O Roteiro Cinematográfico: um ser em simbiose

Ana Johann*

Resumo

Este estudo surge de uma inquietação ao perceber que os estudos sobre a linguagem cinematográfica tendem à voltar-se para o filme finalizado, como se os elementos da linguagem  e invenção sempre nascessem da direção cinematográfica, do olhar da câmera em si e no filme pronto. Dai a dificuldade de encontrar uma possível arqueologia da estrutura narrativa, já que os livros de roteiro inclinam-se em grande parte para o ofício (a história) e não para pensar a estética e invenção que nascem ainda no roteiro.

Introdução à Simbiose

O presente estudo partiu de uma inquietação como roteirista, ao perceber que os estudos sobre a linguagem cinematográfica estão voltados na maioria das vezes para o filme finalizado, como se os elementos da linguagem sempre nascessem da direção cinematográfica, do olhar da câmera em si (decupagem de planos) no filme pronto. Dai a dificuldade até de encontrar uma possível arqueologia da estrutura narrativa, já que os livros de roteiro estão voltados em sua maioria para o ofício (história) e não para o pensar filosoficamente do roteiro. Se observarmos as bibliografias a respeito do cinema veremos que, na maioria das vezes, a estrutura narrativa é sempre usada como sinônimo da história que está sendo contada e não para os elementos constituintes da linguagem cinematográfica e estética que perpassa a obra. Este estudo não trata de diminuir a figura do diretor ou mesmo solicitar outro posto ao roteirista com igualdade de créditos, mas de olhar com mais cuidado um aspecto fundamental que é a estética e a linguagem que nascem ainda no roteiro e se concretizam no “como se conta uma história”. É sabido que o público em geral irá sempre ver e pensar o filme a partir do resultado final e apenas especialistas pensam no roteiro quando estão o vendo, porém o filme é resultado do conjunto do trabalho de vários profissionais; e o roteiro é o que dá origem ao filme. Como diria a máxima: “Um bom roteiro pode gerar um bom filme, mas um roteiro péssimo, jamais.”¹

“Assim, entre o roteiro propriamente dito, objeto último do relato, e a imagem bruta, se intercala uma etapa suplementar, um ‘transformador’ estético. O sentido não está na imagem, ele é a sombra projetada pela montagem, no plano da consciência do espectador. Resumindo: tanto pelo conteúdo plástico da imagem quanto pelos recursos da montagem, o cinema dispõe de todo um arsenal de procedimentos para impor aos espectadores sua interpretação do acontecimento representado.” (BAZIN, 1991, p. 68)

O cinema nasceu se apropriando de outras artes como o Teatro e a Literatura e aos poucos foi buscando sua especificidade e sendo assim se utilizou da dramaturgia destes, tanto que hoje temos teorias de direção, teoria de montagem, mas não temos uma teoria de roteiro propriamente dita, temos manuais e livros que ensinam a estrutura e o fazer de um roteiro. André Bazin reconhece que há um “transformador” estético que perpassa por várias etapas de um filme. E conhecendo os passos de produção de um filme (Pré-produção, Produção, Pós-produção) é o roteiro que norteia todas elas.  Para quem trabalha no meio cinematográfico sabe que dificilmente pode-se inverter uma cena na montagem sem mudar o sentido da obra, principalmente em filmes de ficção mais autorais, onde a mise en scène é mais elaborada, com planos mais abertos, sem uso de muitos planos para decupar uma cena. Sendo assim, as cenas dispostas num filme pronto estão, na maioria das vezes, ordenadas assim no roteiro. E podemos relacionar o roteiro tanto a ‘montagem de atrações’ pregada pelo cineasta e teórico russo Sergei Eisenstein, onde o choque entre as cenas geravam o significado; ou na teoria de André Bazin na qual o autor enfatizava o que acontecia no interior da cena, “O plano-sequência, as relações contidas simultaneamente numa mesma imagem, os movimentos de câmera e a exploração de um espaço que se abre continuamente revelam o essencial.” (XAVIER, 2005, p. 81). Mas assim como o roteiro, a montagem é uma linha invisível para os espectadores. Kulechov vai construir uma teoria da narração baseada na montagem, no critério de continuidade e Pudovkin vai se aprofundar nestas teorias.

“É dai que parte sua ideia de tema, a seu ver o ponto de partida fundamental para a construção do roteiro, base para a realização do filme. A clássica divisão – tema/ tratamento (anotações, desenvolvimento das ações, estudo das personagens) /roteiro tem sua primeira formulação explícita logo nas primeiras páginas do seu livro (Pudovkin). E este, em grande parte, consiste numa teoria detalhada do roteiro, onde ele defende a ideia de um planejamento da decupagem e de todos os detalhes da filmagem. Tal planejamento é fundamental porque o critério necessário para a construção de cada detalhe, para a concepção de cada cena, de cada plano, só pode vir daquela ideia de origem, previamente existente na consciência – o tema.” (XAVIER, 2005, p.53, grifo nosso).

Pudovkin foi um dos primeiros realizadores e teóricos a enfatizar o uso do roteiro e, por isso remetendo ao título deste artigo, o estudo se apropria do termo simbiose para dizer que o roteiro é um ser imbuído dela, e para discutir a estética que nasce no roteiro, é necessário, ainda que rapidamente, pensar nos papeis que envolvem o roteiro, o roteirista e todos seus componentes. Simbiose é uma inter-relação de forma intima entre organismos que se torna obrigatória e mutuamente vantajosa por esta associação. Por exemplo, os cnidários (animais aquáticos) que alojam algas nos seus tentáculos e procuram nadar próximos à superfície da água para que as algas possam usar a luz para efetuar a fotossíntese.  Fazendo uma analogia, o roteiro seria um cnidário que aloja potências de imagens e símbolos e os leva até a superfície para que possam ganhar vida através da direção cinematográfica e fazerem então a fotossíntese: o filme – a obra de arte, ou não em alguns casos, quando as intenções do autor não se concretizam na direção cinematográfica. É dessa potência de criação que me detenho ao longo deste artigo.   A história do roteirista A história do cinema mostra que, no decorrer da sua trajetória, ele foi arregimentando elementos e profissionais. No início, por questões técnicas e de linguagem, o cinema era mudo e organizado por produtores e diretores. Mas foi em 1930 com o surgimento do som e, consequentemente, do diálogo, que o cinema toma outras proporções. As produções se tornam maiores exigindo mais profissionais e locações, e então surge a ideia de chamar escritores famosos para escreverem as histórias dos filmes, a princípio como uma forma de trazer boas narrativas e organizar a produção, surgindo assim a função do roteirista no cinema. Inicialmente os roteiristas de cinema eram escritores que trouxeram junto com eles todo o conhecimento da dramaturgia da literatura e do teatro para se aplicar ao cinema. A narrativa no cinema clássico de Hollywood, entre 1917 e 1960, irá seguir um modelo de roteiro que apresenta padrões de personagens definidos, empenhados em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos. “Nesta busca, os personagens entram em conflito com outros personagens ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota decisivas, a resolução do problema e a clara consecução ou não consecução dos objetivos.” (DAVID BORDWELL 2005, p. 279). Passado um pouco menos de um século, ainda impera, na maioria dos filmes, este modelo de roteiro. Mas entrando neste terreno, de que o roteiro espelha a literatura, vamos especificar melhor de que potências ou elementos estes se alimentam. Tanto o escritor quanto o dramaturgo trabalham as potencialidades da palavra como geradoras de imagem e imaginário. É a palavra que conduz a narrativa e proporciona o tempo e espaço e os próprios diálogos. Na literatura, ainda mais que o teatro, as pessoas são convidadas a imaginar os personagens e as cenas com o percurso dado pelo escritor. A palavra é que ordena o tempo e o espaço e dá vida as situações como exemplifica Ismail Xavier.

(…) o conjunto de planos se insere dentro de um filme cujos objetivos estão ancorados à narração de uma estória, o que implica na incorporação de convenções narrativas e dramáticas não exclusivas ao cinema. Na sua organização geral, o espaço-tempo construído pelas imagens e sons estará obedecendo às leis que regulam modalidades narrativas que podem ser encontradas no cinema ou na literatura. A seleção e disposição dos fatos, o conjunto de procedimentos usados para unir uma situação a outra, as elipses, a manipulação das fontes de informação, todas estas são tarefas comuns ao escritor e ao cineasta. (XAVIER, 2005, p.32)

Se percorrermos rapidamente a história das artes, percebemos que foi a fotografia fez com que as artes plásticas fosse reinventada, porque até o nascimento da fotografia as artes plásticas estavam focadas no realismo e em retratos de pessoas e paisagens. Com a invenção da fotografia os artistas perceberam que isto a fotografia poderia fazer muito bem e que eles então poderiam fazer outras experiências. Isso aconteceu também com o teatro e o cinema. O cinema fez o teatro se reinventar, desobrigando-o de contar uma história. Hoje o teatro contemporâneo vive um momento efusivo de descobrir novas formas e estéticas, como referência ao teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehmann. Sendo assim, pode-se refletir sobre a figura do roteirista no cinema, este profissional que começa como escritor que vem da literatura e do teatro, e ao longo do século, assim como o próprio cinema, também vai se construindo.  Penso que para pensar no roteiro tenho que pensar na história do roteirista, como ele foi se construindo como profissional e vice-versa, tenho que pensar no papel no roteiro para pensar o roteirista. E se concordamos que a estrutura narrativa na literatura se dá pela palavra e no teatro também, de que se alimenta o roteirista ou do que deveria se alimentar? Do espelho da literatura e do teatro com a palavra ou do cerne das cenas, da construção, da potência de elementos inventivos que estão presente aos olhos de quem vê a tela, a potência de imagem? O teórico e também roteirista Jean-Claude Carrière diz que o roteiro pode ser comparado com uma ferramenta da alquimia, uma passagem, uma transformação.

“Todos aqueles que, sobre um tablado, em um estúdio, participam desta transformação muito lenta, muito difícil, tão árdua quanto a busca da pedra filosofal – seja ele o último estagiário que traz os sanduíches ou o ‘mestre da obra’ – são os operários deste ato de feitiçaria. Eles trabalham neste antro, neste cadinho mágico que é o cinema, que irá transformar um ‘objeto’ escrito em ‘coisa’ filmada. O roteiro é principalmente isso,  o instrumento de uma passagem, uma etapa crisálida. Se tivesse que definir o roteiro, é o que eu poderia dizer… Um texto portador de um outro estado…Palavras geradoras de imagens e sons.” (CARRIÈRE, 1983)²

O roteirista seria, assim, um ser que pode contar uma estória, mas antes de tudo é um criador de sentidos através de textos, imagens e sons, que se refletem em cada cena do filme e que ao final este acúmulo de cenas organizadas pela montagem, também inspirada no roteiro, irá ter outro sentido; ou ainda em um cinema contemporâneo e particular de alguns diretores, cada cena se esvairá em si, múltipla de significados.

Volto ao cnidário, neste ser que dá vida a outros, como sendo o roteiro e o roteirista um escultor que esculpi uma pedra como um ato de descobrimento, de encontrar o que há dentro da pedra e não ao contrário. Parafraseando o roteirista Guillermo Arriaga, “por que escrever é um ato de descobrimento e não um ato de conhecimento”. (ARRIAGA, 2013, informação verbal).³

Conta-se que, no início do cinema, os irmãos Lumière projetavam uma cena de uma criança sendo alimentada por babás, serviçais numa mesa bem servida e com muitas pessoas ao redor; George Méliès foi convidado para assistir a cena, mas ele não prestou a atenção no que era mais evidente e sim ao canto da cena, em algumas folhas que se mexiam, e foi nisso que se inspirou para buscar o seu estilo. Como Mèlies, gostaria de trazer à tona estas folhas, que quase saem à margem e passam despercebidas – a estética que nasce no roteiro.

O roteiro e o roteirista já passaram várias crises ao longo do século, muitos roteiristas pleitearem a igualdade de créditos com o diretor. Em 2007 uma greve de roteiristas em Hollywood que durou cem dias, quando até premiações como o Globo de Ouro e o Grammy foram afetados, algumas séries canceladas e filmes adiados. O que eles solicitavam era que a distribuição dos lucros dos grandes estúdios fosse feita de maneira mais justa. Ao final, conseguiram alguns benefícios relacionados a repartição dos lucros.  Hoje há um movimento nos Estados Unidos de roteiristas migrando para a TV, em séries onde eles tem mais liberdade de criação porque podem contratar diretores e atores para a série. E, no entanto, serem executivos de suas criações.

Nos Estados Unidos existe um mercado onde se exige roteiristas e estes roteirizam para grandes estúdios e diretores. No Brasil ainda há um mercado em formação, porque os roteiristas, na maioria das vezes, dividem o tempo entre várias atividades, não apenas direcionada ao roteiro. Geralmente o diretor é o próprio roteirista e isto está relacionado também ao baixo orçamento dos filmes.  O lado positivo é que hoje já existem várias escolas de cinema em todo o Brasil e isso ajuda a profissionalizar o mercado. Estas ações são muito pequenas tendo em vista toda a lacuna que existe de formação, seja profissionalizante ou mesmo mais avançada de roteiristas.

 

A Potência do Roteiro

Conforme apontado inicialmente, o que temos são livros voltados para o ofício e para história, na maioria das vezes importados e constituintes de uma narrativa clássica hollywoodiana, que se espelha em um modelo, dogmas e não propriamente na invenção. O objetivo dos livros está mais focado em saber contar uma história e estrutura-la em roteiro, do que para pensar a estética e seus desdobramentos. Por exemplo no filme Avatar (2009, James Cameron), se analisarmos o roteiro veremos que ele segue padrões observados por Bordwell, personagens com objetivos claros empenhados em resolver conflitos. Neste caso a invenção está voltada para a tecnologia, quando Cameron mistura ação livre e animação e o filme é exibido em 3D, mas em termos de invenção na narrativa não há nenhuma.

Se o filme pronto seria o olhar do diretor, o roteiro seria a visão de mundo do roteirista e não podemos esquecer que a fundamentação deste cinema clássico está voltado para o cinema do espetáculo, que perpassa pela ideologia do espetáculo conforme aponta Xavier.

“Porque os inúmeros livros escritos nos Estados Unidos, desde o período da Primeira Guerra, dedicados a expor com clareza as boas regras para a confecção do roteiro, dentro dos princípios aqui comentados, testemunharam em sentido contrário. Estes verdadeiros manuais de boa continuidade, da estória adequada, da boa interpretação ou da boa construção dramática, podem não ter sido escritos por figuras de porte intelectual e presença cultural dos seus contemporâneos europeus; mas, constituem uma compilação significativa que documenta muito bem o quanto toda a ideologia do espetáculo e da fábrica de sonhos não ficou apenas em estado prático nos filmes.” (XAVIER, 2005, p.45)

As discussões em torno da análise do filme finalizado e do roteiro se espelham, uma vez que ambos se nutrem de elementos estéticos. Assim me ocupo das teorias de Ismail Xavier, sobre cinema da transparência e da opacidade, para refletir sobre este tema. Uma das hipóteses é que no cinema da transparência o roteiro já é escrito para ter um sentido claro, não tendo muito espaço para a criação e deixando a estética para a decupagem do diretor. Em contrapartida, no cinema da opacidade, que vai contra as regras dos manuais,  a estética já está entranhada desde a sua concepção no roteiro, que não é só algo que surge da direção no set de gravação. No entanto, no cinema autoral, a maioria das vezes o diretor é também o roteirista ou co-roteirista. Sendo assim, do ponto de vista da criação, seria possível um roteirista criar uma estética potente e ao ceder para outra pessoa dirigir sua obra, tal estética permanecer? Ou a visão do roteirista, que se passa pela estética, ao roteiro ser dirigido por outra pessoa, diluiria e ficaria quase transparente? Sendo os livros de ofício escritos direcionados para a transparência cinematográfica, estes tenderiam à contaminar o olhar de muitos  roteiristas?

Pelos estudos de Xavier, podemos observar sobre o que os teóricos de cinema sempre se debruçaram.

“Os teóricos do cinema, interessados em definir os passos decisivos da evolução da ‘linguagem cinematográfica’ tiveram sempre tendência a dar uma importância decisiva ao que passava atrás das câmeras. O que implica em, frente aos filmes deste período, dar mais importância à identidade de estilo no comportamento da câmera do que às diferenças que poderiam advir da oposição exterior-interior em termos de configuração espacial”. (XAVIER, 2005, p.28-29)

O estilo que nasce no roteiro passou despercebido na maioria das vezes e hoje é muito difícil de recuperar, uma vez que para fazer uma arqueologia do roteiro seria necessário ir às fontes, aos roteiros escritos desde o início do cinema. Sendo assim, vemos as teorias voltadas para a montagem, para a direção e o roteiro se ocupando apenas da estória. Por exemplo, quando foi inaugurada a montagem paralela,  onde a alternância entre cenas formam um novo significado para o espectador. Este elemento criado por Griffith é remetida apenas a direção cinematográfica. Hoje percebemos que a montagem paralela pode ser sim atribuída ao roteiro, uma vez que o roteiro indica toda a sequência das cenas, “(…) também aqui a motivação inicial para o corte vem de uma necessidade da narração e, por sua vez, a visualização explícita dos acontecimentos só é possível graças ao recurso da montagem.” (XAVIER, 2005, p. 29-30). Como o roteirista, Guillermo Arriaga, em seus filmes como Amores Perros (Alejandro González Iñárritu , 2000), 21 Gramas (Alejandro González Iñárritu, 2003) e  Babel (Alejandro González Iñárritu, 2006), começou a descentralizar o filme de uma figura de protagonista e a dar ênfase a vidas e personagens que se interrelacionam.  Muito da linguagem feita pelo diretor vem da necessidade narrativa. “O que é mais importante para mim aqui, não é o fator cronológico, mas a constatação básica de que o uso do primeiro plano deu-se em função de uma necessidade denotativa – dar uma informação indispensável para o andamento da narrativa.” (XAVIER, 2005, p. 31)

Jean-Claude Carrière conta que hoje em dia já desapareceu o formato de roteiro no qual o roteirista indicava o tipo de plano, de lente com muitas informações técnicas, porém subjetivamente na maneira de se escrever, muita coisa é indicada.

“Mas permanece na escrita de um roteiro uma certa maneira de indicar o que eu chamo de uma decoupage inconsciente ou subterrânea. O simples fato de iniciar novo parágrafo evidencia isso. O conteúdo das frases também. Se digo ‘uns trinta estudantes estão reunidos em uma sala com poltronas negras da escola de cinema’, isso implica, sem necessidade de maiores especificações, uma panorâmica. Se escrevo ‘na primeira fila, uma estudante morena com cabemos curtos toma notas com uma caneta azul’, isso indica automaticamente um close’.” (CARRIÈRE, 1983).

Mesmo o roteirista escrevendo inconscientemente os planos como aponta Carrière, a decupagem dos planos seria da ordem do diretor cinematográfico, a não ser que o contexto do roteiro solicite em seu cerne certo tipo de plano, como é o caso do filme Elephant (2003), dirigido e escrito por Gus Van Sant, onde cada tomada de câmera feita por uma steadycan se configura como o ponto de vista de cada personagem. Gus Van Sant volta sempre a câmera para o  mesmo espaço e continua com outro personagem a partir dali e isso se configura num sentido profundo para o filme.

Fora esta, e algumas outras exceções, nos ateríamos aqui sim ao que Eisenstein chamou de ‘montagem de atrações’, ao choque das cenas e os significados, mas, ainda mais profundamente ao que acontece e direciona o cerne das cenas, símbolos mínimos ou máximos que norteiam o olhar de quem assiste mesmo que de uma maneira muito tênue e entranhado no roteiro. Para Pudovkin:

“O escritor expressa a sua visão de mundo selecionando e combinando palavras num certo estilo; o cineasta, realizando as mesmas operações com imagens. E o estilo deste define-se pela maneira como ele trabalha o material plástico do cinema conferindo unidade aos planos separados e agindo de modo claro sobre a consciência do expectador: emocionalmente pelo ritmo controlado das imagens e pela pulsação dos próprios episódios mostrados; ideologicamente, pela força conotativa de seus enquadramentos e pelo poder de inferência contido na sua montagem.”  (XAVIER, 2005, p. 53-54)

A estética proposta por Siegfried Kracauer e escrita no seu livro Theory of film constitui um exemplo de visão fragmentária e na recusa de um sentido definidor ao desenvolvimento dos fatos. Kracauer cita Alfred Whitehead, que uma reeducação pela estética. “A arte, como lugar privilegiado desta apreensão estética (sensível) das coisas, significaria a garantia de que a sensibilidade humana não estaria condenada à morte. (XAVIER, 2005, p. 69). Em suma a proposta de Kracauer implica na incompatibilidade de representação do mundo como totalidade organizada. Como por exemplo, o estilo de Godard que subverte as regras da decupagem clássica e as leis do equilíbrio da narrativa.

Maya Deren, em 1960 vai dizer que o cinema deve criar outra experiência oriunda da sua própria natureza.

“Deve renunciar às disciplinas narrativas que emprestou da literatura e sua tímida imitação da lógica causal dos enredos narrativos. (….) Pelo contrário, deve desenvolver o vocabulário de imagens fílmicas e amadurecer a sintaxe de técnicas fílmicas que as relaciona. Deve determinar as disciplinas inerentes ao meio, descobrir seus próprios modos estruturais, explorar os novos campos e dimensões acessíveis a ele e assim enriquecer artisticamente nossa cultura, como a ciência o fez em seu próprio domínio.“ (DEREN, 1960, p.16)

Podemos notar ainda o predomínio de uma dramaturgia baseada ainda em A Poética, de Aristóteles, com regras para o bom funcionamento, mas que também ao longo do século buscou sua especificidade.

 

Considerações Finais – A Invenção

Como percebemos as teorias de cinema não dão conta do que é o roteiro no cerne de toda a obra. Isso se deve em parte pela própria história do roteiro, que começa utilizando elementos de dramaturgia em geral e também da importância que se dá ao roteiro e ao roteirista, ainda persiste a ideia que seria o diretor o responsável pela plasticidade do filme.

O rompimento do modelo clássico, ou seja, o da opacidade cunhado por Xavier, se dá contra as convenções, rompendo mecanismos de identificação e isso pode se ver claramente no roteiro do ‘espetáculo’ que ao contrário disso está engessado na organicidade dramática, em contar uma estória dentro dos cânones.       Em 1989, Christopher Vogler, baseado no livro O herói de mil faces, de Joseph Campbell, redigiu e fez circular um memorando interno intitulado Guia prático para o herói de mil faces, no qual identificava um modelo específico de estrutura narrativa bem sucedida e propunha aos roteiristas que se baseassem neste memorial para criar estórias bem sucedidas de bilheteria. Na década seguinte, o memorando foi publicado como a Jornada do escritor e chamou atenção de Hollywood como uma formula rígida e garantia de se fazer sucesso. Em 1979, Syd Field lançou Manual do roteiro, livro muito utilizado por vários roteiristas do mundo inteiro. Já o cinema da opacidade até pode utilizar de algumas ferramentas que estão prescritas nestes manuais e também no inconsciente coletivo, uma vez que Campbell no seu livro explica como os mitos e histórias apenas mudam de face em algumas culturas e com o passar dos anos, mas continuam sendo as mesmas. Sendo assim, os contadores de histórias e roteiristas, podem até ter esses mitos internalizados ou mesmo se basear em guias do ofício, mas não os usando como uma fórmula.    Ao contrário, diluem-nas de tal modo que no primeiro momento em que vemos o filme, parece se tratar de outra estrutura, como é o caso do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eterno Sunshine of the spotless mind, 2004), de Charlie Kaufman, mas, analisando profundamente,  percebemos que existe uma estrutura de conflitos e pontos de viradas, mas isto apenas ao fundo, como uma base, porque na superfície se mostra a invenção e o olhar do roteiro em primeiro plano. A arte no seu princípio não pensa em regras rígidas porque estas vão contra a invenção, “a imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo; mas com o objetivo de significar algo.” (XAVIER, 2005, p.67).

Penso que depois de um século de cinema já carregamos muitos repertórios consolidados em questão de estrutura fílmica e estamos vivendo um momento onde o audiovisual é muito visto e utilizado por diversas pessoas, como os aparelhos de celulares que tiram fotos e fazem vídeos. Sendo assim podemos nos debruçar sobre outros aspectos e particularidades de um filme, como a invenção e linguagem que nascem no roteiro e que devem ser potencializadas por este.

*Ana Johann é mestranda em Comunicação e Linguagem na Universidade Tuiti do Paraná. Tem especialização em Leitura de Múltiplas Linguagens pela PUC-PR e especialização em Documentário na Universidade de Barcelona.  É professora de roteiro e realizadora.  Como diretora e roteirista tem em sua filmografia os filmes De tempos em tempos, Um filme para Dirceu e Notícias da Rainha, que  passaram  por vários festivais no Brasil e exterior.

BIBLIOGRAFIA

BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliente, 1991.

BORDWELL D. O Cinema Clássico Hollywoodiano: normas e princípios narrativos. IN RAMOS F. P (Org); Teoria Contemporânea do Cinema: Documentário e Narratividade Ficcional Vol. II. São Paulo: Editora SENAC, 2005.

CARRIÈRE, J.C. Site Roteiro de Cinema. Disponível em: http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/reflexoesdeumroteirista.htm . Acesso em: 27/05/13.

MAYA DEREN. Cinema: o uso criativo da realidade. Boston, Massachussetts: Daedallus – Journal of the American Academy of Arts and Sciences. 1960. Traduzido por José Gatti e Maria Cristina Mendes.

MASCARELLO F (Org). História do Cinema Mundial. São Paulo: Editora Papirus, 2006.

XAVIER, I. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2005.

 

¹ Autor desconhecido.

² O presente texto é a transcrição parcial de um seminário ministrado por Jean-Claude Carrière no Ateliers des arts em março de 1983, traduzido por Ignácio Dotto Neto.

³  Durante o evento Ficção Viva em Curitiba e workshop proferido por Guillermo Arriaga, ele falou sobre isso.

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