Verônica (Maurício Farias, 2008)

Diálogos entre a professora (público) e a mãe (privado) – papéis e problemas sociais em Verônica (2008), de Maurício Farias

Utilizando-se de múltiplos planos de fundo, Verônica (2008) – produção nacional recém-lançada – segue a mesma trilha de problematização social característica do cinema brasileiro dos últimos anos. Colocando à serviço da relação entre professora e aluno questões como tráfico de drogas, má qualidade da educação e corrupção policial, retrata o cotidiano do subúrbio carioca enquanto microcosmo do câncer alimentado pela sociedade: a falta de confiança – seja nas pessoas, seja nas instituições estatais.

Verônica, personagem vivida por Andréa Beltrão, imersa no contexto particular de uma escola suburbana – com seus problemas e peculiaridades próprias – vê-se engolida pelo mundo que a margeia; certo é, que a própria complexidade psicológica da professora leva-a a agir conforme seu próprio código de ética: “para salvar uma vida do tráfico de drogas, parte para as últimas conseqüências“.

Produzido com baixos recursos (R$ 500 mil, com créditos ao filme pelo uso bastante limitado de propaganda crossmedia) mantém bom ritmo de narrativa – rápida, intensa – valoriza poucos planos extensos – no entanto, quando estes surgem, são utilizados com inteligência. Talvez o movimento estético mais diferencial em relação à mise en scène seja a constituição dos flashbacks da protagonista, marcados por cortes secos acelerados de planos em slow-motion, alterados visando uma maior saturação das cores.

Uso pouco criativo do som soma-se a imagem em grande parte pelo direto. Em determinados momentos de conflito reaparece através da música, trilha sonora típica a momentos de ação, levadas mais aceleradas. Em outros instantes mais solenes, de reflexão e diálogo entre a professora e o aluno surge uma melodia arranhada em um violão. Nada muito inovador, não há definitivamente uma vontade de se fazer um uso criativo do som, que some às intenções dispostas nos valores do enredo. Torna-se por fim uma peça somada, pouco a acrescentar, quase que obrigada a participar por convenção.

É, realmente, um filme produzido para “dar certo”, medroso de maiores novidades – que, sem grandes inovações em relação ao uso da imagem, privilegia planos americanos em grande parte da narrativa; em poucos momentos somos apresentados a planos gerais, um destes é logo ao inicio do filme com a apresentação do Corcovado a partir da perspectiva subjetiva da favela, fazendo 180º, mostrando-nos o palco do evento, o Rio de Janeiro em sua porção marginalizada. É inegável que parcela deste receio por novidades no uso da linguagem imagética e sonora do filme dê-se pela própria direção de Maurício Farias, sobretudo por sua formação televisiva e seu recente ingresso na cinematografia (sendo este seu terceiro longa).

Sem maiores comprometimentos e sob uma crítica social muitas vezes velada, Verônica levanta um tema que passa despercebido nos noticiários televisivos ou em fotografias de jornais – o estreito laço que intercomunica crianças e criminalidade e o poder da sociedade para com os menores de idade. Para entender tal fato, seja necessário até mesmo subverter o foco principal do filme, desfocar a imagem da professora – deslocando-a para a do garoto Leandro (Matheus de Sá) – órfão, morador de uma comunidade carente fluminense, “condenado à morte” à sua revelia pelo poder paralelo ao do Estado. Leandro ameaça e incomoda o poder paralelo constituído. O estereótipo do bom menino, enquadrado ao lado da professora, marca o binarismo (bem versus mal) característico desta produção. O mundo da professora é tocado pela realidade do aluno; a realidade da figura da mãe e alcançada pelo papel do filho. O privado da educadora é rechaçado pelo público do garoto.

“Os grupos sociais se organizam em camadas e, de certo modo, proporcionam a aparição de tipos marginalizados que, nos contos e na vida, se não quebram a hierarquia, incomodam. São saliências na superfície plana e chã das sociedades de classes. Os tipos liminares permanecem na memória há muito, porque desempenham uma função reguladora: a sociedade instituída em suas regras se esconde atrás desses tipos para dizer o que não é permitido, o que a moral das normas sociais encobre. Por oferecerem perigo, são assimilados pelo riso e só assim são aceitos.” (COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas: ensaios de malandragem e preguiça. Tese de doutorado em Comunicação e Semiótica apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientador: Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: PUC/SP, 2005. p. 31.)

Como dito, a falta de confiança generalizada impede que a personagem de Beltrão procure os meios legais para solução do problema central do filme, forçando-a a uma fuga desesperada; perseguida por policiais corruptos e traficantes de drogas, sem qualquer auxílio de amigos ou parentes, o filme é estritamente com câmera na mão e adrenalina em alta, apelando – em todos os casos – para a conquista do público pelo lado afetivo. É um filme sem meio termo: ou se é bom, ou se é ruim; ou se é mocinho, ou se é bandido. De qualquer maneira, embora trabalhe com temas caros ao cinema nacional da última década (dos quais os maiores destaques são Tropa de Elite (José Padilha, 2007), Carandiru (Hector Babenco, 2002), Ônibus 174 (José Padilha, 2002) e as futuras esperas são Salve Geral (Sérgio Rezende) e ROTA Comando (Elias Júnior), ambos para 2010, Verônica procura o emocional, busca a conquista da freguesia pelas lágrimas e não pela raiva, pela indignação ou por qualquer outra reação de insatisfação social.

