalinguagem, mostrando trechos de uma realização cinematográfica nele. Os personagens do filme feito dentro do filme têm os mesmos nomes dos personagens do filme, o que dificulta nossa análise. Para facilitar a análise, os personagens do filme serão chamados, primeiramente, pelo nome completo e depois pelo sobrenome e os do filme dentro do filme pelo nome.
A história se passa em Madri, no ano de 1980. Enrique Goded, interpretado por Fele Martínez, é um cineasta que passa por uma fase de bloqueio criativo, não conseguindo elaborar um novo projeto. Enquanto Goded faz suas pesquisas, chega um ator, interpretado por Gael García Bernal, à sua casa a procura de trabalho. Diz ser Ignacio Rodriguez, seu amigo de infância e primeiro amor de sua vida. Rodriguez entrega a Goded um roteiro intitulado “A Visita”, baseado em experiências de vida que ambos tiveram, o que acaba interessando-lhe profundamente. O roteiro relata as fortes tendências de pedofilia do professor de literatura da escola, padre Manolo, que, enciumado pela relação de Ignacio e Enrique, ameaça o segundo de expulsão. Ignacio, para que seu amigo não seja expulso, deixa o padre molestá-lo, mas não tem êxito em sua troca, prometendo vingança ao padre. Já adulto Ignacio torna-se Zahara, que em um de seus shows reencontra o amor de infância. Decide ir atrás de padre Manolo e chantageá-lo.
Interessado pelo roteiro, Goded quer produzir o filme, mas o personagem de Gael Garcia Bernal só aceita ceder seu texto se interpretar o papel de Zahara. Após discutirem e se afastarem, Goded visita a casa da mãe do amigo. É quando descobre que, na verdade, Rodriguez morreu e quem tinha ido atrás dele com o roteiro era Juan, seu irmão mais novo. Rodriguez, em uma carta, havia deixado o roteiro para Goded e contado sua história até aquele momento. Juan vai atrás de Enrique, dizendo que aceitaria não interpretar Zahara, mas já havia se preparado para o papel, emagrecendo e indo atrás de uma travesti para aprender seus trejeitos. Goded, sem contar que havia descoberto a mentira, aceita-o para o papel de Zahara, mantendo relações sexuais com Juan para saber até quando ele mentiria. O final do filme é mudado. Zahara morre pelas mãos do cúmplice do padre. A alteração deixa Juan atormentado. Após o término das gravações, o verdadeiro padre Manolo, que há tempos havia abandonado a batina, procura Goded e conta-lhe que Rodriguez havia o procurado, mostrando o roteiro e o chantageando. Rodriguez transformou-se em um travesti junkie. Juan, que cansado de ter um irmão como Rodriguez e ter de cuidar dele para acalmar sua mãe, decide matá-lo, usando Manolo como cúmplice. Para isto, aproveita-se do amor que este havia criado por ele. Goded fica entorpecido com a história e expulsa Juan de sua casa.
Explicitado o enredo da história, passamos à análise dos pontos citados na Introdução.
Voyeurismo e o homem como femme fatale
O filme tem influência evidente do cinema noir, seja pela referência a Pacto de Sangue (Billy Wilder, 1944), seja pela trilha sonora. A confusão que a referência metalinguística pode causar no espectador (torna-se difícil saber o que é realidade e o que é ficção, dentro da diegese, pelo uso dos mesmos nomes para as personagens e para as personagens do filme dentro do filme e pelo modo como é montado o filme, com recortes que misturam as cenas de “A Visita” às lembranças das personagens) colabora para o aumento do suspense do filme. Além da criação deste suspense, a sensualidade é outro traço marcante dessa influência noir, daí a presença relevante de um personagem que se identifica como mulher fatal. Mas a femme fatale, essencial para o gênero, símbolo da sensualidade e força feminina, no filme de Almodóvar é representada por um homem e por uma travesti!
Zahara é a mulher-fatal do filme dentro do filme, personificada em toda sua feminilidade. Mostra-se como mulher narcisista, que quer ser objeto dos olhares masculinos, por isso exibe-se em shows voyeuristas. Na cena em que canta o tango de Osvaldo Farrés, não apenas se exibe, como também provoca: em seu vestido, há uma marca triangular escura na região pélvica (como se fosse a pelve feminina coberta de pelos) e outras marcas nos mamilos. Provocando os homens e sendo observada por eles, Zahara torna-se um fetiche, não é a mulher idealizada. Colocando-se como objeto exibido, enquanto esconde seu falo, os homens a têm como mulher, como seu desejo. Quando eles têm a oportunidade de possuí-la, isso não causa em seus parceiros o medo da castração. Não há estranhamento, pois Zahara é igual a seu observador. Não é a mulher idealizada, por não ter conduta que a faça ser posta em um altar pelos homens que a observam, mas como tem um pênis, é fetichizada pelos mesmos. É vista como mulher, mas tem algo que a diferencia delas e não causa estranhamento a eles. Não há o medo da castração, pois existe algo que seria um atrativo: seu pênis.
