Messiah of Evil (Willard Huyck e Gloria Katz, 1973)

André Renato*

Quais são as fronteiras entre os filmes “B” e os filmes “Cult”? Uma fita como Messiah of Evil (EUA, 1973) poderia tanto ser exibida – pensando no circuito da cidade de São Paulo – em grindhouses como os velhos Cines Paris e Dom José (do centro dito “decadente”), quanto nas sofisticadas salas do cinema “de autor” na região da Av. Paulista: Cine Belas Artes (que não existe mais), Reserva Cultural…

Cartaz americano do filme "Messiah of Evil"

O fato é que dificilmente se imaginaria que pudesse existir na face deste planeta uma película norte-americana de zumbis inspirada pelo cinema europeu dos anos 50 e 60, com seus personagens de belos rostinhos blasé, languidamente sonambulando em inconseqüente solilóquio por paisagens etéreas, tudo numa irresolúvel (e altamente sensual) crise de existência. As vítimas, aqui, são mais “mortos-vivos” do que os seus algozes. Em essência, nada do que já não se tenha visto em Antonioni, Bergman, Godard… De fato, inimaginável. Tanto é que Messiah of Evil é um filme bastante raro de ser encontrado, apesar da recente e primorosa edição em DVD lançada nos EUA. No Brasil, houve um obscuríssimo lançamento em VHS, intitulado “Zumbís do Mal” – com o fálico acento agudo mesmo (!). Mas vamos à história.

O filme é uma produção de baixo orçamento rodada em 1971 e que foi carregando, ao longo dos anos, a cruz de diversas mutilações em seu formato e péssimas distribuições (incluindo mudanças absurdas de título, como “The Second Coming” e “Dead People”), não logrando escapar de um relativo anonimato. A sorte dos filmes e dos livros é algo que nunca cessa de nos fascinar – ou fazer lamentar. De qualquer maneira, Messiah of Evil foi escrito e dirigido pelo casal Willard Huyck e Gloria Katz, que mais tarde também assinariam o roteiro de Loucuras de Verão (“American Graffiti”, 1973), de George Lucas; e Indiana Jones e O Templo da Perdição (“Indiana Jones and The Temple of Doom”, 1984), de Steven Spielberg. Ah, aquelas empreitadas audaciosas e (ou) vergonhosas da nossa juventude.

Cena do Filme "Messiah of Evil"

Na equipe, também seriam futuramente ilustres o “production designer” Jack Fisk (que viria a colaborar com David Lynch e Terrence Malick) e Walter Hill, este em breve mas impagável ponta. A história acompanha a jovem Arletty (referência ao antigo diretor de cinema francês, Marcel Carné?), que parte para uma cidadezinha na costa da Califórnia em busca do pai artista plástico, que deixara de dar notícias.

Chegando lá, ela descobre que o progenitor desaparecera. Na investigação, junta-se a um trio de amantes jovens e vagabundos (algo bem da nouvelle vague). O ménage é composto por Thom (Michael Greer), um dândi aparentemente disposto a ajudar a protagonista em sua busca; Laura (Anitra Ford), com jeitão de femme fatale; e Toni (Joy Bang), a “lolita” do grupo. Descobre-se, então, uma espécie de culto satânico que está tomando conta da região. E os “zumbís” fabricados por esta seita estão mais para os mutantes fanáticos de A Última Esperança da Terra (“The Omega Man”, 1971, com Charlton Heston) do que para os sonâmbulos acéfalos de George A. Romero. Agora, o toque especial que abre e fecha o filme, compondo um ciclo. Todos os acontecimentos são narrados por Arletty em flashback, trancafiada que se encontra num manicômio – e irremediavelmente desacreditada.

Cena do filme "Messiah of Evil"

Quaisquer semelhanças com o seminal  O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1919), de Robert Weini, seriam só meras coincidências? O tom confessional da narrativa também não deixa de lembrar A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968), de Bergman. Expressionismo alemão, diretores suecos… Não são referências muito “cabeça” para uma fita típica do exploitation dos anos 70? Não obstante, ainda tem mais, pois estamos falando aqui de um filme de cunho subjetivista, afinal de contas. Em matéria publicada na Film Comment de maio / junho do ano passado, revela-se que a influência de Antonioni é admitida pelos próprios diretores / roteiristas de Messiah of Evil. Em comparação, o articulista cita a cena de A Aventura (1960), do cineasta italiano, em que a personagem de Mônica Vitti se vê assediada e perseguida por um grupo de lânguidas figuras masculinas.

Cena do Filme "Messiah of Evil"

Com isso, vemos que o “terror” de Messiah of Evil assusta mais pela atmosfera de estranhamento e sugestões surrealistas de algumas cenas do que pelo gore propriamente dito. Está mais para David Lynch do que para George Romero. A frase final da protagonista, quase um balbucio, resume o filme como um todo: “each of us dying slowly in the prison of our minds”*. Horror. Com classe.

*(Nota do editor: “cada um de nós lentamente morrendo dentro da prisão de nossas mentes”)

André Renato* é professor no Ensino Médio (língua portuguesa, literatura e redação), fotógrafo e cinegrafista. Colabora com a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog Sombras Elétricas (www.sombras-eletricas.blogspot.com), nos quais escreve sobre cinema.

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