O próprio racionalismo da análise crítica, do onde vivemos é suprimida pelo vivemos; o aspecto pseudo-mãe da professora supera a incidência de cidadã, sendo que, em casos, o telespectador é levado a crer que se trata de um dever familiar e não de um dever social. Os deveres privados superam e assumem características de obrigações públicas.

Certamente, sem adentrarmos aos conspectos jurídicos, nossa Constituição vigente cuida em seu art. 227 dos deveres da família, do Estado e da sociedade perante às crianças e os adolescentes – independente da situação de risco em que se encontrem. Entrementes, em nenhum momento confunde os papéis sociais estipulados por cada um destes figurantes. A sociedade não fará o viés de família, ela tem suas prerrogativas justamente enquanto sociedade – e assim por diante. Ambas são solidárias.

Neste contexto, a solidariedade característica da própria edificação societária que temos hoje, tem seus pilares corrompidos – sob o prisma da direção de Maurício Farias – pela desconfiança (no sentido de falta de confiança) generalizada.

Verônica, ao lutar contra a auto-aceitação da criança enquanto ser social, assume-se enquanto mãe; o menino, enquanto sofre a perda de sua progenitora, confunde o papel de professora-mãe-porto seguro da personagem de Beltrão.

Embora tenhamos que ressaltar que a polícia, os traficantes, a educação também sejam problemáticas salientes no contexto da obra, nada justifica a submissão destes temas públicos e de necessária discussão coletiva à carência afetiva e motivada pelo privado de uma cidadã que personifica todos os super-poderes do bem e trava isoladamente uma verdadeira batalha entre o céu e o inferno. O isolamento proporcionado pelo privado, certamente, é prejudicial ao debate que poderia ser levantado caso o telespectador fosse induzido à repensar certos temas tratados (como os levantados) e não tão-somente levado – como agente sem sujeito – a gostar do filme pelo lado afetivo-carinhoso.

Em vista destes aspectos o roteiro pontua apenas lugares comuns bastante familiares às recentes produções nacionais sob a temática do caos urbano. O álibi para a discussão do corporativismo e da criminalidade torna-se uma figura social inserida no contexto de uma favela, a professora de escola pública. No entanto o individuo social pouco é explorado, somos apenas abonados com algumas exposições de sua condição econômica (através de sua residência, de carência de recursos para financiar uma cirurgia da mãe) e civil (divorciada com Paulo – interpretado por Marco Ricca – um PM). Vem à tona o individuo privado, a mãe, perde-se com isso possíveis investidas em uma produção mais emancipativa, reflexiva ao espectador, desejosa de uma real discussão acerca das questões públicas levantadas na obra. Perde-se esta oportunidade e assume a espetacularização da criminalidade, um viés de conhecimento público como recurso para um produto comercial, uma fórmula que dá certo, um filme feito para dar certo (ainda que o próprio Mauricio Faria tenha alegado em entrevista ser contra este “espetáculo”). Valoriza por fim um tópico comum que permeia toda narrativa, o asfalto. Vários são os momentos em que somos apresentados à protagonista e o garoto em um transporte, não raramente fugindo de uma situação. Tenta-se talvez com isso elaborar uma imagem de fuga sem saída para nossos problemas sociais, no entanto a comparação torna-se pobre ao não haver muitos elementos que tragam esta discussão ao público (retomando novamente a idéia da imagem emotiva do privado – mãe – superior à emancipativa/reflexiva pública – professora)

Não há grandes novidades na temática ou estética, tampouco o esforço em um trabalho mais contundente quanto a nosso caos urbano. Utiliza-se a fórmula do herói e o viés emocional como armas para o aprisionamento do espectador. No entanto devemos ponderar que este ainda é um dos primeiros trabalhos de Mauricio Farias, que os recursos utilizados para tal foram escassos se comparados a outras produções nacionais do gênero (como Salve Geral cujo orçamento é estimado em R$ 8,5 milhões, dezessete vezes o valor de Verônica). Devemos dar crédito a produção neste ponto, a película só foi possível através de sociedade (sendo que parte do elenco participou da empreitada). É preciso ter pesos diferentes neste aspecto, apesar das críticas apresentadas, o filme se faz interessante, nos prende e vale o ingresso. Andréa Beltrão assume bem o papel assim como o garoto Matheus de Sá. Mas a despeito dos vieses mencionados não deixa de ser um filme como outro.

Vinicius Wohnrath é bacharelando em Direito pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP)

Pedro Marcondes é bacharelando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

REFERÊNCIAS:

Trilha Filmes

www.trilhafilmes.com.br/noticia.php?id=00685

CinePop

www.cinepop.com.br/filmes/veronica.htm

Cinética

www.revistacinetica.com.br/veronica.htm

CinePlayers

www.cineplayers.com/filme.php?id=4535 – 22k

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta