Alvaro André Zeini Cruz*
“Bruna Surfistinha” e “Falsa Loura”: Cinderelas do Brasil
Em “Falsa Loura”, Carlos Reichenbach conta a história de Silmara, operária da periferia paulistana, cuja alta autoestima é uma qualidade aparente. Interpretada por Rosanne Mulholland, ela é uma das poucas figuras femininas hipnóticas do cinema nacional recente: esbanja sensualidade, simpatia e certa esperteza suburbana, enquanto guarda em segredo a ingenuidade de quem espera encontrar seu príncipe encantado, algo que jamais se concretiza. Isso porque Reichenbach subverte o conto de fadas: em seu âmago, Silmara está certa de que é Cinderela; o filme, no entanto, se constrói para comprovar a vocação da moça para gata borralheira. É, justamente, o oposto do que se vê em “Bruna Surfistinha”.
Raquel Pacheco (ou Bruna) e Silmara, no entanto, começam em pontos equivalentes – a primeira é filha adotiva de um casal de classe média-alta; a outra, uma moradora da periferia, mas ambas vêm de um ambiente que, de alguma forma, lhes foi/é hostil. Os sentimentos turbulentos em torno da figura paterna – o pai de Bruna é de uma indiferença inexplicável; o de Silmara um ex-incendiário alcoólatra – também tornam-se um ponto de convergência entre elas. Por fim, ambas conhecem o poder de sedução que têm para com os homens, embora o usem de formas distintas, e por isso, as trajetórias até aqui semelhantes, passam aqui a se distinguir.
Pois Silmara esconde a mais arquetípica mocinha em busca do verdadeiro amor: o príncipe encantado que em “Falsa Loura” traduz-se no vocalista da banda ou no galã de televisão. Bruna não acredita em príncipes, ela inclusive afirma isso a certa altura. https://starsoffline.com/ Talvez porque a projeção que mais se aproxime dessa ideia de figura salvadora, esteja no pai, líder de um núcleo familiar que a acolheu de maneira física e material, mas não emocional (exceção da mãe). De qualquer forma, o filme lança isso tudo de forma bastante superficial, embora bem amarrada pelo roteiro. Adentramos um cotidiano familiar perceptivelmente incômodo, mas cujas razões somos incapazes de compreender (embora a voz over tente a todo custo explicar).
Do apartamento de classe média pouco acolhedor, vamos ao prostíbulo no coração da cidade – da qual pouco se vê. É o momento tônico de “Bruna Surfistinha”, pois pela primeira vez há a retratação de um cotidiano mais frouxo, natural, ainda que habitado por estereótipos (Drica Moraes faz o possível e impossível para humanizar a cafetina clichê, e o resultado acaba por ser positivo). Há um mínimo de inter-relação entre as personagens e os problemas por elas enfrentados, além de certa espacialização das internas, o que nos leva a alguma mise èn scène além dos quadros fechados, que voltam com força lá pelo desfecho do segundo ato, quando a “recuperação” da personagem enche de pudor o sexo/corpo, limitando Bruna à relação com o blog/computador. Tem-se aí uma questão problemática: num filme que trata do corpo como uma potencial ferramenta para o dinheiro/sucesso, é o rosto que ganha destaque, numa encenação típica do cinema da Globo Filmes (que têm raiz, caule, folhas e frutos calcados na teledramaturgia). O corpo têm alguma importância no início, algo que se estende até o momento do prostíbulo, para logo depois perder espaço em definitivo, com um estrangulamento da mise èn scène na redenção da personagem. Os closes aliados a uma voz over, que já não faz cerimônia na hora de colocar as asserções que bem entender em primeira pessoa, são responsáveis pela moralização de uma personagem que era muito mais complexa ao afirmar que só deixaria a prostituição quando não a desejassem mais. Quando o vício se torna uma força motriz, a personagem se planifica e, de certa forma, Bruna Surfistinha se sacrifica em prol de Raquel Pacheco, pois estamos próximos do desfecho.
Essa fixação que o filme nutre pela própria protagonista torna-se estimulante a princípio, mas limitadora em vários sentidos. O temor por um não restabelecimento de Bruna perante o público faz com que o sexo, e consequentemente tópicos como sexualidade e sensualidade, sejam tratados com excessiva precaução, numa trama em que deveriam estar intrínsecos à personagem, ao protagonismo. O sexo, no entanto, chega a ser desimportante a ponto de elaborar-se em sumários narrativos. Assim, pode-se dizer que Surfistinha personifica, mas também sufoca, seu tema e universo, algo que se reflete de forma visível na encenação e na devoção que o filme tem para protegê-la, não contra um universo diegético, mas contra nós, espectadores.
Esse “bom-mocismo”, no entanto, por mais inibidor que seja, é ao menos mais honesto do que a característica que atinge parte da produção nacional dos últimos anos (“Linha de Passe”, “As Melhores Coisas do Mundo”), e que o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. descreveu como “publicidade bem intencionada” e “concha segura do olhar”. Há aqui um posicionamento muito claro que estabelece vínculos com a personagem e consequentemente com o mundo que ela habita, mas sobretudo, há uma “falta de covardia” (dizer coragem seria exagero) na tomada dessa postura que pode ser quadrada, mas ao menos não é omissa, e isso já é um pequeno passo.
Entre as atuações, é preciso destacar o trabalho de Débora Secco, que de certa forma tonifica a sensualidade de Bruna Surfistinha – através de um imaginário ligado à própria figura da atriz e suas personagens anteriores – bem como confere certa fragilidade à moça (a postura acuada na cena em que ela vai à casa do colega mal intencionado); e Cássio Gabus Mendes, que como um cliente apaixonado, consegue estabelecer a tridimensionalidade do personagem através de um jogo de motivações ambíguas, que se desdobram da ternura quase pueril até o desejo sexual impulsivo e incontrolável, numa única cena.
Vale pensar, por fim, em várias das externas de Bruna pela cidade: o quadro fechadíssimo no rosto, as luzes quase sempre em desfoque ao fundo. Sínteses daquilo que se vê no filme: uma personagem capaz de atrair para si todos os olhares, permitindo que muito pouco, além dela própria, seja observado. Pois atrás da face próxima à câmera, um mundo veloz, com pouca profundidade, e que cujas imagens são difíceis de discernir – algo que pode ser sintomático à trajetória de sucesso e fracasso de Raquel Pacheco e seu blog, muito típica ao nosso tempo, aliás – se faz presente, impedindo o filme de avançar ao afetar cada microestrutura da narrativa, que parece se deslumbrar com Bruna a ponto apenas de protegê-la e emoldurá-la. Em “Falsa Loura”, o mundo dá rasteiras recorrentes em Silmara, a moça que pensa ser “princesa”, levando-a sempre de volta à estaca zero. Reichenbach pega a estrutura de uma história conhecida e a põe às avessas. Em “Bruna Surfistinha”, a personagem-título adentra na realidade da prostituição consciente de que não existem contos de fadas, mas o filme insiste em continuar a sê-lo. A “princesa” aqui busca o mundo-cão como um fim, mas o filme o assimila como um meio, como simples caminho das pedras que guia à mudança necessária, cuja ausência é inconcebível, já que tudo se encadeia para isso. Diferente de Silmara, personagem que provocava, mas também se deixava influenciar por um todo, Surfistinha têm um filme aos seus pés, pronto para resgatá-la do papel de gata borralheira e alçá-la ao posto de Cinderela.
* Alvaro André Zeini Cruz é graduando em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP)