As armadilhas da fortuna

Babel (idem), de Alejandro González Iñarritú (México/ EUA, 2006)

Filmar a crueldade

O grande escândalo é a realidade. A moral não se opõe à imoralidade, mas ao real. A moral é uma espécie de véu – rasgado – que se esfalfa em esconder as feridas do real. E a experiência de se deparar com o real é intrinsecamente cruel.

Eis aí uma paráfrase simplista do princípio de crueldade advogado pelo filósofo Clément Rosset. O artista que tome esse princípio a sério – e não é preciso que ele o conheça nesta formulação, mas apenas que o intua – inevitavelmente se questiona sobre como representar o que é intrinsecamente cruel ou doloroso.

Ao artista que se depara com esse dilema, fazer glamour às custas da miséria alheia, estetizar a pobreza e a desgraça, é a primeira via a ser rechaçada. A saída, em muitos filmes atuais, especialmente em países “subdesenvolvidos” ou “emergentes”, é recorrer ao brutalismo, à representação crua e hipermimética. Saída que não passa, costumeiramente, de um neo-realismo requentado, pseudo-revolta movida por um sadismo mal disfarçado, como se vê, por exemplo, nesse evangelho cambota da desgraça humana que é Amarelo manga (2003), de Cláudio Assis. Mas há ainda outra possibilidade, que se manifesta quando a assunção da crueldade inerente ao mundo desperta no cineasta a consciência de que os problemas estéticos são também problemas éticos. Quando isto ocorre, como filmar (questão técnica) é um dilema que não se separa de o que filmar (questão ética), como se vê neste Babel (Babel, 2006, México / EUA), fecho de uma trilogia dirigida pelo mexicano Alejandro Gonzales Iñarritú, com roteiro de Guillermo Arriaga e trilha sonora de Gustavo Santaolalla.

Fatalismo e incomunicabilidade

Desde Amores Brutos (2000), primeiro filme da trilogia, Iñarritú e seus colaboradores têm demonstrado uma clara vocação para uma concepção fatalista do destino humano. Eventos aparentemente desconexos ligam destinos de forma irrevogável, independentemente do querer humano. Em Babel, este fatalismo atinge uma dimensão cósmica, envolvendo pessoas de diferentes países e culturas, irmanados apenas pela miséria da condição humana, impotente diante de um Destino (com D maiúsculo) que se afirma. Porém, por trás desta plataforma cósmico-arquetípica, o filme de Iñarritú sonda os desencontros do mundo global e pós-moderno. Assim, além de ser um filme sobre o Destino, Babel é também um filme sobre a incomunicabilidade, tanto das nações (no plano macro) como das famílias (no plano micro).

México, Japão, EUA e Marrocos compõem esta paisagem desumana e árida em que se desenrola o drama cósmico de Babel. Um casal de turistas estadunidenses em crise, uma criança marroquina que atinge à bala, por um acaso, uma turista; um mexicano chabacano (de novo, o talento de Gael García), uma doméstica mexicana trabalhando clandestinamente nos EUA; uma japonezinha carente e lasciva, semi-segregada do mundo por ser surda-muda – esta a galeria de infortunados que compõem um mundo onde não se sabe falar o esperanto.

Mundo de choques e contrastes

Babel encena um mundo de choques, numa confusão de cores, sons e sentidos que nem sempre formam (e nem mesmo têm a intenção de formar) uma unidade coesa. Contrastes visuais abundam: o deserto de Marrocos / a modernidade de Tóquio, as festas mambembes dos mexicanos; a contida vivência do marroquino / as explosivas danças dos latino-americanos; o cinza do deserto / o colorido exagerado que beira o kitsch; abismos e montanhas em Marrocos / arranha-céus em Tóquio; o natural / o mecânico. Não há mitos arianistas nem estereótipos positivos em Babel: a alegria latina é tontería, irracionalismo compensatório de múltiplas formas de exploração e humilhação; a sabedoria oriental foi para o espaço, e a prudência também: se o mundo é a Babelândia, Tóquio é a sua capital.

O universo de Babel é o do excesso, do contraste de cores, de volume, de tomadas, de quebras intencionais de ritmo. Saímos de um deserto com cabras para uma agitada partida de vôlei. Saímos de gritos acutíssimos para a mudez de uma japonesa. Saímos de uma paisagem deserta e triste para um casamento popular e turbulento. A câmera em Babel move-se não para buscar o espetacular, o profundo – mas para representar cada lugar de um ponto de vista diferente. Verdade é que, por essa intenção, e por necessidade de economia de tempo, o diretor recorre inevitavelmente a estereótipos com que identificamos as nações que aparecem no filme; neste caso, porém, ao contrário do que boa parte da crítica enunciou, o valor do estereótipo é antes didático do que discriminativo. Não há qualquer intenção de identificar pejorativamente determinados povos, mas de apresentá-los com economia de meios.

Nesse sentido, Iñarritú mostra-se bastante cuidadoso na composição do ritmo e da duração das cenas. E ritmos e movimentos de câmera, como sabemos, são visões de mundo; em Babel, a câmera de Iñarritú é quem negocia e equaciona as diferenças que, no plano das relações familiares e das relações entre países, são inegociáveis. O ritmo da montagem é condizente com cada cultura: planos rápidos e estonteantes para representar a agitada vida do Japão (ocidentalizado e capitalista); pouco movimento de plano e pouca atividade rítmica da música para representar a vida rural do Marrocos.

Os contrastes que se repetem e se reforçam em nível de imagem podem também ser observados em nível de som. Vários são os contrastes sonoros (às vezes, chegam mesmo a irritar): o silêncio do Marrocos / as barulhentas boites de Tóquio; a mudez da japonesa Chieko / os excessos vocais dos soldados na fronteira do México; sons suaves de instrumentos de solo (monofonia) / bandas barulhentas (polifonia). O diretor e o compositor argentino Gustavo Santaolalla (vencedor do prêmio BAFTA e do “Oscar” pela trilha de Babel) optaram, na maior parte da obra, pelo uso da música diegética (isto é, da própria cena) com função espaço-temporal. Em outros termos: a música, incidental ou não, é quem localiza os países e etnias que nos são mostrados. Bandas latinas tocando cumbies, tex-mex, mariachis e boleros tradicionais como “Tu me acostumbraste” – identifica México; Uso do oud – instrumento oriental de cordas possuidor de sonoridade e técnica parecida com a do alaúde e do violão – identifica o Marrocos; o universo sonoro dos sintetizadores das boites ocidentais – aponta o Japão. Notemos que em tais associações o Japão possui uma localização musical atípica, possivelmente para mostrar como o processo de globalização tem modificado as referências etnomusicológicas deste país. De uma forma geral, percebemos que os instrumentos utilizados por Santaolalla possuem texturas, timbres e arranjos que estão em sintonia com o espírito de cada região. Interessante percebermos que tais instrumentos – o oud, as percussões latinas, os samplers de Tóquio – não se mesclam durante o filme, são incomunicáveis como as pessoas. Trata-se de uma instrumentação participativa que dialoga com a cênica da obra como um todo e que está para além de suas funções estritamente musicais. A reduzida quantidade de música extra-diegética (isto é, fora da cena) no filme procura dar uma “textura” e criar “temperaturas” diferentes para cada seqüência. O som, desta forma, abandona o antigo (mas nem tão antigo assim) paradigma de apenas ser um reforço da dimensão visual de cada cena. Há muitas seqüências tristes no filme, mas a música não é pleonástica, não transforma o triste em piegas. Antes contrasta, produz atmosferas.

A música de Babel ainda propõe novas associações audiovisuais, na medida em que quebra os velhos e cansados padrões: sax melodioso – cenas eróticas; flauta doce fazendo escalas – cena com crianças; golpes dissonantes de metais – cenas de suspense e terror, dentre outros. Tais recursos, de tanto repetidos, perderam boa parte de seu encanto. A trilha de Babel, ao contrário, causa desconcertos em nossos automatismos e constrói um discurso paralelo aos signos visuais (paralelo e, mesmo, concorrente, porém jamais inadequado).

As armadilhas da Fortuna

No discurso fílmico de Alejandro, como apontamos no início, o que representar e como representar são uma só indagação e, neste ponto, neste retorno ao dilema de forma-e-fundo, ele se distancia da tática denuncista do cinema latino-americano de tradição esquerdista. Na verdade, ao menos nesta grande trilogia, a maior inimiga de Iñarritú é Fortuna, a deusa onipotente, distribuidora dos bens e dos males, das alegrias e dos sofrimentos, das riquezas e das misérias, que, no entanto, fazia esta tarefa de olhos vendados. Trilogia do Acaso seria talvez o melhor título para esse conjunto de filmes que se fecha com Babel.

Caótico no desenvolvimento, Babel fecha-se com a sugestão de que nem tudo é babélico assim, pois que ainda pode haver, ao menos no núcleo familiar, uma tênue possibilidade de diálogo. Incoerência? Concessão ao público? Estas perguntas incomodam porque tudo em Babel se encaminhava para um fim trágico, até que um discreto deus ex-machina começa, no seu silêncio onipotente, a montar para nós um quebra-cabeça no qual vislumbramos talvez um sorriso, talvez mesmo um aperto de mão. Nesta manipulação flagrante do desfecho, é possível vislumbrarmos mais que um erro de roteiro: Alejandro, possivelmente, ainda crê nos homens. Sua postura não é, por exemplo, a de um iconoclasta cínico como Lars von Trier. Como muitos outros artistas de inclinação trágica, Alejandro cismou-se com as ironias da deusa Fortuna. A trilogia do acaso, Babel em especial, é muito mais que a ilustração da teoria do caos, como quis reduzi-lo parte da crítica; trata-se de uma leitura penetrante do mal-estar de nossa civilização.

O acaso, na ótica de Iñarritú, ao contrário do que diz a canção dos Titãs, não vai nos proteger: não conseguimos amar, não conseguimos mudar de postura, não conseguimos nos comunicar, em grande parte, porque, ironicamente, estamos sempre no lugar errado e na hora errada.

Alfredo Werney é músico, pesquisador e professor de Artes. Com Wanderson Lima, escreveu “Reencantamento do mundo: notas sobre cinema” (Teresina, Amálgama, 2008). Para ler outros textos desse autor, visite o blog STACCATO: alfredowerney.blogspot.com

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e editor da revista Desenredos (www.desenredos.com.br).

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