João Paulo Capelotti *
Uma criada questiona sua senhora se devem ser limpas as janelas do estúdio de pintura. “É que pode mudar a luz”, justifica Griet (Scarlett Johansson), moça do interior recém-chegada à cidade e convertida em arrimo de família após a doença do pai. A patroa (Essie Davies) é a esposa do pintor Johannes Vermeer (Colin Firth), mestre na arte da luz e da sombra, perfeccionista a ponto de poder fazer se imaginar a textura do pano retratado em sua tela. Não demora a que o artista e a empregada, convivendo sob o mesmo teto, reconheçam um no outro o amor à arte, à estética, ao belo, e ao ofício de produzi-los.
Mas sensibilidade artística não era exatamente o que se encontrava na Holanda do século XVII. Em primeiro lugar, havia a questão das castas: a arte era para os ricos que a patrocinavam, como o asqueroso mecenas Van Ruijven (Tom Wilkinson). Em segundo, a questão do sexo: a pintura, a escultura, a poesia, eram tarefas reservadas aos homens. O apreço que Griet demonstra pela arte não parece compreendido por nenhuma das mulheres ao redor. Apenas Mestre Vermeer entende. Lançada, assim, a semente para uma paixão velada, e para o conflito que a escritora Tracy Chevalier imaginou como origem para o famoso quadro Moça com Brinco de Pérola, adaptado para o cinema por Peter Webber no ano de 2003 a partir do roteiro de Olivia Hetreed.
A possibilidade de que uma criada de Vermeer lhe tenha servido de modelo não é descabida. O pintor é conhecido justamente por retratar cenas domésticas. O que se constrói a partir dessa suposição, porém, se mostra notável justamente por sua competência e verossimilhança histórica.
A tensão romântica entre Vermeer e Griet jamais é concretizada – não se pode esquecer o conservadorismo dos puritanos holandeses de então. Trata-se, portanto, de um dos raríssimos filmes de época que respeitam de verdade o tempo no qual estão inseridos. Ao contrário do que é comum hoje, não se transporta uma história de amor dos nossos dias para um período histórico remoto. Não há fugas impossíveis, arroubos heróicos, ou, o que é pior, a mensagem subliminar mas muito explícita de que, em vários aspectos, aquela mentalidade seria superada séculos mais tarde.
Isto não significa, porém, que não exista tensão entre os protagonistas, mas, simplesmente, que ela se demonstra apenas da maneira como poderia ser demonstrada: por olhares, pequenos gestos, esbarrões, um apertar de lábios, até desembocar na majestosa cena – recheada de metáforas – na qual Vermeer fura a orelha de sua modelo para colocar o brinco de pérola, o ponto de luz necessário ao equilíbrio da composição.
Mas Moça com Brinco de Pérola não é só um belo “filme de época” e um romance convincente. Se Vermeer e Griet reconhecem um no outro a vocação para a arte por meio do uso apurado dos sentidos, parece-me que é justamente o convite a que façamos o mesmo, absorvendo o filme em seus aspectos sensoriais, o meio pelo qual entenderemos o significado que o quadro, e sua elaboração, tiveram para os personagens centrais.
O convite ao nosso paladar, além dos suntuosos banquetes oferecidos ao mecenas de Vermeer, vem desde a primeira cena, na qual Griet revela, na simétrica disposição da comida, seu senso estético apurado. O olfato vem presente tanto nas fumegantes panelas de bronze da cozinha, como na feira onde Griet é cortejada pelo filho do açougueiro (Cillian Murphy). O contato físico, sutil, entre Vermeer e Griet é determinante ao relacionamento dos personagens. O som dos sinos de Delft repicando é logo acompanhado pela belíssima trilha sonora de Alexandre Desplat.
Mas é, obviamente, a visão o grande sentido privilegiado no filme, que, afinal, trata de pintura. É admirando as nuvens, e percebendo que elas não são só brancas, mas também cinzas, azuis e amarelas, que Griet começará a reconhecer dentro si alguma sensibilidade artística. A justificar a luz e a sombra como tema preferido de Vermeer, a própria direção de arte e ótima fotografia de Eduardo Serra transportam para a tela este jogo, transformando o próprio filme em algo similar às pinturas do artista.
Talvez, por isso, Moça com Brinco de Pérola se preocupe tanto com o apelo sensorial causado por cada frame seu, uma vez que seu tema é, precisamente, o retrato de pessoas conectadas pelo uso dos sentidos. Mais do que explicar essa relação entre os personagens, o apuro estético parece funcionar também como convite para que façamos o mesmo. Torna-se, assim, uma bela homenagem à arte, de tal modo que a própria homenagem é, ela mesma, uma obra de arte.
*João Paulo Capelotti é graduado em Direito pela UNESP/Franca e mestrando em Direito das Relações Sociais na UFPR.
Adoreeeii a história do filme! Os personagens,sobre o que fala,o objetivo do autor em passar para as pessoas a arte do dia-a-dia. Fazer com que as pessoas comecem a ver e valorizar as coisas mais simples e mais bonitas que há em seu cotidiano e em sua vida.