Ousmane Sembene e o Cinema Senegalês

Breve história de Senegal e a formação de seu cinema

Por Daniele Alves Arruda*

O reconhecimento de Senegal como país se deu somente após sua independência, que ocorreu por volta de 1960. Anterior a isso, Senegal era tido como colônia francesa. Sua produção cinematográfica até meados de 1960 era considerada insignificante, devido a baixa quantidade de filmes feitos. O cinema senegalês começou a ter destaque e maior produção a partir de 1970, que ficou conhecido como a era de ouro do cinema senegalês. Os cineastas tinham como intenção denunciar questões ligadas ao neocolonialismo, tratando as questões de dominação em que o povo vivia preconceitos e outras temáticas que eram e são comuns no dia a dia do povo.

Tem-se em seu modo de fazer filmes, heranças da sua cultura, trabalhando-se bastante a questão de contar-se uma história e trabalhar bastante com a imagem que é mostrada ao espectador. Porém percebe-se também a influencia de outras culturas, herança e influencia da dominação e colonialismo e nos temas tratados percebe-se talvez um caráter político esquerdista, no qual se busca a igualdade entre todos.

Ousmane e seus primeiros filmes: Borom Sarret (1963) e La Noiere de… (1966)

por Gabriel Ribeiro Alfredo*

Ousmane Sembene foi um dos principais nomes do cinema Senegalês, e também do cinema Africano. Seus primeiros filmes são tidos como marcos chave do inicio da construção do cinema Africano, no sentido de terem sido um dos primeiros filmes realizados por negros e por conterem uma forma própria de narrativa que é apoiada dentro da oralidade e contação de histórias, típica da cultura Africana. Previamente um trabalhador braçal , depois um escritor, Sembene em sua ida a França teve contato com os ideais marxistas e ao cinema engajado. Seus Livros se tornaram notórios em uma parcela de intelectuais de esquerda que viam neles uma grande denuncia da exploração social da França em cima do Senegal, e dos paises Africanos num geral dentro, do contexto do neo-colonialismo. Contudo mesmo com este reconhecimento, ele estava infeliz com seu trabalho, pensando que ele não conseguia atingir grande parte do publico que almejava, no caso, a população Senegalesa, devido principalmente ao analfabetismo e ao fato que escrevia em Francês. Ele em uma de suas entrevistas, que posteriormente a sua morte foram publicadas no livro “Ousmane Sembene Interviews” publicado pela Universidade do Mississipi, disse que “Neste Século, o povo que não consegue falar por si mesmo está fadado a desaparecer”, ele próprio, então, decidiu dar voz ao povo senegalês que segundo ele não podia falar por si mesmo. Portanto escolhe o cinema como a forma de representação de sua mensagem, pois era uma linguagem universal, discernível tanto pelos letrados quanto pelos iletrados.

Seu primeiro filme foi Borom Sarret, de 1963. Ele é considerado como um dos primeiros filmes feitos por um Africano Negro e mostrado para um publico pagante. É celebrado por ser uma das mais eficientes representações de uma sociedade perdida entre o tradicional e Pós Colonial. O curta metragem de menos de meia hora, mostra o dia de um carroceiro na cidade de Dakar, mesmo vivendo em miséria ele sobrevive com o pagamento de pequenos serviços que faz carregando coisas por entre a cidade. Sembene contraria o espírito otimista que surgiu no pais após as guerras de independência para denunciar que, mesmo livre do domínio Francês direto, eles ainda eram muito carentes financeiramente. Fica exposto então uma visão critica sobre uma das ações, na qual em um de seus serviços o carroceiro é enganado por um homem vestido de terno e gravata que pede para leva-lo até um bairro com características européias, chamado Plateau. Lá ele é impedido de entrar com seu carreto, logo o homem desce e continua seu trajeto, não pagando o carroceiro por seu serviço. Ao tentar reivindicar seus direitos é reprimido pelos policiais do local assim não conseguindo o dinheiro para se alimentar. Fica claro no filme, através da iconografia apresentada, a analogia do homem de terno com o europeu francês e o Bairro como a Europa e que de lá o que saia era apenas a exploração do trabalhado Negro.

Depois de produzir outro curta metragem chamado Niaye (1964), Sembene parte para produção de seu primeiro longa metragem, chamado La Noiere de… (ou A negra de…) em 1966. Este filme já carrega uma crítica mais direta a sociedade francesa, sendo observado por Lieve Spass, em sua “Critica ao trabalho domestico feminino e a política do terceiro mundo em La Noiere de…” , como um ensaio representativo da sociedade Senegalesa. Segundo ela “(…) história da moça negra não representa uma história contida em si mesma, mas uma narrativa originada em uma sociedade existente. “La noire de…”, portanto, exemplifica a importância de alguns filmes ficcionais chave para o estudo de uma sociedade.” Isso se aplica dentro da História de Diuanna, uma mulher negra que vivia em Dakar e que vai a França trabalhar na casa de uma antiga patroa. Tinha o sonho de poder conhecer a França idealizada por ela através das histórias que os outros contavam principalmente sua patroa. Queria comprar vestidos, conhecer as cidades, tirar fotos na praia, assim podendo fazer inveja em seus compatriotas no Senegal. Porém o que encontrou lá foi o maus tratos de sua patroa que a aprisiona em seu apartamento através de trabalhos domésticos que Diuanna não havia concordado em fazer, ela achava que havia vindo cuidar das crianças do casal. O racismo e exploração social são demonstrados de maneira ambígua através da personagem contraditória da patroa que hora a maltrata e hora a trata bem. Um aspecto marcante do filme é o dialogo interior da personagem principal em contraste com sua permanente quietude perante os patrões e também seus convidados. Levando os a indagar seu anafalbetismo e mesmo sua humanidade. Frustrada em suas falsas esperanças e se sentindo presa dentro do Buraco negro o qual caracterizava sua moradia, ela decidi se mostrar descontente de seu trabalho entrando em conflito com sua patroa, o que a leva a sofrer retaliações. O filme termina de maneira trágica, mostrando a passividade do patrão perante uma situação revoltante na qual ele, entretanto, como um bom capitalista, acha que pode ser resolvida com o dinheiro.

Sembene em seus primeiros filmes demonstra que algumas dicotomias possuem conotações maniqueístas, porém que são construídas baseadas em seus romances e no jeito africano de contar histórias. Sua linguagem ainda não havia se desenvolvido por completo, fato que vai ocorrer logo em suas próximas realizações.

Análise dos filmes Emitai (1971) e Xala (1975)

por Amanda de Castro Melo Souza

Emitai, o terceiro filme de Sembène, se passa em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, quando parte dos homens da vila dos Diolas é enviada a força para o front franco-alemão, neste contexto o coronel Armand e seu exército requisitam comida para as tropas, e mais uma vez, na obra de Sembène, a mulher entra como a motivadora das mudanças, sendo que as mulheres responsáveis pelas colheitas decidem resistir, escondendo o arroz das tropas.

Quando o filme foi lançado foi banido do Senegal, sendo esta a grande prova do conteúdo provocante que Sembène sempre retratava. Representando tanto o recrutamento forçado dos homens, como o massacre das vilas Diolas, Sembène realiza e demonstra sua afirmação do papel do cinema como uma “escola da história”.

Em Xala (1975) El Hadj Abou Kader é um oficial frente ao recém liberto Senegal que, diante desta situação, aproveita-se do dinheiro que ganha para casar com uma terceira esposa, porém na noite de núpcias não consegue ter uma ereção.

Neste filme Semebène crítica a corrupção dos governantes do Senegal de forma irônica e ao mesmo tempo engraçada, além de ser uma grande exposição dos processo neo-colonialista observado na grande maioria da África. A elite do país assume o poder ao mesmo tempo que recebe maletas de dinheiro dos homens brancos da Câmera do Comércio.

Essa história, fruto de seu próprio romance, causou choque ao governo, sendo que antes de seu lançamento houverem 11 cortes no filme. Xala, que significa impotência sexual, na narrativa do filme é a forma pela qual o povo se enxerga vingado. A maldição que persegue Kadar só deixa de ser válida quando o povo o despe e cospe-lhe para retirar a maldição.

Outra característica de Sembène que podemos notar no filme é a força que a mulher representa dentro da sociedade, as mulheres são para ele tão fundamentais quanto os homens dentro da construção desta nova África, agora liberta. A filha mais nova de Kadar enfrenta o pai de forma direta, sem se deixar influenciar, sendo uma grande representante do nacionalismo. Quando a filha do Kader discute com o pai ela sempre se dirige a ele no dialeto Wolof.

A ironia da história também pode ser apresentada pelo fato de que quando Kader vê a importância do dialeto Wolof (fruto das brigas com a filha) ele se dirige à Câmera de Comércio nesta língua, deixando de lado o Frances, o que faz com que ele seja acusado de “racista, sectário e reacionário”.

Análise do filme Ceddo (1977)

por Marcelo Félix Moraes

Este tópico abordará o filme Ceddo, reconhecido por sua relevância com um dos prêmios do Festival Internacional de Berlin, em 1977. A palavra Ceddo tem origem no dialeto senegalês pulaar cujo significado é “povo da resistência”, mas isso não os designa como um grupo étnico. Segundo o próprio diretor, Ousmane Sembene, Ceddo são aqueles que de alguma maneira resistiram à escravidão e conservaram a tradição¹. O filme retrata o drama das disputas políticas e religiosas em uma aldeia africana no que viria a se tornar Senegal, em um contexto em que convivem europeus mercadores de escravos, uma elite recém convertida ao Islamismo e parte da população local que resiste a conversão (os Ceddo).

Essa situação é agravada com o sequestro da filha do chefe do grupo, a princesa Dior, e como tudo isso ocorre em um período anterior à constituição de Senegal, tem-se o intuito de reconstruir o momento da colonização desse país. A história começa pela tentativa de golpe de estado quando o rei é assassinado e os nobres são afastados do poder. A princesa é raptada por um Ceddo que pretende protestar contra o islamismo da corte e acaba matando todos que tentam salvá-la, mas é morto por ordem do líder religioso, o Imame, que enquanto isso toma o poder. Neste momento a princesa se conscientiza da escravidão na qual seu povo caiu e volta para matar o líder religioso em um momento intenso e de sublimação.

O diretor é claramente defensor do estado laico, pois tem medo da direita usar a religião para interferir na política. Dessa forma, ele não defende nenhuma religião no filme, nem é especificamente contra o uso do islamismo nas sociedades tradicionais, é a favor de um estado que determine os limites de quaisquer líderes espirituais. A intenção maior de Sembene em Ceddo é demonstrar a existência de três forças: o islamismo, a religião católica e os comerciantes. E com isso usar o filme como recurso de reflexão e análise das contradições dessa sociedade colonizada e convertida ao islamismo. Fazer o seu próprio povo pensar sobre o que foi feito e sobre o que eles querem e podem fazer no presente, pois a colonização cultural ainda se mantém e a responsabilidade por isso, segundo ele, é de todos.

Um dos valores desse filme, não é a solidariedade ou a caridade, mas a originalidade desse cinema por focar a tradição oral, a narrativa e o verbo. Segundo Serge Daney², é um cinema literal, descontínuo e verbal ainda que musical. Este autor analisa a história do filme para estabelecer uma dicotomia entre apalavra e a música. Além da intromissão do poder religioso na política, Ceddo é uma história da perda do direito de falar. Pois com a penetração do islamismo nessa aldeia africana, o líder religioso, muda o estatuto da palavra. O Corão é utilizado por eles e não existe mais a palavra de honra, o poder da palavra está agora com os Imames. Ainda assim, Sembene busca filmar esse povo, que será reduzido ao silêncio, de forma a restituir-lhes seu bem mais precioso. A palavra é um elemento político que não será mais reconhecido pelos brancos (cristãos e muçulmanos). O valor da linguagem falada é dado a um único homem, o porta-voz oficial que fala por ordem do Imame e em nome do livro (Corão).

