16º Festival É Tudo Verdade

Ligia Gabarra e Felipe Carrelli* 

Abertura do Festival – Suecos e Arquivos.

No último dia 31 de março o Festival É Tudo Verdade teve sua abertura no Rio de Janeiro e em São Paulo simultaneamente.  Nas duas sessões foram exibidos filmes feitos a partir de um rico acervo de imagens, ambas compiladas por diretores suecos.

Stig Björkman exibiu dois documentários na festa de abertura da capital carioca. …Mas o Cinema é Minha Amante e Imagens do Playground foram feitos a partir do material da Igmar Bergman Foundation, onde constam filmagens pessoais do cineasta e dos bastidores do set de seus filmes.

Cena do documentário "Black Power Mixtape" 1967-1975 (Suécia/EUA, 2011) de Göran Hugo Olsson.

Em São Paulo foi a vez de  Black Power Mixtape, um apanhado de arquivos em 16 milímetros  que o diretor Göran Hugo Olsson transformou  em documentário. Sem adicionar qualquer filmagem própria, ele aproveitou da simplicidade e beleza dos arquivos, sem picotar ou explicar o material.  O ponto de vista escandinavo é parte essencial da autenticidade do filme, há um olhar intrigado e estrangeiro que pretende entender o movimento sobre o ponto de vista do indivíduo, mais que dos avanços sociais ou da questão política. Ele parte de uma premissa ingênua, na primeira sequência um dono de restaurante responde ao entrevistador, dizendo que seu negócio vai bem e que todos que quiserem podem ter uma chance na América.  O desenvolver do filme mostra que essa verdade não é válida para todos os americanos.

As imagens de arquivo são narradas por entrevistas feitas atualmente com pessoas relacionadas ao movimento negro. Nenhuma delas aparece, apenas suas vozes. Trata-se de uma solução interessante para evitar o lugar comum das entrevistas, além da quebra no discurso, mantendo ele puro apenas com as imagens da época. Talvez somente o uso dessas imagens, sem o voice over, fosse suficientes para o documentário.

 

Competição Internacional, Longa ou Média-Metragem

Você não Gosta da Verdade – 4 dias em Guantánamo foi o vencedor  da mostra competitiva internacional, considerado pelo júri como “uma denúncia cáustica do poder, um documentário de investigação na sua melhor forma.” Os diretores canadenses, Patrício Henríquez e Luc Coté se apropriaram de uma entrevista com Omar Khadr, aprisionado em Guantánamo, para discutir direitos humanos e justiça.

Cena do documentário "A Onda Verde" (Alemanha, 2010) de Ali Samadi Ahadi.

Outra obra que causou comoção pelo teor de denúncia foi A Onda Verde. O diretor Ali Samadi Ahadi usou relatos retirados de blogs e rede-sociais para discutir o que de fato aconteceu no Irã depois das eleições presidenciais de 2009, quando a mobilização da oposição diante à fraude eleitoral foi fortemente reprimida.

A sessão no CCBB foi à baixo com o filme, era um coro de lagrimas constante. Não é à toa, os depoimentos tornam a relação com o filme muito íntima. Eles foram escritos em momentos de angústia, são praticamente confissões. Um garoto que foi torturado explica, depois de sair da prisão, sua dificuldade em chorar após ser humilhado, estuprado e deixado nu no meio do deserto. Ele ainda tem que segurar o choro, pelo medo ser condenado por uma sociedade que não aceita esse tipo de fragilidade em um homem adulto. Os relatos são encenados através de animações, o desenho é muito palatável, expressivo e sofisticado, torna os momentos mais duros em quadros lindos, que parecem ter a intenção de extrair o máximo de emoção de seu espectador. É uma covardia, mas talvez uma covardia válida, tendo em vista a  necessidade real de atrair e comover olhos do mundo todo para essa situação.

Cena de "Loucas Mulheres" (Chile, 2010) da diretora Maria Elena Wood.

Um filme que aborda seu tema com uma objetividade única é Loucas Mulheres a diretora Maria Elena Wood relata: “Quando li no jornal que os arquivos pessoais de Gabriela Mistral haviam sido descobertos, tive a intuição de que esses materiais poderiam conter aspectos essenciais de sua vida, que estavam encobertos na escuridão”. Gabriela Mistral foi a primeira mulher latino-americana a receber o Nobel de literatura. Sua homossexualidade é o aspecto que até então estava no escuro, o assunto em nenhum momento é discutido no filme, ele é apenas comprovado com muita naturalidade. Não existe um questionamento sobre isso; quão difícil seria manter um relacionamento gay durante a época ou  quais as implicações dele em sua poesia. Trata-se de um trabalho quase arqueológico as provas são encontradas e colocadas em cima da mesa, cabe ao público avaliá-las. Essa rigidez na simplicidade da informação abre um leque muito grande de interpretações além de manter o espectador preso, querendo sempre entender mais.

A menção honrosa da categoria foi para Cinema Komunisto (Sérvia, 2010), da diretora Mila Turajlic, que descreve o cinema como uma possibilidade de reconstruir a história da Iugoslávia, agora Sérvia, um país cuja as constantes mudanças nas últimas décadas tornou necessário manter o passado distante em nome do re-começo.

Competição Brasileira, Longa ou Média-Metragem

Prevaleceu o sudeste na curadoria da mostra brasileira de longas, foram 7 filmes selecionados, todos vindos do estado do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quase todas, obras de diretores experientes como Silvio Tendler e Toni Venturini. A exceção é Alessandra Bergamaschi, única diretora estreante na categoria, seu filme Aterro do Flamengo é um testemunho urbano em tempo real, a partir de uma câmera parada. O júri lhe concedeu menção honrosa por manter uma inquietação constante no espectador.

O prêmio de melhor filme foi entregue a Arthur Fontes e Dorrit Harazin,  diretores de Dois Tempos, em que revisitam a família de um trabalho anterior Família Braz (2000), documentando a ascensão da classe média no Brasil, considerado pelo júri um retrato que vai além dos sinais do progresso, estimula e assusta.

Retrospectiva Brasileira: Poesia é Verdade

Essa edição do festival teve um espaço especial dedicado à poesia. O texto de apresentação do catálogo, assinado pelo diretor do É Tudo Verdade, Amir Labaki, cita Carlos Drummond de Andrade “A porta da verdade estava aberta/mas só deixava passar meia pessoa de cada vez”.  O poeta é protagonista da mostra Poesia é Verdade junto a poetiza Ana Cristina Cesar, da qual Amir resgatou inspiração para a curadoria dessa retrospectiva. Ana acreditava na possibilidade do documentário falar melhor sobre a poesia do que a própria literatura, já que o filme não possui a responsabilidade de ensinar e isso lhe dá mais liberdade. Alguns dos filmes na mostra seguem à risca essa premissa Poesia é Uma ou Duas Linhas e Por Trás Uma Imensa Paisagem (1990) de João Moreira Salles, é um curta que desafia os limites do documentário a medida que em certos momentos parece mais um vídeo arte ou mesmo um vídeo poema. O filme dedicado à memória de Ana Cristina Cesar faz a câmera trafegar por entre imagens distorcidas de seus pertences ao som da poesia dela e daqueles que a influenciaram.

O Filme seguinte da sessão Poesia 6, era Assaltaram a Gramática, de Ana Maria Magalhães, que novamente se parece mais com uma obra experimental do que documental. A diretora apresenta alguns dos poetas mais importantes do anos 80 no Brasil, interpretando seus próprios textos e se apropriando dos novos rumos do poesia na época, o vídeo-arte.

Ainda que a discussão sobre os limites do documentário seja muito antiga ou ainda  que discussão atual sobre  gêneros, impossibilite colocar alguns filme em apenas uma categoria, não se pode esquecer que esse se trata de um festival de documentários e que portanto a divisão de gêneros, nesse caso não é obsoleta.

Cena de "Pan-Cinema Permanente" (Brasil, 2007) de Carlos Nader.

O último título dessa sessão foi Pan-Cinema Permanente, de Carlos Nader, um filme que pisa firmemente no solo do documentário mas segue a premissa de Ana Cristina Cesar, não há qualquer resquício da ditadura do didatismo. Nader explora a poética na própria figura do poeta Wally Salomão, que exercia poesia com sua mera existência. Wally não perde a pose em nenhum momento frente a câmera, mantém o personagem constantemente, o documentário busca em vão encontrar um verdadeiro Wally e essa busca, mesmo que sem sucesso, torna o filme uma obra concisa e extraordinária. Não é à toa foi vencedor do Festival no ano anterior.

Lígia Gabarra é graduada em Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

 

Competição Internacional/Nacional de curtas metragem e mostras paralelas

O 16ª É Tudo Verdade (Festival Internacional de Documentário) teve sua abertura em São Paulo e Rio de Janeiro simultaneamente. Entre os dias 31 de março e 10 de abril de 2011, professores, diretores e amantes do cinema documentário puderam acompanhar o maior festival do gênero na America Latina.

Foram exibidos 95 documentários entre curtas, médias e longas-metragem, divididos em mostras competitivas, retrospectivas e mostrar especiais.

Além disso foram realizadas atividades paralelas como a 11° Conferencia Internacional do Documentário (Palestras organizadas em parceria com o Cinusp e que teve como tema A Entrevista no Documentário), Oficina de Webdoc (Ministrada por Jorge Bodansky) e É Tudo Verdade & Risadaria (que contou com a presença do apresentador do CQC Marcelo Tas).

Gostaria de compartilhar alguns filmes que assisti, sempre lembrando que é uma análise totalmente subjetiva. As criticas e elogios que aqui faço são baseadas na minha interpretação e não tem a intenção de julgar o mérito da seleção ou premiação da festival. Inclusive, os filmes que não assisti, omiti dessa seleção, e nem todos que assisti achei interessante citar. Comecemos então pela mostra internacional de curtas metragem.

O primeiro documentário exibido no reserva cultural foi Si Seguimos Vivos (Cuba – 2010) de Juliana Fanjul. A diretora é estudante da Escola de Cinema de Cuba e esteve presente na sessão. Ela lembrou que além dela, outros dois alunos de Cuba estavam exibindo seus curtas no É Tudo Verdade 2011.

O documentário mostra o cotidiano de uma casa para idosos em Havana. A saúde precária que debilita o corpo e a memória dos pacientes não impede que eles continuem a desenvolver relações de amizade e a troca afetiva. Alguns passam pelo drama do abandono das famílias, outros encaram a situação com naturalidade. O corpo cansado e lento reflete o ritmo cadenciado da movimentação dos pacientes, da clinica e também da estética do documentário. A câmera passeia pelo cantos da casa lentamente, contemplativa, a espera de algo que não acontece. A sensibilidade dos realizadores consegue captar as sutilezas do ambiente.

A seguir foi exibido o que viria a ser o vencedor da competição internacional de curtas, Fora de Alcance (Polônia – 2010) de Jakub Stozek. O documentarista segue duas irmãs que buscam reencontrar a mãe de que as abandonara quando ainda jovens. Criadas pelo pai dominador (que se recusa a participar do documentário), as duas irmãs aparentam ser bem unidas, principalmente quando a saúde da mais nova, Natalia, se agrava (ela está perdendo a visão de um dos olhos por negligência de seu pai).

Karolina é a mais corajosa. Após reencontrarem o paradeiro da mãe, ela decide ir até a França reencontrá-la. A mãe (Bozena) no começo evita responder as ligações, mas depois da insistência das filhas ela começa a conversar com elas pelo celular. O reencontro de mãe e filha não é mostrado, deixando em aberto se Bozena realmente apareceu ou não no local marcado. A seqüência final é sugestiva: Karolina aguarda ansiosamente e o tempo vai passando até escurecer.

Rosto (Austrália – 2010) de Adelle Wilkes é um documentário sobre o projeto colaborativo chamado “Beautiful Agony” que explora a diversidade da sexualidade humana. A idéia é que pessoas do mundo todo enviassem vídeos de seu rosto tendo um orgasmo.

Cena de "Rosto" (Austrália, 2010) de Adelle Wilkes.

No documentário vemos alguns dos mais de 1000 vídeos enviados por participantes (homem, mulheres, transexuais e homossexuais) que tem entre 18 e 76 anos. Também escutamos o depoimento das pessoas explicando o porquê de participar do projeto, expondo um ritual tão intimo ao publico da internet. Também temos um depoimento de um crítico de arte que defende o projeto com seus argumentos de especialista. A própria realizadora participa da experiência, e vemos seu conflito e suas incertezas até conseguir realizar seu “Beatifull Agony” vídeo ao qual vemos na integra.

Muros (França – 2010) de Hayoun Kwon é uma interpretação pessoal sobre a relação entre Japão e Coréia e a prisão Seodaemun.

Em minha opinião o melhor curta da mostra foi O Desejo da Aldeia Chang Hu (China – 2010) de Huaqing Jin que retrata a crônica de uma família habitante da aldeia Changhu, no oásis de Minqin. O oásis é uma barreira natural à desertificação no noroeste da China. No entanto acompanhamos o avanço da areia sobre as plantações de algodão da aldeia. A cultura de cabras também se torna insustentável na região, as melancias cada vez menores e os poços de água têm que ser cada vez mais fundos e logo se esvaziam.

Em meio essa crise ambiental, acompanhamos o pequeno filho da família e sua irmã que tem de se adaptar as mudanças em meio às brincadeiras de infância. Dois momentos são marcantes nesse documentário, e sintetizam a problemática abordada no filme. O primeiro é a discussão entre o marido, a esposa e os avós das crianças em que existe o conflito entre deixar a região abandonando as tradições e enfrentar a imigração para um centro de maior aglomeração onde as possibilidades dos estudos para os jovens são maiores.

Em outra sequência, as duas crianças brincam nas dunas com seu cachorrinho e conversam sobre o futuro e sobre seus sonhos. O pequeno diz querer conhecer o mar. A maiorzinha, fazendo o papel de entrevistadora, pergunta como ele acha que é o mar. “Eu não sei nunca fui no mar, deve ter coelhos… porcos espinhos!” A ingenuidade e simplicidade das crianças é moldada pela vida simples e batalhadora que a paisagem da aldeia obriga os camponeses a ter. Essa característica está próxima de se perder com a imigração. Nas mesmas dunas, assistimos a um depoimento do avô, que afirma que eles não querem ir embora, mas que terão que ir.

Acredito que esse filme toca em um ponto universal, antigo e que ao mesmo tempo é extremamente contemporâneo. A tradição e o progresso, a imigração, a movimentação da natureza em busca de novos ambientes, a batalha pela sobrevivência cravada entre as espécies e seu meio ambiente. Uma relação ríspida, impiedosa e implacável, mas nunca desumana ou cruel.

A metáfora do oásis é ainda mais reveladora. Um ambiente sereno que serviu de sobrevivência a uma cultura agora é tomado de volta pelo árido deserto. Mas a natureza não é uma antagonista como o homem pensou por muitas gerações. Ela dá e devolve, recebe e toma, uma troca sentida pelos camponeses de Changhu, que não sentem ódio da perda e sim nostalgia.

Primeiras Trevas (Reino Unido – 2010) de Denise Wyllie e Clare o hagan é um curta de 8 minutos feito por duas pessoas. A morte de um jovem amigo de Clare lança a pintora em grande tristeza e depressão. Esse “inverno interior” é refletido em seu mundo exterior através das pinturas e gravuras. Acompanhamos o processo de readaptação da artista e de seus trabalhos até a fase de um novo aprendizado.

Em Inventário (Polônia – 2008) de Pavel Lozinsky três pesquisadores decifram inscrições nas lápides do cemitério judeu de Varsóvia. Os registros foram dizimados pelos alemãs durante a segunda guerra mundial e os pesquisadores tenta reconstruir o passado do cemitério. O interessante nesse filme é que no inicio os planos detalhes e próximos não nos deixam identificar o cemitério, o que causa tensão e expectativa. O cemitério está construído no meio de uma densa floresta o que dá um tom de sitio arqueológico ao cenário.

Minus Two (Iran – 2010) de Mohammad Ehsani (preso durante 13 meses pelo regime autocrático iraniano) mostra a juventude de Tehran através dos depoimentos dos próprios jovens, evidenciando uma falta de perspectiva e motivação que acarretam no alto consumo de drogas químicas.

E finalmente o ultimo curta internacional exibido foi Viagem a Cabo Verde (Portugal – 2010), única animação na competição e que ilustra de forma cômica o mochilão realizado pelo diretor a ilha portuguesa.

A competição brasileira de curtas contou com documentários de alto nível diferentemente do ano passado em que os curtas deixaram um pouco a desejar. A Poeira e o Vento (MG – 2011) de Marcos Pimentel foi o vencedor da 16ª edição. O documentário mostra o cotidiano de um pequeno vilarejo rural no interior de MG próximo do Parque Estadual de Ibitipoca. A rotina e a tradição daquela comunidade se mantêm enquanto aos poucos os elementos da sociedade moderna vai sendo inserido em suas vidas, como a televisão. O filme lembra muito a estética e a temática de Ave Maria, ou Mãe dos Sertanejos de Camilo Cavalcante (para saber mais acesse: http://localhost/rua/?p=2508)

Como no resultado da competição internacional de curtas, também discordo da decisão dos jurados. Meu curta preferido foi Braxília (DF – 2010) de Danyella Proença, que conta a história do poeta Nicolas Behr. Nascido em Cuiabá, Behr mudou-se para Brasília aos 16 anos e logo tornou-se um ativo membro da “geração mimeógrafo” (ferramenta que utilizava para fazer as copias de seus livrinhos como “Iogurte com farinha -1977” e “Chá com Porrada – 1978”). Segundo os depoimentos do poeta, o impacto de sua chegada a Brasília o fez querer entender aquele local diferente de todos que conhecia anteriormente. Esse processo levou a criação da cidade utópica “Braxília”, personagem recorrente em seus poemas. Um de seus poemas “Travessia do Eixão” foi gravado pelo Legião Urbana e tornou-se um dos hinos informais dessa cidade em constante mutação.

Cena de "Braxília" (Brasil, 2010) de Danyella Proença.

As linhas e traços da arquitetura influenciavam sua poesia. Em um de seus poemas mais famosos ele canta contra essa paisagem determinante de Brasília: “Nem tudo que é torto é errado, veja as pernas do garrincha e as arvores do cerrado.”

Nem a organização das quadras foge de seu atento olhar e de seus afiados versos:

“SQS415F303. SQN303F415. NQS403F315. QQQ313F405. SSS305F413. Seria isso um poema sobre Brasília? Seria um poema? Seria Brasília.”

“Escrever a cidade à pé – mas de dentro de um carro ”

O documentário explora os espaços de Brasília e a interação do poeta com esses espaços. As entrevistas acontecem em diferentes lugares, sempre buscando encaixar a poesia com a imagem. A estética e a abordagem do tema respeitam a criatividade e a simplicidade dos poemas de Behr. Um curta extremamente bem articulado e com uma sensibilidade muito interessante.

O documentário Coutinho Repórter (RJ –2010) de Rená Tardin entrevista Eduardo Coutinho (Edifício Master, Jogo de Cena). Através dos depoimentos do documentarista, Tardin reconta a trajetória de Coutinho quando trabalhou no Globo Repórter durante 9 anos antes de finalizar (Cabra Marcado para Morrer – 1985). Diferentemente de Braxilia, o documentário peca um pouco em sua abordagem estética, o que não diminui o filme já que o personagem é extremamente interessante e conta vários causos fascinantes de sua história.

Outro personagem que segura o filme sozinho é Darcy Ribeiro de Meia Hora com Darcy (RJ – 2010) de Roberto Berliner. Essa foi a ultima entrevista concedida pelo antropólogo e político antes de sua morte dois meses após o encontro com o diretor. O fator histórico do evento possibilita ao diretor apresentar a entrevista sem cortes, em tempo real. O material que havia ficado guardado até agora, revela a habitual veemência e paixão de Darcy ribeiro sobre os mais variados assuntos.