Ao começar sua apresentação, arremessa um cravo vermelho para um homem da plateia, que mais tarde, bêbado, a leva para um quarto de hotel. O cravo vermelho possui um significado de admiração por parte da pessoa que o entrega à pessoa que recebe. No entanto deve-se notar também que a flor não é a rosa, mais relacionada ao feminino, e sim uma flor que se aproxima do masculino. Apesar de toda sua feminilidade, Zahara é homem, ainda tem o falo presente em seu corpo e não é possuidor das glândulas femininas. No quarto de motel, tenta manter relações com o homem, mas ele adormece, dando a oportunidade de Zahara revistar suas roupas para assaltá-lo. Em seus documentos, ela lê o nome de seu primeiro amor, desistindo do crime. Por um momento, Zahara deixa de ser a mulher fatal, volta a ser um homem apaixonado. Decidida, deixa-lhe uma carta e vai atrás da pessoa que o separou de seu amigo, padre Manolo, reassumindo a postura de mulher fatal. Vai para chantageá-lo. Não revela que é o ex-aluno que havia sido a paixão do padre, mas apresenta-se como mulher, sua irmã. O padre sabe que ela não é realmente uma mulher, mas de qualquer maneira seu corpo lhe intimida. Mesmo sabendo tratar-se de um homem, o padre quer manter distância e encara Zahara assustado. Neste momento o medo da castração de Manolo confunde-se a lembrança de um passado que o atormenta, por ter molestado uma criança.
Como Zahara, Juan também é tido como mulher-fatal. Não aparenta ser mulher fisicamente, mas em sua densidade e dissimulação, Juan atrai os olhares para si, é tomado como objeto. Assim como seu irmão, que na infância acabou seduzindo o padre pedófilo e seu amigo, Juan torna-se objeto de desejo de Goded e de Manolo. Sua beleza delicada, ainda que masculina, atrai os dois, mas seu psicológico e seu comportamento o aproximam da mulher citada por Laura Mulvey: a partir do momento que se descobre objeto de olhares, o narcisismo a faz se exibir mais e atrair, aproveitando-se do que os homens podem lhe oferecer, um trabalho como ator e cumplicidade na morte do irmão.
Inicialmente encantado, percebe-se que Enrique está atraído pela lembrança de seu amigo e primeiro amor. Após algumas conversas, estranha o amigo. Não o vê mais na personagem de Gael Garcia Bernal, há um estranhamento. As lembranças escritas no roteiro não são vistas em quem se diz Ignacio Rodriguez. Para Goded, Juan deixa de ser atraente, não é mais objeto de seu olhar, apenas usa-o como objeto sexual, com o propósito de fazê-lo confessar não ser quem se apresentou. Para Manolo, ver lado a lado Rodriguez e Juan, não lhe importava a lembrança do aluno, importava que agora este era um travesti que o chantageava. Seu desejo volta-se para Juan, criando nele uma imagem idealizada, ignorando suas atitudes. Persegue Juan e, quando vê que não tem mais atrativos sentimentais, o chantageia. Para livrar-se de Manolo, Juan o mata.
A ausência da mulher e o homossexualismo
As únicas personagens mulheres apresentadas no filme são a mãe de Ignacio e Juan e Mônica, a figurinista do filme, que ao final se casa com Juan. Ambas têm participação mínima, a segunda mais que a primeira. A mãe apresenta certa relevância, já que é quem revela a Goded a morte de Rodriguez, a verdadeira personalidade de quem o procurou (Juan) e é quem entrega a carta de Rodriguez, junto do roteiro. Mônica não tem nenhuma importância para a trama, apenas para o final, pois o primeiro letreiro diz que ela se casou com Juan. Não se sabe de onde vem e nada além de seu nome, apenas aparece no final, servindo como um gancho para alinhavar o destino de Juan. As demais mulheres presentes no filme não passam de figurantes.
Apesar da ausência expressiva da mulher, o feminino é fortemente representado no filme, na figura dos travestis e no psicológico de Juan, sendo um dos pontos principais trabalhados por Almodóvar, ao lado do homossexualismo e da violência. Percebe-se que a forte presença do homossexualismo, representado por Goded e Manolo, na história, acaba por caracterizar alguns personagens de forma mais feminina, como Rodriguez e Juan. Não por coincidência, as personagens que têm aflorado seu lado feminino se travestem. Temos Rodriguez, que na infância foi molestado por seu professor e se apaixona por Enrique, experimentando o homossexualismo, e que quando adulto traveste-se, com próteses mamárias, e chantageia quem o molestou para aperfeiçoar o corpo feminino. E temos Juan, que encarna outra mulher fatal do filme. Usando mentiras, sedução e sexo, consegue o papel de Zahara, inspirando-se em Sara Montiel e indo atrás de uma travesti para aprender todos os trejeitos que seriam necessários para seu personagem.
Com a ausência de personagens heterossexuais e a identificação da mulher fatal com um travesti e com um homem, a presença da mulher, que tem ovários e útero² se faz dispensável.
O sujeito do olhar
Enfim, falta analisar quem seria o sujeito do olhar, já que o filme apresenta dois objetos a serem olhados. A começar por Juan, que se apresenta como mulher-fatal por causa de seu psicológico e pelo modo como se apresenta na trama. No início, é tido como objeto de observação apenas de Goded. Com o desenvolvimento do enredo, percebe-se que Manolo também o observa. Mas Goded transforma o sentimento de admiração de seu olhar para um sentimento de suspeita, enquanto Manolo se mantém atraído sexualmente por Juan.
Como objeto de olhar, Zahara é sedutora e provocativa, além de extremamente narcisista. Ela expõe-se ao voyeur com prazer, desfrutando ser observada. E assim, sendo inicialmente uma figura admirada, quando alcançada pelos integrantes da plateia, torna-se fetiche. Não importa mais sua aparência feminina, mesmo vestindo-se e agindo como mulher. Ela é igual a seu possuidor. Além de ser objeto de olhar do público, por ser personagem do filme, é objeto de seu diretor, que a acompanha, encanta-se e intriga-se ao olhá-la. O que mais fascina Goded no filme é ver a relação de entre si mesmo e Enrique e de seu amigo de infância, Ignacio Rodriguez, e Zahara.
O filme como um todo, além de possuir dois objetos de observação, possui dois observadores, esquecendo-se os espectadores do show dentro do filme, diferenciados por seus motivos, mas tendo a mesma relação de observação e pretensão de controle de seu objeto.
Conclusão
A mulher que é objeto a ser olhado e acaba por ser uma ameaça ao homem faz parte dos elementos do filme noir. Curiosamente, esta relação do feminino é analisada pela teoria feminista. Mesmo a mulher se aproveitando do desejo do homem (a partir do momento que descobre ser observada), sendo independente e forte, esta figura feminina permanece ao longo do filme como objeto de observação. Os filmes ainda são narrados a partir do ponto de vista da sociedade patriarcal. Almodóvar, ao fazer um filme inspirado no gênero noir, mas sem mulher, o reinventou. Temos aqui um homem e um travesti que carregam o que é uma característica essencial do gênero: a femme fatale.
Má Educação pode ser explicado pelos conceitos de Laura Mulvey, segundo os quais o sujeito ativo do olhar é representado por Enrique Goded e Manolo e o sujeito passivo, aquele que é olhado, é representado por Juan, o ideal de “mulher”, e por Zahara, o fetiche.
Além disso a teoria também explica o frequente voyeurismo, exemplificado pelo momento em que Manolo passa a visitar muitas vezes Rodriguez, apenas para ver Juan e ter seu desejo saciado. Outro exemplo é a cena da piscina, em que Goded observa Juan (até então conhecido como seu amigo Ignacio) contente apenas pelo fato de o estar vendo sem roupa. Mesmo que queira algo mais, aquilo basta.
*Cecília Mazetto é graduanda do curso de Imagem e Som na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
Bibliografia
AGUIAR, Gustavo H. S. “Olhando Kieslovski e Hitchcock: questões do olhar e da representação do cinema”, Revista RUA, em 15 de setembro de 2011, disponível em http://www.ufscar.br/rua/site/?p=7122, acessado em 16/07/2013.
KOBALL, Alexandre. “Homenagem de Almodóvar ao cinema noir, com personagens fortes e crítica à Igreja Católica”. Disponível em http://www.cineplayers.com/critica.php?id=2, acessado em 17/07/2013.
MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 41-55.
MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo” in XAVIER (ed), A experiência do cinema, Rio de Janeiro, Graal, 1983.
SILVA, Naira Rosana Dias da. “Quizás, Quizás, Quizás: deleite da câmera voyeurista e a construção da personagem Zahara no filme dentro do filme Má Educação, de Pedro Almodóvar”. Disponível em https://www.revistas.ufg.br/index.php/ci/article/view/10304, acessado em 16/07/2013.
STAM, Robert. “A intervenção feminista” in Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003, pp. 192-201.
Filmografia
La mala educación / Má Educação (Pedro Almodóvar, Espanha, 2003, 100min, cor, som)
Notas
1- O uso do pronome masculino ao invés do feminino para referi-se a “travesti” deve-se a questão estilística do autor, que decidiu por manter o tratamento dado nas obras em que tomou por base.
2- BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – Volume 1, Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. (citado Por Naira Rosana Dias da Silva em artigo parte da bibliografia)