Vitor Vilaverde*
Através de uma pesquisa mais profunda, é possível encontrar no começo do cinema norte-americano, filmes relacionados ao esporte, sobretudo ao boxe. A princípio, tratava-se de filmes mais ingênuos, de curtas-metragens, que eram vistos, em sua maioria, pela classe trabalhadora já acostumada com o esporte.
Com o tempo, a figura do lutador de boxe passa a ter um caráter de herói nacionalista. Como escreve Victor Andrade de Melo em Jogos Olímpicos e Arte, Cinema e Identidade Nacional.
“Posteriormente, contudo, sem que deixasse de ser encarado como divertimento do homem comum, o tema, compreendido como símbolo de progresso, passa a ser inserido em preocupações de cunho nacionalista (ligado a construção de identidades, algo bastante notável nos Estados Unidos e na Alemanha do período do nazismo).”
Aos poucos, os filmes simples para a classe trabalhadora acabaram se desenvolvendo em histórias de superação, muito mais profundas do que os primeiros curtas-metragens. Passam do registro do esporte, da filmagem das lutas, para um mergulho nos conflitos internos dos personagens em questão. São filmes mais carregados, que levam em conta não só o desempenho dos lutadores no ringue, mas também suas histórias pessoais; um exemplo é O Campeão (1931), que conta a história de um ex-campeão de boxe, alcoólatra, que vive com o filho pequeno.
Não somente o boxe, mas outros esportes servem de ponto de partida para grandes histórias no cinema, sejam elas de entretenimento ou mais profundas. No Brasil, por exemplo, não são poucos os filmes que usam o futebol como pano de fundo. Porém, os filmes de boxe carregam algo que muitas vezes não é visto em filmes que usam outros esportes, : a violência das imagens.
De alguma maneira, as histórias de superação ajudam a “equilibrar” a violência transmitida pelas imagens de suor, socos, machucados e sangue. Ao mesmo tempo em que presenciamos um sofrimento psicológico dos personagens, vemos uma explosão desses sentimentos internos em forma de luta, uma explosão física para algo guardado por certo tempo. É como se, somente na luta, esses personagens fossem capazes de resolver os conflitos existentes em suas histórias de vida. As lutas de boxe chamam a atenção de um público interessado em assistir a um esporte que, apesar de exigir técnica e estratégia, é intenso. No cinema não é diferente: os espectadores são atraídos pelas imagens fortes projetadas na tela, em busca, da mesma maneira que os personagens dos filmes, de um modo de externar suas sensações e conflitos.
Num ringue, assim como num filme, temos uma platéia ansiosa pelo que aquele espetáculo pode oferecer. E essa relação se estabeleceu desde os primórdios do cinema, como afirma Victor Andrade de Melo em “A presença do esporte no cinema: de Étienne-Jules Marey a Leni Riefenstahl”:
“Já que se desejava exibir as lutas de boxe em toda sua plenitude, foram criados novos modelos de película, de maneira a tornar possível captar e exibir pelo menos um “round” por filme. O primeiro combate filmado com essa película foi realizado em seis “rounds”. Foram então disponibilizados seis aparelhos individuais, cada um exibindo um dos “rounds”.”
Da forma mais primitiva, os dois acontecimentos (luta e filme) motivam sensações parecidas no espectador, assim, a diferença mora na história (no roteiro), que extrapola o evento da luta para contar algo sobre o lutador e envolver quem assiste no processo de superação da personagem. Partindo dessa teoria, podemos analisar os filmes Menina de Ouro (Clint Eastwood, 2004) e O Vencedor (David O. Russell, 2010). De maneiras diferentes, os filmes dialogam com o que já foi dito acima sobre as imagens violentas e a superação do sofrimento e dos conflitos dos personagens.
O Vencedor: uma história de superação coletiva.
Tanto Micky, o lutador protagonista, quanto Dicky, o lutador que não deu certo, até a mãe, Alice e todo o resto da família, todos no filme se envolvem com o boxe. Todos usam o esporte como válvula de escape para suas vidas nem um pouco estáveis. A performance de Micky nos ringues é o pretexto que guia as relações da família. Porém, enquanto que para a família a vitória é uma questão de tempo, para Micky, perder lutas é algo que está saindo de cogitação: do jeito que está, está errado, precisa ser superado.
A trajetória do personagem de Mark Wahlberg segue à risca a teoria do uso do boxe como superação: ele, em certo ponto do filme, abdica da família problemática para, através do esporte, resolver os conflitos da sua vida, a fim de servir de exemplo para a filha e agradar sua atual companheira, Charlene (Amy Adams). Mesmo que, em dado momento, perceba que apenas a sua superação não será suficiente, é preciso uma superação coletiva: a família deve sair da instabilidade através de suas vitórias.
A instabilidade da família Ward é algo perceptível desde a primeira cena, tanto pela narrativa quanto pela excelente atuação de Melissa Leo e Christian Bale. Dicky, o irmão que não deu certo no esporte, é também o mais aclamado por todos, talvez como uma forma de protegê-lo e também de cegar os próprios olhos da realidade; todas (mãe e irmãs) fazem tudo por ele, mesmo que gritem aos quatro cantos que estejam agindo para ajudar Micky, e no fundo, elas sabem que vivem em função de Dicky. A família vai deixando os problemas de lado, mas, a todo o momento, sabemos que esses problemas estão ali, prontos para saltar na tela e explodir, seja através das cenas em que todos gritam e se agridem fisicamente, ou no momento em que mãe e filho parecem se controlar para não externar todos os conflitos presentes em sua relação (drogas, decepção, dependência, etc) e simplesmente cantam juntos.
As relações da família Ward só conseguem retornar a um estado de equilíbrio (não que sejam resolvidas), quando Micky começa a dar certo como lutador, depois que os problemas “apanham” no ringue. Até mesmo na forma como Micky vence suas lutas, no último round, depois de apanhar tanto quanto fosse necessário para cansar os adversários; mas ele não se cansa, pois está acostumado a apanhar da vida, assim como o irmão, a mãe e a namorada, e é por todos eles, que o personagem ganha força e consegue virar a luta – “os combates são na verdade coadjuvantes das situações pelas quais passam os indivíduos” (Cinema, corpo e boxe: suas relações e a construção da masculinidade. MELO, Victor Andrade de e VAZ, Alexandre Fernandez).
Menina de Ouro:
Maggie (Hillary Swank), a menina de ouro, precisa lutar o tempo todo. Antes mesmo de aprender a entrar num ringue, ela precisa convencer alguém a ensiná-la. E mais que isso, a própria personagem parece enxergar no boxe a questão da superação dos problemas de sua vida; ela procura o esporte, dentre outras coisas, pois quer ser uma vencedora, quer ganhar algo. E ainda antes de entrar na história, a personagem já está lutando, pois tradicionalmente os filmes de boxe retratam homens em situações em que precisam provar sua virilidade e, aqui, temos uma mulher como protagonista. Enquanto em “O Vencedor”, há a necessidade de uma superação em família, ainda que essa família seja completamente desequilibrada, aqui a boxeadora está sozinha (mesmo contando com a valiosa ajuda de seu treinador) e deve superar tudo com sua própria força.
A luta maior da personagem não acontece nos ringues. Ao vestir as luvas, subir no ringue e se tornar a Mo Cuishle – expressão que se traduz como “minha querida, meu sangue” – do treinador, ainda um pouco ranzinza, Frankie Dunn, Maggie consegue superar os problemas financeiros e subir de vida, tornando-se aquilo que ela lutou para ser, claro que com muito sangue.
Mas a luta maior é pela vida, e nesse momento não há como externar todo o sofrimento através do boxe – isto já foi feito, o obstáculo agora é maior e a violência deixa de ser física para se tornar psicológica. De algum jeito, todas as cenas em que Maggie está presa à cama acabam por ser mais impactantes do que as em que ela bate em suas adversárias.
O ringue é transferido para uma maca de hospital, tornando-se um espetáculo nada agradável de assistir (pensando aqui em um certo prazer visual que as lutas proporcionam, diferentemente do sofrimento da personagem, e de maneira alguma questionando a qualidade do filme). Assim, a superação de Maggie acontece em duas etapas. Na primeira, o treinador é convencido e ela vence os obstáculos do dia-a-dia (como na maioria dos filmes de boxe). Na segunda, ela vai além, e junto de seu treinador, agora amigo, eles lutam pela vida, ou pelo direito de não viver daquela maneira.
Violência nas telas?
Todo sangue, suor e socos e golpes deferidos, mostrados na tela, podem ser encarados como imagens violentas. Mas tão violento quanto são as condições em que os personagens normalmente se encontram antes de passar pelos ringues, onde a violência deve ocorrer, como explica NOGUEIRA, Luís em Violência e Cinema – Monstros, Soberanos, Ícones e Medos:
“Deve ocorrer porque aquilo que se põe em mediação e avaliação é o poder numa situação de adversidade, de inimizade, de confronto: o que se mostra, portanto, é o poder que advém da força. Mas não exclusivamente. Trata-se de uma força que não é pura pulsão, um simples recurso natural, físico, biológico, enérgico. Violência que não é por isso, incondicionada, óbvia, ímpeto.”
Ainda que atualmente o boxe perca cada vez mais espaço na televisão e com os patrocinadores (ao redor do mundo) para esportes como o MMA (Mixed Martial Arts), no cinema tal crise parece ainda não ter chegado, novos boxeadores se juntam a Rocky e tantos outros filmes.
A fórmula: “boxe + superação” se constitui então quase como um gênero de filme, tal como as comédias românticas, os filmes de guerra, de ficção científica, entre outros. Porém, em todos os casos, o que se espera é que os boxeadores tenham, além da força para bater nos problemas dentro do ringue, boas histórias de vida para serem contadas.
* Vitor Vilaverde é graduando em Imagem e Som pela UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.
Referências Bibliográficas:
MELO, Victor Andrade de e VAZ, Alexandre Fernandez. Cinema, corpo e boxe: suas relações e a construção da masculinidade.
MELO, Victor Andrada de. A presença do esporte no cinema: de Étienne-Jules Marey a Leni Riefenstahl.
MELO, Victor Andrada de. Jogos Olímpicos e Arte, Cinema e Identidade Nacional.
NOGUEIRA, Luís. Violência e Cinema – Monstros, Soberanos, Ícones e Medos – Série Estudos em Comunicação, 2002.