Mas Sembene demonstra seu antiislamismo, seu anticlericalismo e seu desprezo pelos servidores de dogmas, focando sua narrativa em heróis positivos: o povo que resiste e a princesa que toma consciência. Ocorre a convergência entre essas duas narrativas intercaladas até um final improvável que mostra a libertação desse povo na África. De um lado temos a descrição da resistência coletiva baseada nas demonstrações com a palavra, de outro, a libertação fictícia e individual da princesa em uma convenção que se utiliza da música para completar a representação dessa alegoria. Ou seja, a música opera como uma lembrança, ou um sentido, como um “gosto de cinza”, segundo Darney, a música dos oprimidos é a expressão e o reflexo dos oprimidos’ (2007, p.167).
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1. Entrevista com Ousmane Sembene sobre o filme Ceddo por Josie Fanon. Trecho originalmente publicado em Ousmane Sembène: interviews / edited by Annett Busch and Max Annas, University Press of Mississipi, 2008.
2. Artigo “O que eles diziam?” publicado na edição 304 da Cahiers du cinéma (outubro de 1979, p. 53), pelo crítico Serge Daney O texto foi republicado em A rampa: Cahiers du Cinema 1970-1982. Cosac Naify, 2007, p. 163-167.

Análise de Guelwaar (1992)

por Livia Teixeira Duarte

O último filme de Ousmane Sembène tratado no seminário é Guelwaar. Como referência principal foi utilizado o texto A iconografia do cinema da África Ocidental de Manthia Diawara em Cinema no mundo: Indústria, política e mercado. Volume 1: África. Contudo, outros textos contidos na bibliografia complementaram as informações expostas.

Guelwaar data de 1993, sendo um dos últimos longas dirigidos por Sembène. O ponto de partida da estória é a morte do ativista Pierre Henry Thioune Guelwaar. Apesar de ser cristão, seu corpo é indevidamente enterrado em um cemitério muçulmano. Sua família tenta desfazer o erro, mas a tarefa vai se tornando cada vez mais complexa uma vez que a sua figura está rodeada de mistérios. Não se sabe quem foi o assassino e o porquê o crime foi cometido. Era de conhecimento geral que o ativista incitava o povo a se rebelar contra as práticas de ajuda internacional, motivo pelo qual fez muitos inimigos. Entretanto, o assassinato pode ter ocorrido devido a outros fatores, pois no decorrer da estória surgem evidências que põe em cheque o caráter e a honestidade de Guelwaar.

Nesse filme Sembène retorna a narrativa utópica de autodeterminação que conduzia seus primeiros filmes. Apesar de expor as relações tensas entre cristãos e muçulmanos, a principal questão levantada trata da forma como o povo do Senegal se deixa conduzir passivamente por vontades externas ditadas pelo antigo colonizador. Em uma visão polêmica, Sembène defende que até a prostituição seria mais digna que a aceitação da ajuda estrangeira.

Bibliografia Geral

BUSCH, Annet e ANNAS, Max. Ousmane Sembene Interviews. Artigo publicado no Site http://missingimage.com/book/export/html/250569 . Visto pela ultima vez dia 01/05/2011

DANEY, Serge. O que eles diziam? Ceddo de Ousmane Sembène in A Rampa: Cahiers du cinema 1970-1982. Cosac Naify, 2007. Páginas 163-167.

MELEIRO, Alessandra (Org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado Vol.1 África. São Paulo: Escrituras, 2007.

RIBEIRO, Marcelo. Os cinemas africanos: pela descolonização da mente in http://cine-africa.blogspot.com/ Acessado em: 25/04/2011

SPASS, Lieve. Female Domestics Labor and Third World Politics in La Noiere De… . Publicado na revista Jump Cut, nº 27, Julho de 1982, páginas 26-27. Visto em http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC27folder/BlackGirlSpaas.html pela ultima vez no dia 01/05/2011.

THOMPSON, Kristin e BORDWELL, David. Black Afrincan Cinema in Film History:An Introduction. Mc Grawll Hill, Nova York. 2003. Páginas 548-551


Filmografia

Borrom Sarret. Ousmane Sembène, Senegal, 1963.
La Noire De… . Ousmane Sembène, França e Senegal, 1966.
Emitaï. Ousmane Semebène, Senegal, 1971.
Xala. Ousmane Sembène, Senegal, 1975.
Ceddo. Ousmane Sembène. Senegal, 1977.
Guelwaar. Ousmane Sembène. Senegal 1992

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