O diretor lhe pergunta o que pensa sobre o ano de 1996, sobre o Rio de Janeiro, sobre o tempo… perguntas aleatórias que não tem conexão alguma e que provavelmente seriam utilizadas com outro fim. Como obra documentária é extremamente incompleta, mas vale pelo registro e pela opinião inconfundível de um dos mais importantes personagens da historia brasileira.

Entre Vãos (DF – 2010) de Luísa Caetano tem a estética e a temática bem parecida ao já citado A Poeira e o Vento. O documentário registra a comunidade de Vão das Almas (GO) e tem na menina Lizeni de 10 anos seu personagem principal. Ela brinca nos riachos, corre por entre o cerrado e dá depoimentos sobre seus sonhos e futuros em sua cama.

Hoje Tem Alegria (2010 – SP) de Fabio Meira mostra o cotidiano de três circos do norte e nordeste do Brasil. Colhe depoimentos de vários artistas e transforma em pequenos textos que vamos acompanhando ao longo do documentário. O projeto foi selecionado pelo edital de apoio a documentários etnográficos sobre patrimônio cultural imaterial (Etnodoc).

Palavra Plástica (PE – 2010) de Leo Falcão acompanha o processo de reelaboração artística da exposição que teve o poeta pernambucano Carlos Pena Filho como homenageado. Vinte artistas foram convidados e o resultado foi uma compilação de diferentes interpretações sobre a poesia de Pena.

São Silvestre (SP – 2011) da ex-professora da UFSCar Lina Chamie retrata a mais famoso e tradicional corrida de rua da América Latina. O documentário procura entender o que move e quais são as motivações dos corredores amadores a participar dessa maratona árdua, que exige resistência e fôlego, em plena virada do ano na avenida paulista.

Entre as mostras não competitivas, gostaria de comentar alguns documentários que me chamaram a atenção.

Cena de "Os Cavalos de Cena de Goethe" (Brasil, 2011) do diretor Arthur Omar.

Na mostra “Programas Especiais”, comento logo o primeiro documentário que assisti esse ano no É Tudo Verdade. Os Cavalos de Goethe (Brasil – 2011) do renomado diretor experimental Arthur Omar. Filmado no Afeganistão em 2002 com uma câmera de 1 ccd, o documentário experimental mostra um evento em que cavaleiros pisoteiam uma cabra. A cena dura cerca de 10 minutos e o diretor transforma a guerra em quadros que se movem aos milímetros e estende a ação há 70 minutos. A montagem minuciosa que durou 1 ano apresenta fusões intra e inter quadros. O filme que segundo o diretor vai se chamar de Alquimia do Tempo a partir de agora transforma o cada quadro em um borrão. Não podemos definir muitas vezes o corte, ficamos imersos na lentidão das imagens. Mudamos nosso tempo.  “O tempo é desacelerado até alcançar o hiperreal, depois do hiperreal só nos resta onírico” – Marcelo Ariel.

Em uma das cenas finais, depois de acompanhar o movimento extremamente lento temos planos da velocidade “normal” das imagens. A impressão. porém, é que a velocidade está acelerada. Só percebi meu engano depois quando o diretor disse após a sessão.

Confesso que ainda estou digerindo aos poucos todas as ideias que o filme me remeteu. Assistir esse filme atentamente é se deixar levar pelas formas, pela imersão daquele outro tempo. Acredito que é um filme que funcione em tela grande, no escuro do cinema e não em uma televisão. É um filme para assistir e se deixar levar.

O diretor nos dá toda a historia no começo, por isso, após os 10 minutos iniciais, não temos mais expectativas sobre a narrativa, sobre a história. A “outra” historia que chama a atenção. A história do tempo, da relação do tempo, da escultura do tempo. O evento arcaico, violento e bárbaro do sacrifício de outra espécie se perde no meio do caos, das patas, das fusões entre cavalos e homens. A dor da morte da cabra está no olhar e na agonia dos cavalos que se debatem entre si sem saber para onde vão, ou porque estão ali. A plateia ao redor se diverte e se horroriza ao mesmo tempo.

Um filme realmente muito forte e muito denso. Uma experiência de catarse que poucas vezes senti ao assistir um filme.

Na mostra “Foco Latino-Americano” vale destacar o documentário Cintilante (Uruguai – 2011) de Gabriel Szollosy. O filme retrata a historia de Horacio Pereira, um veterano guarda costeiro que trabalha em um farol e está próximo de sua aposentadoria.

Cena de "Cintilante" (Uruguai, 2011) de Gabriel Szollosy.

O diretor, muito simpático e confessamente entusiasmado, esteve presente na sessão e conversou com o público. Ele disse que sua idéia era fazer um documentário ambiental, sobre a ilha onde está localizado o farol onde trabalha Pereira. Chegando lá, pensou que uma pessoa que trabalha em um farol deve passar muito tempo sozinho, então deve ter muitas coisas para dizer. Ao conversar com o faroleiro, percebeu que ali continha um personagem fascinante. O diretor lembra que Horacio desconfiou no começo, mas logo que Szollosy contou a ele sua própria historia, percebeu que seu trabalho solitário e sua rotina simples eram algo muito interessante, e decidiu participar do documentário.

O guarda costeiro é casado e mora em uma casa simples com sua mulher e filha adolescente. O documentário acompanha a trajetória de Horacio até o Congo, onde ele realiza uma missão de paz pela ONU. Lá consegue reavaliar suas raízes familiares (seu avó migrou do Congo para o Uruguai) e refletir também sobre sua condição de pobreza. Em uma das cenas mais interessantes, alguns jovens congoneses discutem com Horacio sobre pobreza, e um deles afirma que ele no Uruguai não era pobre, se tinha família, casa, emprego… ele era pobre, tudo o que queria era trabalhar na ONU mas não podia. Aqui temos uma contradição entre a intenção da missão e seus efeitos colaterais. Além disso podemos observar um relativismo no conceito de pobreza muito interessante. Inclusive me ocorreu um grande choque ao voltarmos para o ambiente do Uruguai, pois aquelas ruas de terra com casas simples de madeira agora remetiam a conforto e organização (diferente do caos, pobreza e sujeira no cenário africano).

Além dessas questões, podemos acompanhar o definhamento da saúde de Horacio, cada vez mais debilitado por sua idade e por anos de trabalho. Ele também carrega consigo um trauma causado pela perda de alguns amigos durante o serviço, quando um dos barcos que comandava virou e afundou.

O diretor do curta ao final da sessão falou que considera Horácio uma pessoa muito sábia. Não inteligente, mas sábio, pois tinha muito definido em sua cabeça de onde vinha e para onde ia. ‘’Isso sim é sabedoria’’, definiu o diretor com seu sorriso cintilante característico.

Finalmente, gostaria de comentar ao documentário Anatoly Rybakov: A Hístoria Russa de Marina Goldovskaya, homenageada na Retrospectiva Internacional da 16ª edição do É Tudo Verdade.

A diretora também foi homenageada na 11ª conferência do documentário (ler mais no artigo anterior). O documentário acompanha o escritor Anatoly Rybakov durante vários anos na Rússia e também em Nova York. Ele resume a história de sua vida, e consequentemente a de seu país. Vítima dos expurgos políticos de Stalin, o escritor retrata a dor e o legado deixado pelo regime soviético, que reflete nas dificuldades políticas e econômicas que o país ultrapassa. Nesse documentário Goldovskaya mostra a marca principal que caracteriza sua obra: ela consegue extrair de um caso particular, um fato público.

Felipe Carrelli é graduado em Imagem e Som pela Universidade de São Carlos (felipecarrelli@gmail.com) e diretor de documentários, dentre eles Copa em Reflexo (2010) e Temporão (2010). 

Leia também a segunda parte da cobertura sobre o 16º Festival É Tudo Verdade – Oficina de Web Doc e 11ª Conferência Internacional do Documentário por Felipe Carrelli.    

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